18.10.08

RUY DUARTE DE CARVALHO

Monumental estrutura erguida do assento, a desdobrar-se em carne enquanto uma das mãos penetra o céu e a outra esmaga, com acostumados dedos, a folhagem madura de um ramo ao seu alcance, nervuras colossais do calcanhar ao dorso, a dar contorno às coxas, petrificadas massas de cimento armado, postas ali num gesto de euforia. Se o zoom é permitido avante então, acometemos estes hemisférios até não divisar senão a linha que divide as partes, descer por ela abaixo e penetrar no cheiro, afastar, com as mãos, os juncos e a chipipa, a custo caminhar no lodaçal do mangue e ouvir o borbulhar da vida ali contida. Oh corpo de cimento aparelhado em curvas, utilitária mama feita para aleitar, eis a distância, eis a distância que há para além dos livros, tu mama fina só relevo e cor, leve acidente em torso de rapaz, fêmea distante a olhar-me fria e grave, ciente do meu jogo e dos meus trunfos. O mão molhada, aqui, na minha frente, que vai ao peito para untá-lo negro, o brilho dos adornos prolongado ao ventre e o cuidado que há, eis um requinte extremo, no ajustar do pano às virilhas espessas enquanto o corpo recupera o assento e de novo se empenha a cativar o fogo.

(de Hábito da Terra, 1988 – in Lavra, Poesia reunida 1970-2000, edições Cotovia, 2005)

[Queijas, 18 de Outubro de 2008]

17.10.08

[Será que o poema poderá suster a sua verde adolescência?]


ANTÓNIO RAMOS ROSA

Os versos podem ser pedras brancas
ou cabeleiras
um líquido murmúrio vagamente solar
a cintilação de uns olhos na brisa ou na folhagem
as vibrantes antenas de um insecto
o perpassar de uma sombra sobre um rio
um ávido crescimento
um alvoroço intenso

Às vezes todas as imagens parecem aspirar
à pura tranquilidade de um deserto
ou de um reino azul desconhecido
Outras vezes são escuramente velozes
ou ofuscantes como relâmpagos num abismo
Quando sobem em espiral dentro de um corpo
tocam um céu de folhas e de um azul cristalino
Outros consagram o pão dos homens com a luz
ou oferecem o seu sangue nas suas pontes de sombra
Alguns são tão suaves como a brisa de um olhar
ou tão transparentes como um corpo de água
Outros abrem as portas às bocas sequiosas
e são o desejo de chegar às fontes vivas
com mãos de mercúrio e incandescentes cabelos
Mas todos têm a chama de um amor branco do espaço



Sabemos que não há resposta
e que a não resposta é um não há
Qual é o rumo então dos nossos passos?
Estamos talvez num círculo que é o círculo do tempo
Mas a nossa aspiração é encontrar o espaço
ou formar o espaço
em que a ausência e o desejo coincidam
numa palavra que seja
a palavra mais contigua ao silêncio
como um tapete antigo mas recente
com a frescura nova para habitar o dia



O que há de mais nu
é o fértil murmúrio do ócio e do olvido
Talvez não seja mais do que a vibração do nada
ou o frémito do silêncio como um pólen branco

Há uma equivalência entre a página e a espádua côncava
do dia Dir-se-ia que uma mulher lavou
um solo vermelho e que à fronte subiu
a frescura inicial dessa passagem de água
e que o silêncio novo lavou as veias

É então que reparamos numa plácida jarra
com duas flores brancas e sentimos o odor denso
de um nome impronunciado que inunda toda a casa
com vigor lento de uma larga pulsação
que tem a brancura espessa do pulmão de um deus



O que será o silêncio? Como pode o poema
partir do que ignoramos e a que damos um nome
sem saber a sua natureza e qual a sua plenitude?
Não será ele apenas um pressentimento um frémito
sem existência própria um irredutível quase
que nunca chegasse à revelação de um termo ou ao cimo de si mesmo?
Nós sentimo-lo como se a luz vagarosamente repousasse
numa onda de suavidade e o barco do efémero
revelasse a plenitude do eterno a essência viva
do nosso ser sob o voluptuoso véu de um sono imaculado
Sentimos a nudez da brancura e nela o princípio o centro e o alvo
do nosso desejo de coincidir com a indizível formosura
que numa onda silenciosa ascende e sem se revelar culmina
numa corola transparente ou num jardim de nuvens
de que só apercebemos o aroma branco e subtil
que não embriaga mas nos inebria como se vogássemos numa lua
que fosse unicamente aérea e de pura identidade
Será que o poema poderá suster a sua verde adolescência
e receber este sopro diáfano para que ele próprio seja um astro de silêncio?

