24.4.10

TASSOS DENEGRIS


NÃO SEI AFINAL O QUE DIZER


Quero falar sobre os laços
Da Primavera
A torrente das frustrações
Os fantasmas no túnel do sono
Nós na boca do lobo
O rio das mulheres
O rio dos corajosos.

Esta Primavera
Quebra-nos os ossos
E conduz à beira da loucura
Aqueles que aspiram
Ao mar
Como ideia como água
Como visão e glória.

Quero falar sobre os laços
Que se tornarão mais sensíveis
E insuportáveis
Com a chegada da Primavera ática.
22 de Novembro de 1971

(de A Outra Versão, tradução colectiva (Outubro de 1992), revista e apresentada por Fiama Hasse Pais Brandão com a colaboração de Nuno Júdice, Quetzal editores, 1994 - Poetas em Mateus)

23.4.10

NUNO MILAGRE


um plástico a voar
um saco de plástico no ar
saco preto que range baixinho
plástico fininho
desses que dão para quase tudo
um saco vazio a voar
inspiro, subo mais alto
plástico à vela
à altura de um nono andar, ou mais

um desses sacos esgaçados
que nada pesam
e dão para quase tudo, até voar
somos plásticos no ar
roçando prédios e árvores
plásticos quase brilhantes
pretos meio transparentes
opacos brilhando do alto
vendo as terras do espaço
ou presos a arame farpado

um plástico a voar no dia feriado
ainda não é tarde, são catorze e trinta


(de Um beijo no meio da crise, edição do Autor, 2009)

22.4.10

SAINT JOHN-PERSE

IX


De parcela em parcela do tempo parcial, o pássaro criador do seu voo sobe escadas invisíveis e ganha altura...

Como se fora uma corrente de escovém, desde a nossa profundidade nocturna, enquanto ganha o largo, puxa a si o traço interminável do homem que não pára de lhe agravar o peso. Do alto segura o fio da nossa vigília. E uma noite soltará esse pio sei lá de onde, que em sonhos faz erguer a cabeça ao adormecido.

Chegámos a vê-lo no velino de uma aurora: ou de passagem, negro — quer dizer branco — no espelho de uma noite de outono, com os gansos bravos dos velhos poetas Song, e deixava-nos sem fala no bronze dos gongues.
De ser inteiro tende para lugares sem paragem. É nosso emissário e quem nos inicia. «Senhor do Sonho, conta-nos o sonho!...»

Porém ele, vestido com pouco cinzento ou a despir-se dele para um dia nos explicar melhor a inaderência da cor — em todo este leite de uma lua parda ou verde e de feliz semente, em toda esta claridade de nácar verde ou rósea, que é também a do sonho por ser a dos pólos e das pérolas no fundo do mar — ele navegava diante do sonho e dava esta resposta: «Chegar mais longe!...»

Entre os animais que não deixaram de habitar o homem como uma arca viva, o pássaro, com um piar muito prolongado, com o seu incitamento ao voo, foi o único a dotar o homem de uma nova audácia.

(de Pássaros, tradução de Aníbal Fernandes, Hiena editora, 1994)

21.4.10


(Óbidos, 21 de Abril de 2010)



JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


UM PASSO DENTRO DA VILA


Nenhum dos vivos escapará à pedra de toque que
é a morte. Mas primeiro passou pelo limite do deserto — a dor
e as areias crescem ao seu redor. Por entre as casas da aldeia
jamais são portadoras de um acaso feliz
sobem a rua direita de grande laje
da porta da muralha à igreja mais cimeira. Em Óbidos
ouve-se melhor o de profundis, há um registo daquilo que se
perdeu.

A laje, dizem que foi lançada para o passo do viático.
Passo último que concede transfiguração. Quem
hoje pisar o longo dessa pedra
perdido no abismo mais íntimo das areias do deserto
na vegetação da floresta
já não atende ao som breve da torre sineira. A violência é
o que recebe de próximos e
vizinhos quando não se ajustam, como a palma das mãos, ao seu
olhar; desterrado, dentro do termo de Óbidos (as margens vão
até ao mar, morrem nas salinas a oriente
e a norte, a grande nave cobre-lhe os sentidos), respira o
espaço longínquo e o tempo remoto para além, muito além do
espesso muro da matéria.


