PAUL GAUGUIN
Le Christ jaune, 1889
óleo sobre tela
92x73cm
Buffalo, Albright-Knox Museum
AMADEU BAPTISTA
PAUL GAUGUIN: O CRISTO AMARELO (1889)E sabíamos todos que a hora
era chegada e tudo em volta
escurecia,
e que, em Pont-Aven,
era chegado o tempo da colheita
e os campos estavam todos amarelos.
E aconteceu que as mulheres da Bretanha
ajoelharam,
e vinha eu no caminho
e vi a luz,
e os meus olhos cegaram para que visse
a roda do martírio
e o escárnio.
E aconteceu que as cores se saturaram,
e a paleta recebeu,
vindas do céu,
as cores
– e eu enchi a tela de perguntas,
e, pelo esplendor,
atirei-me ao chão
e em mim senti um som sombrio.
E vi, então, que as mulheres
choravam
e que os homens
não se compadeciam
de quem sofria,
e tudo tinha um brilho
esplêndido,
um brilho sobrenatural,
à minha volta.
E aconteceu que se ouviu cantar
o galo,
e que toda a terra se abriu para aquele brilho,
e os camponeses vieram,
e choraram.
E vi que preparavam varas novas,
e que as varas eram só espinhos,
e que o homem caía,
caía mesmo em frente aos nossos olhos,
que nada mais fazíamos do que o ver caído.
E eu tomei a tela e preparei-a,
e sangrava o homem
abundantemente,
e eu perguntei ‘quem somos?’
e nada se ouviu.
E chegou o crepúsculo
e, em volta, era só amarelo o que se via,
e o rosto do homem inundava-se de lágrimas e de sangue,
e arquejava-Lhe o dorso,
e puseram-Lhe aos ombros o madeiro.
E as mulheres da Bretanha
irromperam em choro,
e a multidão
adensou-se no lugar,
e suplicou o pão,
e os peixes,
e seguiram-No.
E vi as minhas cores queimadas pelo fogo,
e que os meus pincéis vibravam,
e misturei ao óleo terebentina,
enquanto o homem subia pelo monte
onde reinava o silêncio
e a abominação.
E perguntei:
‘quem somos, de onde vimos?’,
e em volta levantou-se um grande incêndio,
e as labaredas tomaram o lugar,
e era tudo amarelo nesse sítio.
E houve uma mulher que trouxe
água,
e com a água trouxe um pano branco,
e limpou-Lhe o rosto,
e o Seu rosto estava iluminado.
E eram amarelos os Seus cabelos,
e amarela era a Sua barba,
e a cruz, nos ombros,
era amarela,
como um topázio.
E, então, caiu o homem
pela segunda vez,
e as mulheres da Bretanha
arrancaram os cabelos,
e olharam em redor
para que chegasse algum socorro,
de onde quer que fosse.
E os campos em volta permaneciam amarelos,
e eu prendi aos dedos o pincel
porque toda a terra tremia
e o coração
saltava-me do peito,
e a cabeça doía-me
e pesava-me.
E o homem seguiu, arrebatado
pela dor,
e um outro homem veio em Seu auxílio,
e eram grandes as feridas,
e deitavam muito sangue.
E as mulheres da Bretanha
seguiram com Ele,
e vacilavam-Lhe os passos,
e o Seu corpo
era todo amarelo,
a boca,
as mãos,
os pés.
E assim se acercou do cume da montanha,
com as mulheres da Bretanha sempre atrás,
e havia soldados
e outros condenados,
que o viram cair pela terceira vez.
E Ele levantou-se,
e a multidão exultou nesse momento,
e eu, com o pincel, fiz o esboço
daquele quadro de grande sofrimento.
E uma das mulheres chamou-Lhe ‘filho’,
e outra ‘amado’,
e a elas se juntou outra mulher
que Lhe chamou ‘irmão’,
e, nos seus vestidos,
caíram lágrimas de sangue e de estupor.
Do meu pincel só o amarelo
permitia
estender-se na tela,
e tudo era amarelo,
os campos em volta,
o rosto de quem estava,
e a cruz.
E cravaram-Lhe as mãos e os pés
àquela cruz,
e tudo em volta foi um só silêncio,
e parecia que a terra dimanava
um odor amarelo,
que só as mulheres da Bretanha compreendiam.
E um soldado
veio com a esponja
embebida em vinagre,
e prendeu-a a um ramo,
e deu-Lhe de beber, porque a sede
o martirizava.
E eu executava a minha obra,
e tudo era amarelo à minha volta,
as árvores,
as colinas,
as casas que se viam do ponto onde estava.
E o tempo passou,
e olhei o homem,
e olhar a Sua face pacificou-me,
porque o homem sorria
por ver a multidão
a partilhar o pão
e os peixes
que Ele lhes entregava.
E a terra tremeu,
e vi tudo amarelo à minha volta,
e as mulheres da Bretanha olhavam-No
a sorrir,
enquanto eu perguntava:
‘quem somos, de onde vimos, para onde vamos’?
E na linha do horizonte vi os anjos,
e as asas dos anjos
cintilavam,
e cintilava, também, esta pintura
onde, em silêncio, pus
as mulheres da Bretanha,
e o Cristo amarelo
com o meu rosto.
(de
Doze Cantos do Mundo,
inédito, vencedor do
Prémio Literário Oliva Guerra 2008)
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