2.4.09

CARLOS ALBERTO MACHADO

(7)


O mundo está ali
e de repente fraquejas
o mesmo pânico que sentias
no escuro repentino da rua
quando regressavas a casa a sonhar
com o homem invisível da tv
falas depressa de mais
as palavras partem-se nos dentes
e na língua cresce o medo e suas
o peso do mundo está sobre ti
as luzes teimam em perseguir-te
e não há porra de porta que se abra
uma luz que de repente se apague.

(de Mundo de Aventuras, ATAEGINA – Associação de Produções Culturais, 2000)

1.4.09

FRANCISCO SÁ DE MIRANDA

(final do) Dialogo em Prosa
Da mentira e desquerição.


(…)
Disquerição. Ora te digo que em estremo me espanto com usares tam facilmente cousas dos môres inimigos que tens, porque claro está que o natural contrairo da mentira é a verdade; pois em verdadeira amizade e licita obrigação quem viu mentira? pelo qual cada vez mais e mais me espanto de assi domesticamente usares esses vestidos, assi que para meu desenleo te rogo dizer me queiras: isto como é?
Mentira. Como te eu já disse? eu sou fea e negra e manca e finalmente tam torpe que muitos me têm por estremo de fealdade e torpeza, de maneira que, pera cobrir estas tachas que em mim conheço haver, era necessário andar vestida; e achando me sem vestidos, detreminei a alguem os furtar; e já nisto detreminada, correu me á memória que, pera effeituar meus desejos, nenhums trajos erão milhores que os que menos meus parecessem. Assi que, isto considerado, achei erão certos os da verdade. A qual causa conhecendo, detreminei de palpar todas as vias que para os haver achasse. E foi me nisto a fortuna tam favoravel que com pouco trabalho pus em obra meu desejo porque, como deus criou a verdade tam fermosa e clara, preza se muito d'andar despida pera milhor se enxergarem suas perfeiçõis, e o mesmo fazem a obrigação e amizade, que também estimão pouco estes vestidos, assi que eu tenho tempo pera os poder furtar pera me d'eles aproveitar quando d'eles tenho necessidade.
Disquerição. Também queria saber, se te aprouvesse, de que são estes vestidos? e como se chamão?
Mentira. Estes vestidos são de boas palavras, perfeitas oraçõis que soão bem ás orelhas; chamão lhe algums eloquencia, outros oratoria. E finalmente outros lhe chamão: saber exprimir os conceitos da vontade.
Disquerição. Assaz de contente estou do que sei de teus trajos; queria agora saber donde naceste? e quem gerou tam torpe cousa?
Mentira. A mim fizerão me os homens, minha mai foi a desculpa. E fica te embora, que não posso mais deter me, que vejo la vir quem me destruirá se me achar.
Disquerição. Torna ca, mentira, dize me de que foges?
Mentira. Ou tu es cega ou não es a desquericão como eu cuidava! Pois não vês a pressa com que o tempo vem trazendo a verdade ás costas? polo qual eu não posso mais aguardar.
Disquerição. Vai embora! que assaz de pouco juizo tem quem te ouve, e menos quem te cre, e nenhum quem comtigo trata. Que posto que ás vezes tarde em lhe dar o pago, a ousadas, que não vão sem lho dares como sua bestialidade merece, por se abraçarem comtigo deixando a verdade, em cuja busca eu tanto tempo tenho andado, sem em nenhuma parte a achar. E pois aqui vem, quero a ir receber e abraçar como é rezão que faça, todas as vezes que a vir, e mais sendo esta a primeira.

(in Poesia de Francisco de Sá de Miranda, edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, reprodução em fac-simile do exemplar com data de 1885 da Biblioteca Nacional, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989)