(in Bumerangue N.º 1)

16.10.08

EUGÉNIO LISBOA

AS ESPERADAS PALAVRAS


(...)
É sempre doloroso e, por fim, ocioso, tentarmos saber o que é e o que não é poesia. Alguém afirmou já, em desespero, que poesia é a tentativa ímpia de se pintar a cor do vento. Tudo acaba sempre, se formos honestos, numa impressão de estarmos ou não estarmos diante de um acto poético. Prova, rigorosamente, não há, por mais que o pretendam os normativos de serviço, os quais por vezes se encontram, curiosamente, entre os próprios poetas. Et pour cause!
(...)

(excerto do prefacio de A Flor que Havia na Água Parada, de Maria Judite de Carvalho, publicações Europa-América, 1998)

15.10.08

Santa TERESA DE ÁVILA

VIVO SEM VIVER EM MIM


Vivo sem viver em mim
e tão alta vida espero,
que morro por não morrer.

Vivo já fora de mim,
depois que morro de amor,
porque vivo no Senhor,
que me quis só para si.
Meu coração lhe ofereci
pondo nele este dizer:
Que morro por não morrer.
Esta divina prisão
do amor em que hoje vivo,
tornou Deus o meu cativo
e livre meu coração.
E causa em mim tal paixão
Deus meu prisioneiro ver,
que morro por não morrer.
Ai, que longa é esta vida!,
que duros estes desterros!,
esta prisão, estes ferros
em que a alma está metida!
Só esperar a saída
causa em mim tanto sofrer
que morro por não morrer.
Ai, que vida tão amarga,
sem se gozar o Senhor!,
porque, se é doce o amor,
não é a esperança larga.
Tire-me Deus esta carga,
pesada a mais não poder,
que morro por não morrer.
Somente com a confiança
vivo de que hei-de morrer,
porque, morrendo, o viver
me assegura minha esp’rança.
Oh morte que a vida alcança,
não tardes em me aparecer,
que morro por não morrer.
Olha que o amor é forte:
vida não sejas molesta;
pra ganhar-te só te resta
perder-te sem que me importe.
Venha já a doce morte,
Venha já ela a correr,
que morro por não morrer.
A vida no alto cativa,
que é a vida verdadeira,
até que esta não nos queira,
não se goza estando viva.
Não me sejas, morte, esquiva;
só pla morte hei-de viver,
que morro por não morrer.
Como, vida, presenteá-lo,
o meu Deus que vive em mim,
se não perdendo-te a ti,
pra melhor poder gozá-lo?
Quero, morrendo, alcançá-lo,
pois só dele é meu querer:
que morro por não morrer.


(tradução de José Bento)

13.10.08

[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia XI]

Sobre Cristovam Pavia, ver ainda a evocação, hoje, de Ruy Ventura, retirada de um seu livro inédito, e uma crónica recente de António Lobo Antunes.
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia X]

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

O PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA


Recifense criado no Rio,
não pôde lavar-se um resíduo:
não o do sotaque, pois falava
num carioca federativo.
Mas certo sotaque de ser,
acre mas não espinhadiço,
que não pôde desaprender
nem com sulistas nem no exílio.

(de Museu de Tudo, 1975)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia IX]

PEDRO TAMEN

TRÊS FRAGMENTOS À MEMÓRIA DE CRISTOVAM PAVIA


1

O fundo esse por onde tu saíste
qual é ele? Só uma coisa sei:
que é, e por aí
foste encontrar as glicínias virgens.
E mais do que nunca no maior silêncio
nos repetes teu branco telegrama.
Nos caminhos da quinta, as doninhas
também elas se calam, e as palmeiras:
o mundo inteiro é tua testemunha.


2

Quando já era tarde e eu não mais falava
(eu; que tu amavas dentro)
as ruas eram ocas, transparentes,
começava a nascer o outro dia.
Porque era ainda cedo.

3

E hoje o teu rosto é uma faca
que nos divide em um.

(1968)

(da secção “esparsos” de Retábulo de Matérias (1956-2001), Gótica, 2001)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia VIII]

MANUEL BANDEIRA

O LUTADOR


Buscou no amor o bálsamo da vida,
Não encontrou senão veneno e morte.
Levantou no deserto a roca-forte
Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida!

Depois de muita pena e muita lida,
De espantoso caçar de toda sorte,
Venceu o mostro de desmedido porte
- A ululante Quimera espavorida!

Quando morreu, línguas de sangue ardente,
Aleluias de fogo acometiam,
Tomavam todo o céu de lado a lado.

