29.11.06

ANA HATHERLY

AS PALAVRAS DIRIGEM-SE UMAS ÀS OUTRAS


As palavras dirigem-se umas às outras:
dormentes nos dias cinzentos
acordam nos sonhos
mas acordam-nos dos sonhos
salvadoras-matadoras
roedoras de raízes

O seu alcance é
a vastidão erma do sentido

À flor do rio do olvido
o seu brilho
flutua fugaz no corpo da grafia

(de O Pavão Negro, Assírio & Alvim, 2003)

28.11.06

JOSÉ AUGUSTO SEABRA

O ECO


Ouves o sulco doutra voz ainda
dentro da voz daquele instante presa
ao só instante de hesitar-te, ainda
perdida a voz pela garganta presa?

Ouves o rasto doutros dedos vindo
sobre os teus dedos tão a medo breves
pousar-se aonde o só receio vinha
pelos teus dedos quase ousar-se breve?

Ouves apenas? Ou da demorada
memória acordas mansamente a cada
bafo do tempo em tuas mãos geladas?

Ouves ainda? Ou da voz gelada
o tempo em teus ouvidos cada
palavra na memória demorada?

(de Tempo Táctil, Portugália editora, 1972 - colecção Poetas de Hoje)

27.11.06

FERNANDO GUERREIRO

Ornitologia


Chegado o Outono, o conhecimento concentra-se nas asas
dos pássaros que pousam lentos sobre a cor dos frutos.
Sem sentimentos, as aves entregam-se ao sabor do vento
e deixam que no cérebro cresça a febre negra das urzes.
Aquieta-os a experiência que conservam do espaço
e que todas as tardes os inibe de partir para continentes
mais prósperos e seguros. Sustém-os um atavismo
apenas explicável pelo saber dos signos e o seu desejo
colectivo de suicídio. Porque não escolhem antes
perder-se na tempestade? Talvez visto do ar,
aos seus olhos o mundo se torne mais pesado
e o pensamento se confunda, na memória,
com uma paisagem festiva de piras fúnebres.
E contudo, apesar do carácter cerrado da atmosfera,
o seu peso parece já ter-se deixado de sentir
sobre o discurso. Virados para dentro,
as imagens em que se reflectem são
as de um mundo banhado pela penumbra.
Afogado na sua razão de ser. Mediúnico.
Imagine-se agora o caçador a entrar
paisagem dentro para abater as peças
de que se compõe o cenário uma a uma:
vista de dentro, o Sol em que se esgota
a paisagem deixa cair as suas penas
sobre a imensidão que a chuva perturba.

(de Gótico, Black Sun editores, 1999)

26.11.06

MÁRIO CESARINY

you are welcome to elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinor

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

(de Pena Capital, 1957)