20.10.04

ANTÓNIO OSÓRIO

LXXIV: O POETA É UM PINTOR CEGO
(MIGUEL ÂNGELO)

Cego de palavras.
Intempéries, da verdade.
Chuva
futura, manancial
de nuvens.

Palavras ígneas:
acendalha, carqueja,
lava impreterível.

Ou constrangidas:
pureza, embalsamar o tempo,
amor desdobrável.

Palavras desgraçadas:
orfanato, coval, magarefe
untuoso de sangue.

Ou felizes:
filodendro, verdelha, cordeiro
dormindo no dorso de sua mãe.

Palavras proibidas:
absoluto, garganta
do rio, vidente do insolúvel.

E outras cegas palavras:
a imunidade
(orgulhosa) do suplicante.
O resgate - ilacerável, imenso.

(de Décima Aurora, 1982)
Textos demasiado longos, demasiado curtos, demasiado alinhados, demasiado desalinhados, demasiado presentes, demasiado ausentes, demasiado sociais, demasiado espirituais, demasiado heréticos, demasiado profanos, demasiado atabalhoados, demasiado perfeitinhos, demasiado iconoclastas, demasiado ortodoxos.

19.10.04

EUGÈNE IONESCO

Sejamos vivos, estejamos presentes no instante como estávamos há dez anos, há vinte anos, há cinquenta anos, sessenta anos. O instante de há muito tempo não era nem mais longo nem mais curto que o instante de hoje.
Que verdade profunda a que se diz sobre La Palice: «Um quarto de hora antes da morte, ainda ele estava vivo.» Todos nós nos encontramos um quarto de hora ou não, um quarto de hora ou mais, antes da morte. Toodos vivemos em momentos tão longos, tão curtos, em tão numerosos instantes, tão numerosos instantes, inúmeros instantes...
Deitada, ao meu lado, lê. Serenamente. O meu amor não é irreal, o amor não é irreal. A vida do amor é de uma realidade irrefutável. Tenho agora a certeza de que o amor é eternamente irrefutável.

(in A Busca Intermitente, tradução de Manuel João Gomes, Difel, 1990)