E longamente, indefinidamente,
Como um coro de ventos sacudiam
Seu grande coração transverberado!

30 de Setembro – 1.º de Outubro de 1945.

(de Belo Belo, 1948)



PALINÓDIA


Quem te chamara prima
Arruinaria em mim o conceito
De teogonias velhíssimas
Todavia viscerais

Naquele inverno
Tomaste banhos de mar
Visitaste as igrejas
(Como se temesses morrer sem conhecê-las todas)
Tiraste retratos enormes
Telefonavas telefonavas...

Hoje em verdade te digo
Que não és prima só
Senão prima de prima
Prima-dona de prima
- Primeva.

(de Libertinagem, 1930)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia VII]

CRISTOVAM PAVIA

POEMA


Súbitos mergulhadores descendo nas águas inimigas
Com os olhos fitos e os peitos esmagados,
Descendo devagar, ao som lento de segundos vertiginosos como séculos,
Todos nós vos acompanhamos e juntamos todas as nossas forças na mesma meditação.
Aqui, da terra firme,
Entre nuvens e terra,
Entre o suor e o orvalho,
Esperamos o termo com todas as nossas forças.
E sabereis a nossa mensagem:
Só há saída pelo fundo.

(de 35 Poemas, 1959)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia VI]

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

1945

Outubro, 5 – No apartamento de Manuel Bandeira, para pedir-lhe autógrafo no álbum de uma amiga de Maria Julieta. Conta-me que recebeu há dias carta de uma prima freira, na qual se falava de uma santa que teve o coração transverberado (atravessado de luz). A palavra invocou-o, sem que entretanto lhe viesse à idéia fazer um poema de que ela fosse núcleo ou participante. Eis que, domingo, o poeta almoçou “com uma pequena”, e depois estiveram em intimidade. Veio-lhe a seguir o estado de modorra, durante o qual compôs mentalmente um soneto, com título e tudo: “O lutador”. No dia seguinte, escreveu a peça, mudando-lhe apenas uma palavra. O “coração transverberado” aparece no fecho do soneto; composto todo ele em estado de semiconsciência, não como ato de inteligência, diz Bandeira.

Nota de 1980: O poeta narra o caso em sei Itinerário de Pasárgada, publicado em 1954: “Tanto este soneto como Palinódia são coisas que tenho que interpretar como se fossem obra alheia.”

(de O Observador no Escritório, editora Record, 1985)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia V]

NUNO BRAGANÇA

A cronologia: labirinto só de uma saída: o meter-se um em bocas de Minotauro, bicho antigo dietando de homem vivo que se deixe frangalhar. Por sob o que sucede numa dada ordem, outra existe. Jonas forcejando por jogar-se fora da Baleia Branca tem de ser o captar receitas estratégicas, decifração do mapa que nos diz como, por baixo das falsas ruas, as verdadeiras se entrelaçam. Descobrir os modos aguentadores no actuar segundo as catacumbas fingindo actuar à superfície. É isto a salvação. Só quem perseverar até ao fim de si verá o Sol no meio da noite. Só há saída pelo fundo. Irmão Cristovam.

(excerto de A Noite e o Riso, 1969)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia IV]

ARNALDO SARAIVA / MANUEL BANDEIRA

Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira,
teu nome é para nós, Manuel, bandeira.
Procuro, em vão, pelas paredes da casa do poeta, esta lapide que para ele poliu um outro poeta, que, estreante, por ele foi entusiasticamente saudado e que com ele vem trocando uma amizade bem brasileira (pernambucana e mineira), palavras como só eles sabem, em verso e prosa, trabalhos editoriais, e a glória da autoria de alguns dos melhores poemas da língua portuguesa deste século.

(…)

Quase 50 anos são passados sobre a publicação do seu primeiro livro de poemas: como vê hoje essa publicação?
Com o meu primeiro livro de poemas eu não quis fazer carreira literária. Doente, o meu maior sofrimento era pensar que ia morrer sem ter feito nada. Ora a única coisa que eu podia fazer era nada. Arranjei um violão, uma «chaise longue», e assim surgiu A Cinza das Horas. Um desabafo, portanto. Um desabafo que, como tal, não transcendeu as minhas dores pessoais. Eu era menino alegre e brincalhão, mas a tuberculose fizera-me triste. Já em Carnaval eu estava melhor, e o meu fundo de «sense of humour» apareceu. Neste livro eu fiz as primeiras tentativas de verso livre em português, que agradaram muito a Guilherme de Almeida e a Mário de Andrade, graças aos quais passei a ser um poeta modernista, a conhecer a poesia de vanguarda da Europa e a transformar-me num poeta «affiché». Penso, porém, que só cristalizei em Libertinagem, e que A Cinza das Horas era um livro bem feito, mas não passava da confidência de um sentimental.