(de Termo de Óbidos, Relógio d'Água, 2006)

20.4.10

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO


10


Admiro a tecedora porque tem consentido
que a assemelhem à poesia.
Mesmo com os cílios a perturbar-lhe
o movimento dos fios e os dedos
tocados por uma estranha resignação,
ela tece os caudais líquidos
que escorrem na sensibilidade do poeta
desde que era criança. Aqueles
que não imaginaram na ceifeira de uhland
o cântico mais remoto da nova
ceifeira de fernando pessoa podem
agora começar a imaginá-lo. Mas eu admiro
sobretudo a injustiça para com
a tecedora, a de atribuir
aos seus dedos esfacelados
a incipiência do poema. Ela soube
ser responsável pela perdição
ou a desaparição dos homens nas palavras,
até estes voltarem a emergir
dessas palavras alteradas e inalteradas.

A poesia iludira-se ao pensar
que a alteração que atingira os objectos
deixara ser idêntico, até nova comparação,
o poeta. O próprio termo poesia
pudera orientar a sua sombra
no sentido de manter cintilante
a metáfora da tecedora, até terminar
e recomeçar a teia, com o ritmo
passando a tempos regulares
os fios obliquados pela luz.
Toda a crítica tem exaltado o poema
como uma produção da mecânica manual
oposta à idade do amor espontâneo,
os jorros do lirismo.

Eu abjuro da tecedora porque
muitas vezes tem correspondido
a quem lhe diz que a harpa produz
estopa. Se nem um tecido
é rigoroso com traços e sombreados
quando muito harmoniosos, nunca simétricos,
como o pode ser a soldagem
dos termos lexicais ligados
continuamente por espaços brancos.
Como evitar que o fim da página
se ligue ao cosmos materialmente
e, em vez de tornar-se um tecido
tranquilo, o poema se desagregue,
repetindo assim o movimento
de que nascera e fora contrariado
pela escrita. Ao chocalhar
todas as frases, os versos
caem uns dentro dos outros,
e o poeta vê-se perante a impotência
de os refazer sílaba a sílaba.
Só a tecedora tem o privilégio
de romper os fios pelo fogo.
Julho 76

(de Área Branca, 1979)

19.4.10

JOSÉ OLIVEIRA


VALE DO SILÊNCIO


A noite estende-se, discreta,
sobre o mar.
E um silêncio gelado invade
as águas.
Refugio-me. Estou deitado sobre
o tempo.
Digo em voz alta os nomes castos
das coisas.
Já não há cistros.
Apenas uma tisana para tomar
de madrugada.
quando o medo aperta.
Sigo com o vento.
Oriento-me pelo rasto de sangue
das aves.
Subitamente um corpo estendido
na estrada.
Suor. Recuo. Febre.
Abrigo-me na sombra pura
dos álamos.
Os olhos virados para o silêncio.
Desejaria agora um rosto,
um campo de sargaços,
uma pedra fria, ou o cheiro
da resina.
Um bosque rente à boca.
Mas conheço unicamente o interior
ácido das letras.
Esse rio de melancolia que vai do
corpo à palavra.


(de ciclo do mar, edição do Autor, 1984)
JOSÉ OLIVEIRA


TACTO


escrever para me ouvir.
Onde o rosto colide e esmaga os dias.
Compreendo a revelação das fomes, dos hinos,
sequências de puro fascínio.
Onde o verão se torna habitável: todo o gesto
desvenda um horizonte de chuva,
de cantos rasos — esta hora por uma vez definitiva,
antes dos nomes.

Que verbo se eleva para o próximo silêncio?
a máquina hesitante? o obscuro ofício?
sei de mim por onde amo o que existe,
a transparência do branco, o subúrbio das feridas,
o nome dos incêndios.

