22.7.14



[por uma adesão do Senegal à CPLP]

LÉOPOLD SENGHOR


ELEGIA DAS SAUDADES

A Humberto Luís Barahona de Lemos


Ouço no mais íntimo de mim o canto de voz umbrosa das saudades.
Será a voz antiga, a gota de sangue português que ascende do fundo dos tempos?
O meu nome que remonta às suas fontes?
Gota de sangue ou então Senhor, a alcunha que um capitão pôs outrora a um bom de um marujo?
Reencontrei meu sangue, descobri meu nome o ano passado em Coimbra, em plena selva dos livros.
Mundo selado de caracteres estritos e misteriosos, ó noite das florestas verdes, alva das plagas inauditas!
Bebi — muros brancos colinas de oliveiras — todo um mundo de proezas de aventuras de violentos amores de ciclones.
Ah! beber todos os rios: o Niger o Congo e o Zambeze, o Amazonas e o Ganges
Beber todos os mares de um só trago, traço negro sem cesura não sem acentos
E os sonhos todos beber todos os livros todo o oiro, os prodígios todos de Coimbra.
Recordar, recordar apenas...

Cameleiro moiro, eis-te pois alçado à minha altura — nesse século de brio
Guerreiro, à altura da minha coragem.
À tua manha oblíqua opor a rectidão da minha lança — que desfere o raio como um veneno
À tua manha, o meu ímpeto sem costura.
Capitão ou marujo, já me não recordo, eu restauro a força dos meus fortes
A sua submissão mais dura do que os muros. Tenho ódio à desordem.
A minha missão é pascer os rebanhos
Tirar a desforra e submeter o deserto ao Deus da fecundidade.
Foi no século da honra.
Bela era a batalha, vermelho o sangue ausente o medo.
À sombra destas dunas, cantam as saudades de minhas glórias idas.

Um dia em Lagos oferta ao mar como a outra Lagos.
Não um rio mas mil rios, não uma lagoa mil lagoas
Um só e único mar com quatro distâncias.
Nenhum paletúvio: uma floresta no dilúvio, sobre a vasa fervilhante de répteis do Terceiro Dia
E no meio das aves-trombetas, macacos com seus gritos de címbalo, uma ascensão de odores mortais
E de outros, suaves como oboés.
Reinava o Terceiro Dia, e a vida corria bem.
Milhões de homens como formigas carnívoras, à corrida pelas pistas do desejo, e mulheres jazentes
Ébrias de sémen de espasmos, ébrias de vinho de palma.
Percebi os signos da Tribo.
O Amor: a morte, e com que exultação! A Morte: o renascimento cortado de raios.

Saudades dos amores antigos, saudades das minhas saudades
Do enorme vácuo vermelho da Imerina.
Ah! eu confundo eu confundo, confundo presente e passado.
Um serão houve em honra do Hóspede, em casa do Senhor dos Altos Planaltos
No meio de velas seda de cabelos, o veludo vivo das vozes o oiro dos braços de âmbar
Ao jorrar do longo queixume da orquestra
E do coro à sua volta. Acaso já ouvistes esses cantos dos Altos Planaltos, que cantam um mundo defunto
Em que a paixão é pura, impossíveis os amores, os corações abismos de vertigem?
Morrer morrer, morrer de um queixume incomensurável
Oh! morrer de um longo queixume que de súbito se nos abisma no coração.
Nada mais há, nada além do enorme e negro vácuo da Imerina.
Sangram ao longe as montanhas, como fogueiras no mato.

