23.1.04

lembrei-me hoje de uma frase cantada por Alison Moyet nos anos 80:

Weak in the presence of beauty

(em jeito de agradecimento)



Gérard Castello Lopes - Carcavelos, 1956


O ruído com que nascem aves e ondas
celebra o que de inverno a praia tem;
move-se na ausência destes dias,
pequenos limites que levamos connosco:
aves e ondas que nascem só.

22.1.04

MARIA GABRIELA LLANSOL

(excerto de) O Chão das Três Árvores

Abel sentou-se no chão. Via Sara de perfil, debruçada sobre o alguidar em que a brancura dos pratos purificava a água suja.
- Sara, tudo o que existe faz aumentar a luz.
- Como?
- Metes as mãos na água ela sobe no alguidar. Metes nesta casa uma cama, um armário e a luz também tem de aumentar. Tem de ir para algum sítio a luz que já não está no lugar da cama e do armário.
- Mas não é assim.
- Não. Pensei isto de manhã, enquanto guiava a camioneta.
Sara sentou-se também no chão, em frente de Abel. Os seus pés não tinham meias, nem sapatos.
As palavras "Sara, tudo o que existe faz aumentar a luz", " Metes nesta casa uma cama, um armário e a luz também tem de aumentar", eram o vidro que desunia os corpos de Sara e Abel.

(in Os Pregos na Erva, 1962, 2ª ed: edições Rolim, 1987)

21.1.04

LEBRE DOS ARROZAIS

quando os pássaros são imagens
inquietas do frio, e as sombras
movimentos onde as despedidas
se repetem.

desperto de diálogos que desfazem o sono

sei que para além da noite
há um inverno a dançar
nos meus medos

[roubado do respectivo blog...]
PEDRO GIL-PEDRO

Nasceu em Sesimbra, em 1973


Junto ao coração esperam
as filhas insanas do esquecimento.

Tão loucas através dos fios e dos tendões.

No seu perfil suado de lâminas, às vezes.

*

Ante os freios
silvestre matura
o fogo.
Entre a matriz e as varas.
Elas
traçam os círculos fusíveis
em torno do eco.

A pedra cresce.

Assim seja.

(in Alma Azul / revista de artes e ideias, Abril de 2002)


Primeiro as agulhas maduras
o fogo com a inclinação de um cutelo.

e a luz

uma fresta na respiração da umbria.

*

Nos dobres da névoa
já não lateja o pulso dormente

das crias

artesoando vértebra sobre
vértebra as toadas da sede.

mas os nascituros

ignoram o azebre ignoram
as núpcias - vão com adormecidos
num círio.

nada lhes digas

até que rompa de novo a primavera
e a sarça

se espalhe nos lameiros.

*

uma corola de obscuridade

o semeador entrelaça as mãos e o corpo
nos instrumentos da ira e propõe-se

enfim

a lascar o silêncio
por fora

e por dentro

até à fulguração da pedra.

(de animais cheios de movimento no inverno, Quasi edições, 2002 - Uma existência de papel)


Por que cose deus a pedra ao coração
dos alveneres como decifrasse a sua própria
metalurgia

e arrasta o panal de sangue
sobre a corrosão da umbria sobre o hálito
simples e perplexo das caleiras abrindo
pelas costas o esquecimento

por que cose deus rente
ao coração e se alouca com o talento
assente em toda a silha vascular -

com os prumos em riste ao golpear a morte -

por que depõe a réstia de claridade
entre as mós obsessivas se elas já não se
movem

e se cose à pedra

(in saudade - revista de poesia, nº 4 - Junho de 2003)

20.1.04

Só o amor é frágil:
há sempre nomes que o dizem nas sombras,
longínquos lugares dentro das cidades
que recolhem templos iguais ao fogo.
CÍCERO

