20.1.04

CÍCERO

Importa, porém, determinar quais são os limites de uma amizade e, por assim dizer, as fronteiras do afecto. A tal propósito vejo que circulam três opiniões, das quais não aprovo nenhuma: a primeira é que tenhamos para com o amigo os mesmos sentimentos que para connosco próprios; a segunda, que a nossa estima pelos amigos corresponda exacta e justamente à estima que eles têm por nós; a terceira é que cada um seja apreciado pelos amigos quanto ele próprio se estima a si mesmo.
Destas três opiniões não concordo absolutamente com nenhuma. Com efeito, a primeira, que cada um se sinta, em relação ao amigo, animado dos mesmos sentimentos que para consigo mesmo, não é verdadeira. Quantas coisas, na verdade, que nunca faríamos por nossa causa, fazemos por causa de amigos, como rogar a quem é indigno de nós, suplicar-lhe, ou então atacar alguém com excessiva dureza e persegui-lo com demasiada violência! Atitudes que, por nosso interesse, são tidas por pouco honestas e que, em proveito de amigos, se tornam da maior honestidade; e muitas são as circunstâncias em que homens de bem sacrificam e permitem que sejam sacrificadas muitas das suas conveniências para que delas possam fruir, mais que eles próprios, os seus amigos.
A segunda opinião é a que define a amizade pela paridade de troca de favores e sentimentos. Isto é realmente reduzir a amizade, numa visão estreita e mesquinha, a uma operação de contabilidade, de modo a que fiquem iguais as contas entre o deve e o haver. A mim parece-me que a verdadeira amizade é mais rica e mais dadivosa, e que não se põe a calcular com extremo rigor se vai dar mais do que recebeu. E nem se deve recear que, na amizade, nada caia ou se derrame no chão ou nela se acogule nada acima da rasoira.
Mas a fronteira de todas é a terceira: que cada um seja tão apreciado pelos amigos quanto ele mesmo se aprecia a si próprio. De facto, muitas vezes, em certos homens, o seu espírito mostra-se um tanto abatido, ou quebrantada demais a esperança de melhorar a sua condição. Não é, pois, próprio de um amigo ser para com ele tal como ele é para consigo mesmo, mas antes esforçar-se e fazer por levantar o ânimo prostrado do seu amigo e por lhe incutir uma esperança e um pensamento melhores. Impõe-se, pois, fixar um outro limite para a verdadeira amizade, desde que antes vos diga o que Cipião costumava acima de tudo censurar. Dizia ele que não se poderia encontrar nenhuma afirmação mais inimiga da amizade que a de quem sustentara que «convém amar como quem está na disposição de, um dia, odiar»; e que não podia ser levado a acreditar que esta frase tivesse sido, como se julgava, dita por Bias, que foi tido por um dos Sete Sábios; mas que era a opinião de alguém sem escrúpulo, ou ambicioso, ou que tudo orientava para seu poder pessoal. De facto como poderá alguém ser amigo de quem ele próprio julga poder ser inimigo? Mais ainda, será inevitável, nesse caso, desejar e ansiar que o amigo caia falta o maior número de vezes possível, para lhe dar, por assim dizer, mais asas por onde pegue com ele e o repreenda; e, ao contrário, será fatal que, diante das coisas bem feitas e dos sucessos dos amigos, se angustie, se doa e sinta inveja.
Portanto, tal preceito, seja ele de quem for, só serve realmente para destruir a amizade. Deveria, antes, preceituar-se que, na escolha de amigos, tivéssemos o cuidado de em dia nenhum começarmos a amar alguém a quem um dia pudéssemos vir a odiar. Mais ainda, se tivéssemos sido pouco felizes na escolha, no entendimento de Cipião deveríamos antes suportá-lo do que cogitar a ocasião das inimizades.

(capítulo XVI de A Amizade, introdução, versão do latim e notas de Sebastião Tavares de Pinho, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1993)

Sem comentários: