24.10.08

PAUL GAUGUIN


Le Christ jaune, 1889
óleo sobre tela
92x73cm
Buffalo, Albright-Knox Museum



AMADEU BAPTISTA

PAUL GAUGUIN: O CRISTO AMARELO (1889)


E sabíamos todos que a hora
era chegada e tudo em volta
escurecia,

e que, em Pont-Aven,
era chegado o tempo da colheita
e os campos estavam todos amarelos.

E aconteceu que as mulheres da Bretanha
ajoelharam,
e vinha eu no caminho
e vi a luz,

e os meus olhos cegaram para que visse
a roda do martírio
e o escárnio.

E aconteceu que as cores se saturaram,
e a paleta recebeu,
vindas do céu,
as cores

– e eu enchi a tela de perguntas,
e, pelo esplendor,
atirei-me ao chão
e em mim senti um som sombrio.

E vi, então, que as mulheres
choravam
e que os homens
não se compadeciam
de quem sofria,

e tudo tinha um brilho
esplêndido,
um brilho sobrenatural,
à minha volta.

E aconteceu que se ouviu cantar
o galo,
e que toda a terra se abriu para aquele brilho,

e os camponeses vieram,
e choraram.

E vi que preparavam varas novas,
e que as varas eram só espinhos,
e que o homem caía,

caía mesmo em frente aos nossos olhos,
que nada mais fazíamos do que o ver caído.

E eu tomei a tela e preparei-a,

e sangrava o homem
abundantemente,
e eu perguntei ‘quem somos?’
e nada se ouviu.

E chegou o crepúsculo
e, em volta, era só amarelo o que se via,

e o rosto do homem inundava-se de lágrimas e de sangue,
e arquejava-Lhe o dorso,
e puseram-Lhe aos ombros o madeiro.

E as mulheres da Bretanha
irromperam em choro,
e a multidão
adensou-se no lugar,
e suplicou o pão,
e os peixes,

e seguiram-No.

E vi as minhas cores queimadas pelo fogo,

e que os meus pincéis vibravam,
e misturei ao óleo terebentina,
enquanto o homem subia pelo monte
onde reinava o silêncio
e a abominação.

E perguntei:
‘quem somos, de onde vimos?’,

e em volta levantou-se um grande incêndio,
e as labaredas tomaram o lugar,

e era tudo amarelo nesse sítio.

E houve uma mulher que trouxe
água,
e com a água trouxe um pano branco,
e limpou-Lhe o rosto,
e o Seu rosto estava iluminado.

E eram amarelos os Seus cabelos,
e amarela era a Sua barba,
e a cruz, nos ombros,
era amarela,
como um topázio.

E, então, caiu o homem
pela segunda vez,
e as mulheres da Bretanha
arrancaram os cabelos,

e olharam em redor
para que chegasse algum socorro,
de onde quer que fosse.

E os campos em volta permaneciam amarelos,
e eu prendi aos dedos o pincel
porque toda a terra tremia

e o coração
saltava-me do peito,
e a cabeça doía-me
e pesava-me.

E o homem seguiu, arrebatado
pela dor,
e um outro homem veio em Seu auxílio,
e eram grandes as feridas,
e deitavam muito sangue.

E as mulheres da Bretanha
seguiram com Ele,
e vacilavam-Lhe os passos,
e o Seu corpo
era todo amarelo,

a boca,
as mãos,
os pés.

E assim se acercou do cume da montanha,
com as mulheres da Bretanha sempre atrás,

e havia soldados
e outros condenados,
que o viram cair pela terceira vez.

E Ele levantou-se,
e a multidão exultou nesse momento,
e eu, com o pincel, fiz o esboço
daquele quadro de grande sofrimento.

E uma das mulheres chamou-Lhe ‘filho’,
e outra ‘amado’,

e a elas se juntou outra mulher
que Lhe chamou ‘irmão’,

e, nos seus vestidos,
caíram lágrimas de sangue e de estupor.

Do meu pincel só o amarelo
permitia
estender-se na tela,
e tudo era amarelo,

os campos em volta,
o rosto de quem estava,
e a cruz.

E cravaram-Lhe as mãos e os pés
àquela cruz,

e tudo em volta foi um só silêncio,
e parecia que a terra dimanava
um odor amarelo,
que só as mulheres da Bretanha compreendiam.

E um soldado
veio com a esponja
embebida em vinagre,
e prendeu-a a um ramo,
e deu-Lhe de beber, porque a sede
o martirizava.

E eu executava a minha obra,

e tudo era amarelo à minha volta,
as árvores,
as colinas,
as casas que se viam do ponto onde estava.

E o tempo passou,
e olhei o homem,

e olhar a Sua face pacificou-me,

porque o homem sorria
por ver a multidão
a partilhar o pão
e os peixes
que Ele lhes entregava.

E a terra tremeu,

e vi tudo amarelo à minha volta,
e as mulheres da Bretanha olhavam-No
a sorrir,
enquanto eu perguntava:
‘quem somos, de onde vimos, para onde vamos’?

E na linha do horizonte vi os anjos,

e as asas dos anjos
cintilavam,

e cintilava, também, esta pintura
onde, em silêncio, pus
as mulheres da Bretanha,

e o Cristo amarelo
com o meu rosto.

(de Doze Cantos do Mundo, inédito, vencedor do Prémio Literário Oliva Guerra 2008)

Outros inéditos deste livro em da poética e Estrada do Alicerce.

1 comentário:

panaceia disse...

Afinal não tinha feito o comentário aqui, mas realmente o Amadeu está de parabéns. Está mesmo que não lhe tivesse sido atribuído outro merecido prémio, porque ele é, realmente, um excelente poeta.