Importa, porém, determinar quais são os limites de uma amizade e, por assim dizer, as fronteiras do afecto. A tal propósito vejo que circulam três opiniões, das quais não aprovo nenhuma: a primeira é que tenhamos para com o amigo os mesmos sentimentos que para connosco próprios; a segunda, que a nossa estima pelos amigos corresponda exacta e justamente à estima que eles têm por nós; a terceira é que cada um seja apreciado pelos amigos quanto ele próprio se estima a si mesmo.
Destas três opiniões não concordo absolutamente com nenhuma. Com efeito, a primeira, que cada um se sinta, em relação ao amigo, animado dos mesmos sentimentos que para consigo mesmo, não é verdadeira. Quantas coisas, na verdade, que nunca faríamos por nossa causa, fazemos por causa de amigos, como rogar a quem é indigno de nós, suplicar-lhe, ou então atacar alguém com excessiva dureza e persegui-lo com demasiada violência! Atitudes que, por nosso interesse, são tidas por pouco honestas e que, em proveito de amigos, se tornam da maior honestidade; e muitas são as circunstâncias em que homens de bem sacrificam e permitem que sejam sacrificadas muitas das suas conveniências para que delas possam fruir, mais que eles próprios, os seus amigos.
A segunda opinião é a que define a amizade pela paridade de troca de favores e sentimentos. Isto é realmente reduzir a amizade, numa visão estreita e mesquinha, a uma operação de contabilidade, de modo a que fiquem iguais as contas entre o deve e o haver. A mim parece-me que a verdadeira amizade é mais rica e mais dadivosa, e que não se põe a calcular com extremo rigor se vai dar mais do que recebeu. E nem se deve recear que, na amizade, nada caia ou se derrame no chão ou nela se acogule nada acima da rasoira.
Mas a fronteira de todas é a terceira: que cada um seja tão apreciado pelos amigos quanto ele mesmo se aprecia a si próprio. De facto, muitas vezes, em certos homens, o seu espírito mostra-se um tanto abatido, ou quebrantada demais a esperança de melhorar a sua condição. Não é, pois, próprio de um amigo ser para com ele tal como ele é para consigo mesmo, mas antes esforçar-se e fazer por levantar o ânimo prostrado do seu amigo e por lhe incutir uma esperança e um pensamento melhores. Impõe-se, pois, fixar um outro limite para a verdadeira amizade, desde que antes vos diga o que Cipião costumava acima de tudo censurar. Dizia ele que não se poderia encontrar nenhuma afirmação mais inimiga da amizade que a de quem sustentara que «convém amar como quem está na disposição de, um dia, odiar»; e que não podia ser levado a acreditar que esta frase tivesse sido, como se julgava, dita por Bias, que foi tido por um dos Sete Sábios; mas que era a opinião de alguém sem escrúpulo, ou ambicioso, ou que tudo orientava para seu poder pessoal. De facto como poderá alguém ser amigo de quem ele próprio julga poder ser inimigo? Mais ainda, será inevitável, nesse caso, desejar e ansiar que o amigo caia falta o maior número de vezes possível, para lhe dar, por assim dizer, mais asas por onde pegue com ele e o repreenda; e, ao contrário, será fatal que, diante das coisas bem feitas e dos sucessos dos amigos, se angustie, se doa e sinta inveja.
Portanto, tal preceito, seja ele de quem for, só serve realmente para destruir a amizade. Deveria, antes, preceituar-se que, na escolha de amigos, tivéssemos o cuidado de em dia nenhum começarmos a amar alguém a quem um dia pudéssemos vir a odiar. Mais ainda, se tivéssemos sido pouco felizes na escolha, no entendimento de Cipião deveríamos antes suportá-lo do que cogitar a ocasião das inimizades.

(capítulo XVI de A Amizade, introdução, versão do latim e notas de Sebastião Tavares de Pinho, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1993)

19.1.04

EUGÉNIO DE ANDRADE

RUMOR DO MUNDO


As palavras, vício
torpe, antigo,
As últimas? As primeiras?
Como os ouriços
abrem-se ao rumor do mundo:
o sol ainda verde dos limões,
os esquilos
de outras tardes, o latido
da chuva nas janelas,
os velhos em redor do lume
- nunca foram tão belas.

