JORGE DE SENA
Antes de mais, reflictamos que, no estado actual da
civilização, muita gente há, a esmagadora maioria, para quem a literatura não
existe. E só os nossos desejos ou anseios humanísticos nos demonstram que,
modificadas as circunstâncias, e tornado geral o hábito da leitura e
distribuída imparcialmente a educação do gosto, aquilo a que chamamos as
grandes obras literárias encontrará uma igual e equitativa receptitividade. De
resto, só por si, o hábito da leitura não significa um conhecimento ou
reconhecimento da literatura como tal. Mas, ainda que esse reconhecimento se
processe em muitos leitores, daí não resulta que eles sintam necessidade de
situar, correlacionar, comparar, historiar o que estimam, que os fira o apetite
de o comunicarem a outros as observações que fizeram, ou que a literatura
ocupe, em suas vidas, um lugar preponderante, absorvente, que seja ela o que dá
sentido e estrutura a essas vidas. Do mesmo modo, estudar literatura não
implica também um conhecimento ou reconhecimento dela, em extensão e em
profundidade, cada vez mais se observa, no mundo de hoje, a tendência para
limitar o âmbito do que se estuda, para isolar do resto o objecto de estudo,
para elevar à contemplação satisfeita as últimas minudências de que se é capaz.
Cada vez mais se observa, até, o curioso fenómeno de estudar literatura sem
conhecê-la, evitando-se mesmo conhecê-la, preferindo-se as considerações
críticas e a análise dos métodos críticos às próprias obras a que umas e outros
se aplicam ou seriam aplicáveis. E uma atitude dessas de modo algum pressupõe
que se pretenda ensinar ou viver o que, afinal, é já um objecto de segunda
ordem. Também o ensino da literatura tende, cada vez mais, para o
desconhecimento, a desestima, a não-vivência dela. De resto – e decorre da própria
essência da literatura – teria de ser necessariamente assim. Porque a
literatura não pode ser ensinada. Ensinar seja o que for é apresentar um
instrumental adequado e explicar a maneira de uma pessoa tirar o proveito dele.
Daí resulta que se ensina a escrever estudos sobre literatura, e estudos sobre
os estudos de literatura, indefinidamente; ou se ensina a ensinar literatura.
Quando afinal, aquilo que verdadeiramente, e do ponto de vista da literatura
como tal, pode ser ensinado, não é uma literatura sem história ou uma história
sem literatura, mas a consciência de que, como tal, e como sucede a todas as
coisas ante a lucidez harmoniosa do que são e representam, a literatura não se
basta a si própria, e só é literatura, verdadeira e autêntica literatura,
quando deixa de o ser, isto é, quando ultrapassa, por sua própria essência, os
quadros em que se define como autónoma e independente. O único ensino
verdadeiro é este: o de que a literatura é um equilíbrio precário entre ser ela
mesma e não ser tudo aquilo que se espera ou se pretende que ela seja.
(excerto do ensaio «Amor da literatura», datado de 1961 e
incluído em O Reino da Estupidez - I, 3.ª edição: Edições 70, 1984)