25.10.08

PAUL GAUGUIN


Autoportait au Christ jaune, 1889-1890
óleo sobre tela
Paris, Musée d'Orsay

24.10.08

PAUL GAUGUIN


Le Christ jaune, 1889
óleo sobre tela
92x73cm
Buffalo, Albright-Knox Museum



AMADEU BAPTISTA

PAUL GAUGUIN: O CRISTO AMARELO (1889)


E sabíamos todos que a hora
era chegada e tudo em volta
escurecia,

e que, em Pont-Aven,
era chegado o tempo da colheita
e os campos estavam todos amarelos.

E aconteceu que as mulheres da Bretanha
ajoelharam,
e vinha eu no caminho
e vi a luz,

e os meus olhos cegaram para que visse
a roda do martírio
e o escárnio.

E aconteceu que as cores se saturaram,
e a paleta recebeu,
vindas do céu,
as cores

– e eu enchi a tela de perguntas,
e, pelo esplendor,
atirei-me ao chão
e em mim senti um som sombrio.

E vi, então, que as mulheres
choravam
e que os homens
não se compadeciam
de quem sofria,

e tudo tinha um brilho
esplêndido,
um brilho sobrenatural,
à minha volta.

E aconteceu que se ouviu cantar
o galo,
e que toda a terra se abriu para aquele brilho,

e os camponeses vieram,
e choraram.

E vi que preparavam varas novas,
e que as varas eram só espinhos,
e que o homem caía,

caía mesmo em frente aos nossos olhos,
que nada mais fazíamos do que o ver caído.

E eu tomei a tela e preparei-a,

e sangrava o homem
abundantemente,
e eu perguntei ‘quem somos?’
e nada se ouviu.

E chegou o crepúsculo
e, em volta, era só amarelo o que se via,

e o rosto do homem inundava-se de lágrimas e de sangue,
e arquejava-Lhe o dorso,
e puseram-Lhe aos ombros o madeiro.

E as mulheres da Bretanha
irromperam em choro,
e a multidão
adensou-se no lugar,
e suplicou o pão,
e os peixes,

e seguiram-No.

E vi as minhas cores queimadas pelo fogo,

e que os meus pincéis vibravam,
e misturei ao óleo terebentina,
enquanto o homem subia pelo monte
onde reinava o silêncio
e a abominação.

E perguntei:
‘quem somos, de onde vimos?’,

e em volta levantou-se um grande incêndio,
e as labaredas tomaram o lugar,

e era tudo amarelo nesse sítio.

E houve uma mulher que trouxe
água,
e com a água trouxe um pano branco,
e limpou-Lhe o rosto,
e o Seu rosto estava iluminado.

E eram amarelos os Seus cabelos,
e amarela era a Sua barba,
e a cruz, nos ombros,
era amarela,
como um topázio.

E, então, caiu o homem
pela segunda vez,
e as mulheres da Bretanha
arrancaram os cabelos,

e olharam em redor
para que chegasse algum socorro,
de onde quer que fosse.

E os campos em volta permaneciam amarelos,
e eu prendi aos dedos o pincel
porque toda a terra tremia

e o coração
saltava-me do peito,
e a cabeça doía-me
e pesava-me.

E o homem seguiu, arrebatado
pela dor,
e um outro homem veio em Seu auxílio,
e eram grandes as feridas,
e deitavam muito sangue.

E as mulheres da Bretanha
seguiram com Ele,
e vacilavam-Lhe os passos,
e o Seu corpo
era todo amarelo,

a boca,
as mãos,
os pés.

E assim se acercou do cume da montanha,
com as mulheres da Bretanha sempre atrás,

e havia soldados
e outros condenados,
que o viram cair pela terceira vez.

E Ele levantou-se,
e a multidão exultou nesse momento,
e eu, com o pincel, fiz o esboço
daquele quadro de grande sofrimento.

E uma das mulheres chamou-Lhe ‘filho’,
e outra ‘amado’,

e a elas se juntou outra mulher
que Lhe chamou ‘irmão’,

e, nos seus vestidos,
caíram lágrimas de sangue e de estupor.

Do meu pincel só o amarelo
permitia
estender-se na tela,
e tudo era amarelo,

os campos em volta,
o rosto de quem estava,
e a cruz.

E cravaram-Lhe as mãos e os pés
àquela cruz,

e tudo em volta foi um só silêncio,
e parecia que a terra dimanava
um odor amarelo,
que só as mulheres da Bretanha compreendiam.

E um soldado
veio com a esponja
embebida em vinagre,
e prendeu-a a um ramo,
e deu-Lhe de beber, porque a sede
o martirizava.

E eu executava a minha obra,

e tudo era amarelo à minha volta,
as árvores,
as colinas,
as casas que se viam do ponto onde estava.

E o tempo passou,
e olhei o homem,

e olhar a Sua face pacificou-me,

porque o homem sorria
por ver a multidão
a partilhar o pão
e os peixes
que Ele lhes entregava.

E a terra tremeu,

e vi tudo amarelo à minha volta,
e as mulheres da Bretanha olhavam-No
a sorrir,
enquanto eu perguntava:
‘quem somos, de onde vimos, para onde vamos’?

E na linha do horizonte vi os anjos,

e as asas dos anjos
cintilavam,

e cintilava, também, esta pintura
onde, em silêncio, pus
as mulheres da Bretanha,

e o Cristo amarelo
com o meu rosto.

(de Doze Cantos do Mundo, inédito, vencedor do Prémio Literário Oliva Guerra 2008)

Outros inéditos deste livro em da poética e Estrada do Alicerce.

