20.4.10

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO


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Admiro a tecedora porque tem consentido
que a assemelhem à poesia.
Mesmo com os cílios a perturbar-lhe
o movimento dos fios e os dedos
tocados por uma estranha resignação,
ela tece os caudais líquidos
que escorrem na sensibilidade do poeta
desde que era criança. Aqueles
que não imaginaram na ceifeira de uhland
o cântico mais remoto da nova
ceifeira de fernando pessoa podem
agora começar a imaginá-lo. Mas eu admiro
sobretudo a injustiça para com
a tecedora, a de atribuir
aos seus dedos esfacelados
a incipiência do poema. Ela soube
ser responsável pela perdição
ou a desaparição dos homens nas palavras,
até estes voltarem a emergir
dessas palavras alteradas e inalteradas.

A poesia iludira-se ao pensar
que a alteração que atingira os objectos
deixara ser idêntico, até nova comparação,
o poeta. O próprio termo poesia
pudera orientar a sua sombra
no sentido de manter cintilante
a metáfora da tecedora, até terminar
e recomeçar a teia, com o ritmo
passando a tempos regulares
os fios obliquados pela luz.
Toda a crítica tem exaltado o poema
como uma produção da mecânica manual
oposta à idade do amor espontâneo,
os jorros do lirismo.

Eu abjuro da tecedora porque
muitas vezes tem correspondido
a quem lhe diz que a harpa produz
estopa. Se nem um tecido
é rigoroso com traços e sombreados
quando muito harmoniosos, nunca simétricos,
como o pode ser a soldagem
dos termos lexicais ligados
continuamente por espaços brancos.
Como evitar que o fim da página
se ligue ao cosmos materialmente
e, em vez de tornar-se um tecido
tranquilo, o poema se desagregue,
repetindo assim o movimento
de que nascera e fora contrariado
pela escrita. Ao chocalhar
todas as frases, os versos
caem uns dentro dos outros,
e o poeta vê-se perante a impotência
de os refazer sílaba a sílaba.
Só a tecedora tem o privilégio
de romper os fios pelo fogo.
Julho 76

(de Área Branca, 1979)

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