ARMANDO SILVA CARVALHO
MarfinsEm pelota. Rubicundos como velhos gansos. Já fastidiosos. Empolam a membrana onde esgalham versos. Empifarados. Que rilkas coisas estas crianças enfolam no amor pelos livros.
Começam com um lago, um poente, uma flor. A sua mousseline pende das líricas videiras do silêncio.
Sobem ao monte mais próximo onde descobrem um cágado. Deitam-no de costas e põem-se a chorar porque ele não anda.
Começam com um Deus. Uma forma obscuríssima de vida. Depois, a meio caminho, enxotam animais e homens e cotejam essa agreste solidão com extractos de cultura.
Os poetinhas desdenham um teclado sujo.
Enfiam-se em casa, polindo os seus marfins. Despedem a misericórdia dessa vida ingrata de reclusos e dão grandes passeios uterinos. Cansados dos avós, das palmadas no rabo, com olho fito em bibliotecas, esgueiram-se pelos corredores onde os papões os esperam, afeitos à brincadeira. Então a mousseline estica como leite azedado de bambinos.
Os poetas armam zaragatas porque todos pretendem o melhor dos desaguisados.
O povo, esse instrumento sofredor na mão dos literatos, ouve essas bulhas de bufarinheiros, cospe nas mãos e chama-lhes sacanas.
«É perigoso este instrumento dado aos inocentes.»
Os poetinhas fogem da rua dos fanqueiros, das fardas de criada, das popelines e das sarjas. Cegam com o pó que se levanta das peças de riscado e quando as burguesas, furiosas, colocam os maridos no caixote, os poetas saltitam, desdobram mousseline sobre os restos e fazem fogos-fátuos.
O povo, esse vazio onde as pessoas pousam mas não aquecem o lugar para os nomes, desfibra então a paciência, conta os tostões, inveja carpetes, lustres, pianos, magnetofones, e não inspira confiança.
Andam aos bandos como um poema antigo. Aonde esta escolástica precoce que lhes antolha os membros? Deserdados de músculos, com utensílios ineficazes ao pescoço, os poetinhas marujam na versátil confusão dos versos. Vêm-se penosamente nas tardes baças, onde piam pássaros de modo lúgubre, nas noites rígidas e calafetadas. Quando o aquecimento ao rubro já não dá mais margem ao desespero, os poetinhas sobem às cadeiras, retiram as molduras e põem-se ao espelho como as prostitutas.
Besuntam-se de tédio, colocam no rosto esses cremes nefastos que retiram dos armários culturais, desse arsenal de espólios que as famílias do espírito entesouraram para os descendentes.
Conhecem eles a guerra? O instante que se joga no gatilho? A cobiça dos bens? O mar de soluços que sobe pelas pernas podres dos que vão morrendo?
Arremedam o Instante, a Cobiça, o Soluço.
Fogem quando o pavor é real e a máquina uma força indomável que não cede a biografias nem a deuses.
E cantam.
Cantamos.
(de
O Alicate, editorial Presença, 1972)