Ponto da situação IV

Acaba de ser anunciado que Amadeu Baptista, com o original Doze Cantos do Mundo, é o vencedor deste anodo Prémio Literário Oliva Guerra, promovido pela Câmara Municipal de Sintra. É o 14º prémio atribuído ao Autor e o 8º nos últimos dois anos.

O Amadeu está de parabéns, não tanto pelos prémios, que lhe vão permitindo viver, mas sobretudo pela ousadia que coloca nos seus poemas e pela força que sabe transmitir aos que o lêem. De parabéns está também o Júri, que soube reconhecer essa força, no meio do anonimato dos concorrentes, contribuindo para a divulgação de uma extensa obra já com 26 anos, que merece ser conhecida.

Por sinal, o Jornal de Letras que saiu anteontem traz uma página inteira com uma bela e interessante crónica de Fernando Guimarães, dedicada aos três mais recentes livros de Amadeu Baptista.

Ponto da situação III

Já está anunciado publicamente o novo livro da Ana Salomé, Odes. Pessoas bonitas fazem coisas bonitas.

A edição é do Canto Escuro do Vitor Vicente, que anuncia também Grafipoesis, de Rui Carlos Souto, autor já antes publicado sob esta chancela.

Ponto da situação II


Ontem, na Casa Fernando pessoa, foi apresentado o número 2 da revista Criatura.
Falaram Fernando Pinto do Amaral e Tiago de Oliveira Cavaco, cada um no seu registo próprio.
Gostei de os ouvir e gosto da revista.

Ponto da situação I

Recentemente fiquei a conhecer alguns bons blogues, que valem mesmo a pena serem vistos:
- A única real tradição viva;
- Café Central;
- Casa dos Poetas;
- Do trapézio sem rede;
- Hospedaria Camões;
- Last Breath;
- Memento;
- Poesia dos Dias Úteis (dedicado ao poeta Vasco Costa Marques).

(com particular referência ao André Simões e ao João Gaspar que tive o gosto de conhecer pessoalmente.)

22.10.08

FERNANDO CABRITA

FALEMOS


Falemos então de todas essas coisas a que nunca soubemos dar um nome.
Coisas como café e cerejas,
coisas como memórias do verão de ontem
e de tudo o que repousa já no ónix frio dos dias.
falemos não porque as vejamos,
porque as sentimos à vaga luz dos crepúsculos que morrem
e são para nós as florestas que passam velozes nos vidros do carro
e os silêncios dos faunos que atravessam os bosques e as ilusões
e as pequenas ondas que vêm desmaiar à praia
e as vozes antigas que ainda nos falam na alma coisas despercebidas
e as luas que havia no final do verão.
Falemos, para que de novo sejam
e de novo vivam.

Falemos, para que estejamos vivos.

(de Doze Poemas de Saudade, 4 Águas editora, 2008)

21.10.08


NICOLAU SAIÃO

HOMENAGEM A JACK, O ESTRIPADOR


O teu sorriso fugaz ocupa o espaço
na aresta furtiva, no lance bem ritmado
e liga infinitamente
alma e sombra de
criatura.

Um deus em que tudo
é distante. Vivemos, bem verdade é
sempre a despedir-nos: basta apenas
exagerar um bocadinho
- e aí está ela, a rica melancolia

Com fato de cheviote? Talvez. Onde se lê futuro
deve ler-se presente: vísceras, uma árvore, o olhar
triunfante do anjo. O nosso ser é para nós
um vivo que a nostalgia transformou
gravemente em seus braços
calmos e perturbados.

Há centenas de bolsos. E navalhinhas mil. Cruzando
o ar uma loira, uma ruiva, uma morena
confundem as linhas e os meredianos.
Serenos são os séculos, como insectos
no limiar da oculta porta: e por dentro
cabeças abanando e um que outro odor
de um doce ovário atónito.

O viandante traz dos tempos velhas coisas
até que o som de um violino faz estalar
anos e falangetas. Saibamos
deixar-nos descansar, que o Mundo
morre para ser objecto
ou silêncio.

Entre as crustas da carne subsistem
antebraços, continentes, colhões – os desígnios
que nem tu – surpresa! – descascar poderias
em qualquer viela esconsa

Pobre animal liberto
e indiferente

eternamente exposto a fulgores e ilusões.

(de Flauta de Pan, edições Colibri, 1998)

20.10.08

MARIA ALBERTA MENÉRES

Aqui posso medir tudo o que digo
pelo eco em montanhas indomáveis:
toco a crosta da terra e de repente
logo um som me anuncia em claridade.
Ouvir fica para lá de qualquer voz
junto à fonte mais triste onde se guarde
uma pequena lágrima que esqueça
o que de mim se lembra em tenra idade.

(de O Jogo dos Silêncios, Huguin editores, 1996

19.10.08

ANTÓNIO MEGA FERREIRA

(excerto de) O Maior Espectáculo do Mundo

(…)
A memória não é uma caixa de imagens, isso ao menos sabe Maria Ausenda. A memória, diz para si própria, é apenas uma moldura que delimita o espaço de um quadro, mas que lhe ignora o tempo, que mistura as cores e as formas numa espécie de cadinho adormecido sobre o aparador da infância. E depois, um dia, a necessidade ou a imaginação despertam-na, e ela transforma-se em fábrica de sonhos e de ilusões, um pouco mais de emoção aqui, um diálogo retocado acolá, bruscamente as imagens todas rodopiam sobre si próprias e, quando de novo se aquietam, quando se tornam suficientemente nítidas para poderem ser evocadas, quem pode dizer que foi esse o lugar que elas ocupavam quando tudo se passou, quem se atreve a garantir que tudo se passou assim mesmo, quem ousaria jurar que alguma coisa se passou?
(…)

(in As Caixas Chinesas, 1988)