Nesse livro acusava grande influência de poetas portugueses.
Sim, principalmente de Camões e de António Nobre. Desde os meus 13, 14 anos que eu sabia de cor os principais episódios de Os Lusíadas. De António Nobre aproximou-me sobretudo a doença, que me levou a um sanatório suíço de Clavadel, que ficava muito perto do chalé onde ele passou algum tempo, para, como eu, se curar.

(…)

Este homem que luta contra a morte desde os 18 anos, agora, que caminha para os 80, ainda conserva dentro de si «o menino alegre e brincalhão». Ao longo deste encontro saiu-se com diversos apartes, que não posso transcrever aqui, e soltou frequentes gargalhadas, em que mostrava todo o seu vigoroso, cerrado e harmónico aparelho dentário. De tal modo que, quando saí, já não cantava dentro de mim a inscrição da lápide drummoniana, mas antes os versos, tão cheios de humor quanto de simplicidade, em que Bandeira se auto-retratou:

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crónicas
Ficou cronista de província;
Arquitecto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

(1965)

(excerto de entrevista, in Encontros Des Encontros, livraria paisagem, 1973)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia III]

JOÃO BÉNARD DA COSTA

Alguns permaneceram – e permanecem – católicos. Quase todos deixaram de o ser. Alguns tiveram ainda posições de relevo, como leigos, na Igreja Católica. Quase todos ficaram nas margens d'Ela. “Na expectativa” (en úpomoné, palavra grega donde o termo vem) como um dia disse estar Simone Weil, cujo luminoso ascetismo também tanto nos marcou? Não posso falar por outros. Falo apenas por mim. Agora que tanto narrei, revejo aquele de nós que mais cedo caiu – Cristovam Pavia, que se atirou para debaixo de um comboio em 1968, aos 33 anos – e releio um poema dele. Acabo como comecei com versos. E são estes:

Voltarei à penumbra fresca da igreja
Ancestral, silenciosíssima e vazia,
Aonde está pousado o teu altar:
Doce mãe Maria...
E ajoelhar-me-ei,
E fecharei os olhos sem pensar...
- Que a minha oração nada mais seja:
Basta descansar.

(final de Nós, os vencidos do catolicismo, edições Tenacitas, 2003 / o poema de é do livro 35 Poemas e tem por título A Nossa Senhora)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia II]

JORGE DE SENA

MORTE DE MANUEL BANDEIRA


Só hoje, depois de muitas aulas de um curso
sobre a poesia dele, folheando poemas seus,
tive, subitamente, consciência da sua morte,
há mais de um ano, longe, apenas notícia.
Não é essa coisa eventual de notar-se, consabido pasmo
(e a frustração do que jamais vai repetir-se)
que não mais torno a vê-lo e à sua humanidade,
à sua gentileza firme de menino egoísta,
e à surdez com que em verdade não ouvia ninguém
senão a vida e a morte. No fim de contas,
há centenares de poetas que nunca conheci, que admiro,
e que nem sequer estou certo de valer a pena
havê-los conhecido: seriam suportáveis,
humanamente suportáveis, o Dante ou o Camões?
Não: o que de súbito encontro é um vazio
maior. Morreu. Não dirá mais nada,
nada sentirá que nos revele. Os poetas
morrem como toda a gente. A poesia deles
fica, e morrerá mais tarde, como tudo
morre. Mas que um que está connosco
morra inda que velho, e não seja mais
quem escreverá, se ainda escrever: se cale –
- e a gente saiba pelas notícias como se calou –
É a morte, a pavorosa, a estúpida, a grosseira.
O fim de todos os milagres, que ele bendisse.
O horror de descobrir-se no que fica
quanto morreu quem fez o que ficou.
22/11/1969

(de Visão Perpétua, edições 70, 1989)
[(há 40 anos) Bandeira e Pavia morreram no mesmo dia I]

FRANCISCO BUGALHO

Dois Meninos


Meu menino canta, canta
Uma canção que é ele só que entende
E que o faz sorrir.

Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas.

As cinco pedrinhas são mundos na mão.
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais…

Meu menino d’olhos verdes como as águas
Não sabe falar,
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia.

Meu menino ama os cães,
Os gatos, as aves e os galos,
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim,
Enlevado, a olhá-los.

E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino…

(de Canções de entre Céu e Terra, 1940)

Sobre este poema, um belíssimo comentário de Nicolau Saião.