(de Rente ao Dizer, 1992)
FAUSTO

EUROPA QUERIDA EUROPA


Europa nascida na Ásia profunda
ó filha do rei fenício Agenor
que Zeus entranhado no corpo de um touro
levou-te p'ra Creta cativo de amor
Europa é de Homero
de helénicas formas
do forum romano e da cruz
de tantas nações
ariana e semita
ventre das descobertas
da luz
do diverso sistema do modo diferente
da era da guerra e agora da paz
és assim querida Europa

vem que eu te quero toda do mar à montanha
vem que eu quero muito mais bela que o mar
vem vencendo cizânias que os povos sem feudos
sempre se amaram brilhantes em todo o lugar
o teu chão não é traste
de meros mercados
de pauta aduaneira
ou cifrão
é um terrunho de almas
uma ideia
um desejo
de uma nova maneira
em fusão
desfazendo complexos d mapas cor-de-rosa
sem a má consciência no verso e na prosa
só por ti querida Europa

para que sejas tu mesma a decidir o teu uso
para que sejas tu mesma ainda mais natural
não me toques o "beat" à americana
que esse já nós conhecemos na versão original
aguenta-te firme
livre de imitações
espera só mais um pouco
já vai
o que resta e o que sobra
aquela mesma saudade
toda a imaginação
ainda mais
não sentes um vago um suave cheiro a sardinhas
a algazarra nas ruas e o troar dos tambores
somos nós querida Europa

(do álbum Para além das Cordilheiras, de 1987)
Tenho, nas últimas semanas, retomado a audição da obra de um músico e poeta de que gosto muito: Fausto Bordalo Dias.
É sem dúvida um dos nossos maiores criadores de canções e no entanto pouco se fala dele, não chega a todos os que poderiam desfrutar e aprender algo com ele.

O álbum que oiço agora é de 1987 e chama-se Para além das Cordilheiras (foi reeditado em CD em 1999). É uma profunda e lucidíssima reflexão sobre a Europa.
Neste disco, Fausto fala da maior parte das questões importantes para um reconhecimento de uma Europa das pessoas, vistas não só como cidadãos, ou consumidores, ou eleitores - como pessoas. Fausto canta evocando a História, a Cultura e as culturas, as diferenças e as complementaridades, as necessidades sociais e económicas - os afectos. E tudo isso com excelentes canções, com um sentido da beleza e da profundidade.
Faz-me lembrar como os políticos e os tecnocratas se esquecem tantas vezes (sempre?) da arte nas decisões que tomam, quando esta poderia dar sentido a tantas delas.

18.1.04

Começa hoje a semana de oração pela unidade dos cristãos.

Penso que a unidade dos cristãos não é uma coisa que tenha que depender de políticas, acordos ou muito menos negociações ou exigências. Não é uma coisa de estratégias ou análises geo-estratégicas.

Contudo é, de facto, uma urgência, como diz o Papa. Mas não a qualquer preço.

Pelo que vou sentindo, acho que nesta questão do entendimento entre cristãos precisamos, antes de mais, de saber bem em que é acreditamos, as nossas próprias histórias de luzes e sombras e distinguir o essencial do acessório e, depois, é necessário conhecer os outros, perceber-lhes as razões históricas e doutrinais.

Os ferverosos do ecumenismo insistem com persistência na valorização daquilo que nos une, nos encontros apaixonados e de partilha absoluta.
As precipitações geram equívocos e novos e mais graves problemas.
Sou pela prudência. Os entusiasmos precipitados podem-nos levar à confusão. Às tantas, com tanta partilha e suposta unidade podemos ficar sem saber o que é importante e o que não é. A relativização dos valores religiosos adquiridos ao longo de uma vida pode ser fatal. Não faz sentido abdicar de valores que sempre se tiveram como certos apenas por uma questão de mero entendimento momentâneo.

Acho importantíssimos os apelos do Papa para que os católicos, em comunidade ou individualmente, estabeleçam contacto com comunidades ou indivíduos de outras tradições cristãs, sobretudo através da oração e da leitura do Evangelho, mas creio que também o distanciamento prudente é essencial para estabelecer uma unidade. Há uma certa distância propícia à melhor contemplação e percepção. Além disso, é necessário assumirmos que somos diferentes, que temos concepções e ideias distintas de uma fé que decerto radica no mesmo Senhor, Jesus Cristo. A unidade a ser feita só pode ser aquela que o Espírito, que sopra onde (...e como ...e quando) quer, permitir.

Parece-me mais importante para a unidade dos cristãos ir almoçar com um protestante e conversarmos acerca dos penalties da última jornada, do que aventurarmo-nos em considerações teológicas. (eu, que nem ligo a futebol...)