Não consinto a esta noite a luz fácil dos olhos
porque não posso.
Eis minha doença mais secreta: a mortífera habitação
de certos dias
quando em certos dias nada mais existe.

O que passa então pelas mãos?
a ignorância da noite? a vizinhança dos mitos?
trata-se de antecipar as horas mais difíceis.

Nesta casa vem a luz depositar seus tempos de cegueira
o recolhido gesto dos amantes, a última faca.

Já não vejo. Tudo se reduz agora aos domínios pressentidos
seu terminar lento, sua inviolável aparência.

Escrevo porque não conheço a luz.
Outra forma de amar as silhuetas.


(de Melancolismos, edições Inapa, 1989)

18.4.10

MANUEL DE CASTRO


ICH BIN EIN KROKODIL


COMO se a febre me tivesse cegado, aqui permaneço, desperto e todavia quieto, até ao momento em que algo vivo se agita (diária e regularmente isto acontece), se agita sobre o pequeno lago artificial cercado por uma alta vedação metálica, onde desde há algum tempo (quanto?) me encerraram.
Sou ainda bastante rápido: ao cair na água, o alimento — carne putrefacta, sem a cor atraente do sangue — produz um surdo «plop» e um instante fulguro depois eu encontro-me sob a superfície da água com a minha boca muito aberta no lugar onde submerge a dose quotidiana de, vida; ao fechá-la os dentes encaixam ruidosamente uns nos outros e o som propaga-se pelo minúsculo oceano circundante. Regresso lentamente à areia.
A carne. É uma matéria que se instala em mim, provisoriamente, é certo, porém que se incorpora no volume que constituo, perturbando-o, alterando-o. Até à defecação, ao uso total daquele alimento, eu sou qualquer coisa de, aumentado, de, por assim dizer, um pouco outro.
Privado de lutas e movimentos largos, a situação é todavia confortável; e esta quantidade de calor, de alimento, embora corrupto e insípido, a nenhum esforço me obriga, excepto o breve mergulho, a velocíssima deglutição.
Acontecem ruídos, vozes.
Inicialmente deixava os meus olhos seguirem uma certa curiosidade que os movia, lentamente, sonolentos, vagarosos, por sobre as coisas e a fútil agitação dos outros animais, principalmente aqueles, extremamente vivazes e inquietos, que rodeiam, de quando em quando, a alta vedação metálica que dá uma dimensão ao meu universo e uma medida (relativa, relativa...) ao meu corpo. Contudo habituei-me. Agora as vozes transformaram-se apenas no cantochão, no fundo sonoro da minha contínua sonolência. Dormito, morno.
O horizonte de que disponho sofre unicamente modificações subtis, quase imponderáveis, que aderem a esta peculiar posição em que me observo, intransmissível e integrada nos limites da minha existência total e absoluta. Os objectos, escravizados pela rotina das gradações sucessivas de claridade, vivem com uma paciência que me é também um pouco própria, submetidos à minha atenção letárgica e no entanto presente, presente, incapaz de os mover porém receptiva e perigosamente sensível. Envolvido por uma aura de líquen e forte temperatura, é uma tepidez húmida, salobra, espessa, que se me vai acumulando sobre a carcassa, como se o tempo esperasse construir um verniz baço que me defenda das mutações bruscas. Esta capa protectora é um sinal da mansa reconciliação que se desenvolve entre mim e o vagaroso universo silente de que participo. Areia, água, o metal das grades, as plantas aquáticas, os resíduos que de um exterior desconhecido para aqui são arrastados, os movimentos aparentemente absurdos dos animais excitados que me olham com uma repugnância oculta, disfarçada, todos estes elementos se dissolvem nas pequenas nuances abafadas que compõem o tom desta infinita vida de crocodilo, deste reduzido infinito da minha existência de sáurio, cujo comportamento, qualidade e alcance, absorvem, respiram a envolvente luminosidade tíbia e conferem permanência ao perpétuo movimento circular de todas as coisas.

(in Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 - 2º volume, M. Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro (org.), Moraes editores, 1979 - Círculo de Poesia / original in & etc, 1968)