Perdido no oceano Pacífico, eu abordo a Ilha Ditosa — meu coração é sempre errante, o mar ilimitado.
Brancas asas de arcanjo têm os tubarões, as serpentes destilam êxtase, e os seixos...
Mulheres que são mulheres, mulheres que são frutos, e sem caroço: mulheres-sésamo.
Na escuridão dos cabelos, flores que são linguagem de Iniciados.
Trago um colar de corais, ofereço-o a quatro flores.
— Não sou livre de amar, terás que voltar amanhã de madrugada.
— A minha corola está aberta, meu mais-que-irmão, ao meu belo Príncipe-Abelha. Abstenham-se sobretudo as borboletas.
— São vãs as tuas armas meu irmão — quão ridículo é o Guerreiro!
— Morro e renasço como quero. O meu amor é milagre.
Era muito longe no tempo e no espaço, e era o mar pacífico.
Não falarei em feitos nem em reinos conquistados aos índios de ambos os horizontes.
Quantas aventuras bebidas na nascente dos rios sagrados!
Mas não tenho gosto pela magia, o Amor é a minha maravilha.
Meu sangue português perdeu-se no mar da minha Negritude.
Amália Rodrigues, canta ó canta em tua voz baixa as saudades dos meus amores antigos
Dos rios das florestas das velas, dos oceanos das praias do sol
E os golpes desferidos e o sangue derramado por tanta coisa fútil.
Ouço no mais íntimo de mim a plangente voz de sombra das saudades.



(tradução de Luiza Neto Jorge, in Poemas, Editora Arcádia, 1977)

20.7.14



LEOPOLDO MARÍA PANERO


TRÊS HISTÓRIAS DA VIDA REAL

I. A CHEGADA DO IMPOSTOR FINGINDO SER LEOPOLDO MARÍA PANERO

Ao amanhecer, quando as mulheres comiam morangos crus, alguém chamou da minha porta dizendo chamar-se Leopoldo María Panero. No entanto, a sua falta de convicção para desempenhar o papel, os seus abundantes silêncios, os seus equívocos ao recordar frases célebres, o seu embaraço quando o obriguei a recitar Pound e, finalmente, a pouca graciosidade das suas graças, convenceram-me de que se tratava de um impostor. De imediato, fiz vir os soldados: ao amanhecer do dia seguinte, quando os homens comiam peixe congelado, e na presença de todo o regimento, foram-lhes arrancados os galões, o fecho de correr, e deitado ao lixo o seu batom, para ser fuzilado logo de seguida. Assim acabou o homem que fingiu ser Leopoldo María Panero.

II. O HOMEM QUE ACREDITAVA SER LEOPOLDO MARÍA PANERO

Chovia e chovia sobre a casa de De Kooning, célebre pelas suas aparições. Ali, o filho mais novo de De Kooning, levantou-se nervoso da cama, vestiu um roupão e foi para o quarto do seu pai para lhe dizer que era Leopoldo María Panero. Enquanto se demorava a enfatizar o seu desgosto pelo filme Chávarri El Desencanto, não teve outra alternativa senão chamar um psiquiatra. Já no manicómio, persistiu no seu delírio, imaginava cenas de infância, ruas de Astorga, sinos, a pancada do meu pai. Depois de um rápido electrochoque, passou a acreditar ser Eduardo Haro, uma pequena variante da primeira figura. De imediato começou a coxear e a tossir e então afirmou ser Vicente Aleixandre. Enquanto isso, na casa do De Kooning, por entre o ruído de correntes, continuam a multiplicar-se as aparições.

III. O HOMEM QUE MATOU LEOPOLDO MARÍA PANERO (THE MAN WHO SHOT LEOPOLDO MARÍA PANERO)

O meu querido amigo Javier Barquín sempre irá acreditar que foi ele quem matou Leopoldo María Panero. Mas isso não é verdade. Ninguém nesse tempo tinha coragem para o fazer. O sujeito tinha aterrorizado a cidade inteira. Tinha raptado várias mulheres e ameaçara torturá-las. Por isso nessa tarde tomei a decisão, fui à espingardaria do Jim e comprei um revólver calibre 45. No momento em que Leopoldo María Panero tentava mais uma vez extorquir Javier Barquín, disparei de longe. Como Javier também tinha sacado de uma pequena pistola, supôs ter sido ele a fazer justiça. Toda a sua vida irá acreditar que foi ele que matou Leopoldo María Panero. Mas não foi assim. Eu sou o homem que matou Leopoldo María Panero.


(tradução minha – original in Estaciones, 2 otoño-invierno, 1980-81 / reproduzido in Poesia Completa 1970-2000, edic. de Túa Blesa, Visor Libros, 2004)