O prémio Luís Miguel Nava, instituído em 1998 pela fundação criada por vontade testamentária do poeta e a que também foi dado o seu nome, tem premiado todos os anos um livro de poesia editado no ano anterior.
Têm sido escolhidos excelentes livros, mas não dos mais divulgados, até porque a poesia, por si, não é mediática - o próprio poeta que dá nome ao prémio só há pouco tempo começa a ser mais conhecido e, mesmo assim, quase só pelos poucos leitores habituais de poesia.
Será interessante verificar, na lista abaixo, que todos os autores dos livros premiados até agora são autores já consagrados e todos mais velhos que Luís Miguel Nava (1957-1995). Este facto contrasta com o (quanto a mim) excessivo furor que tem provocado a poesia de poetas nascidos muito depois de Nava.
Eis a lista:
1997 - O búzio de Cós de Sophia de Mello Breyner Andresen (n. 1919)
1998 - Geórgicas de Fernando Echevarría (n. 1929)
1999 - Quatro Caprichos de António Franco Alexandre (n. 1944)
2000 - Lisboas de Armando Silva Carvalho (n. 1938)
2001 - Teatros do Tempo de Manuel Gusmão (n. 1945)
2002 - Lições de Trevas de Fernando Guimarães (n. 1928)
20.12.03
FERNANDO GUIMARÃES
Nasceu em 1928.
As nossas mãos, ao abrirem um livro, por vezes detêm-se subitamente.
Mas logo outro movimento principia, o dos olhos que procuram não as mãos que seguram o livro, mas aquelas que o escreveram. É, então, que se encontram aí novas palavras. Elas são as que efectivamente lemos, mas não lhe pertencem agora. Desapareceram para que o livro seja escrito desde o princípio.
(texto inicial)
O que podemos esperar? É mais perto que vês
um caminho. A ele nos habituamos. É deste modo
que consegues compreender-me melhor. Reparas agora
como os gestos podem ficar reduzidos a um único
movimento e as cores à mesma transparência
que as há-de tornar maiores. Encontras o sentido
que pertencia a tudo, para que finalmente seja
apenas nosso, como se olhássemos para longe.
(da sequência Acerca do Sentido)
O olhar diante de outro olhar o que vê? Antes
era a distância entre ambos, esse relance súbito
que se torna interior, o seu cume tranquilo
dentro de cada imagem. Há um novo segredo
que vinha ter connosco e ali ocupa o espaço
que não é de ninguém. Assim foi o princípio
tão súbito dessa perda para que seja a leve
intimidade de em tudo haver o mesmo encontro.
(da sequência Lições de Trevas)
SEGREDO
Os gestos que esconderam qualquer rosto.
E mais nada. O que sentes lembra agora
uma enseada ao longe. Assim o modo
de surpreender mais cedo o que era a mesma
imagem que sujeita a própria ausência
ao que por ser assim contém a nova
vontade de encontrar uma mais íntima
direcção insuspeita que se alonga
noutro sentido até ficar oculta
só por instantes no que se aguardava
há muito: este segredo onde procuras
um rio ou uma ponte, os gestos leves
sobre o rosto voltado para nada
daquilo que foi nosso e assim se perde
(da sequência Seis Poemas)
Caminhamos até este lugar. Fecho os olhos para conhecer
o que se torna igual a uma promessa. As flores morrem nas jarras
e deixam cair ao longo dos caules um peso estranho. Tu reparaste
na sua transparência. Como era íntimo esse movimento capaz de vir
percorrê-las para ser menor esta destruição. É assim que principia
a perda do mesmo brilho que existe à nossa volta. Já nada
espero e, por isso, deixei que de mim o tempo se afastasse. De longe
chega uma voz e ela procura os lábios vazios até ficar dispersa
pela névoa. É talvez uma única palavra. Há quem julgue
que se trata da pronúncia que passa por uma ferida.
(da sequência Considerações de Ovídio acerca do seu desterro)
(poemas do livro Lições de Trevas, edições Quasi, 2002 - biblioteca “uma existência de papel”)
Nasceu em 1928.
As nossas mãos, ao abrirem um livro, por vezes detêm-se subitamente.
Mas logo outro movimento principia, o dos olhos que procuram não as mãos que seguram o livro, mas aquelas que o escreveram. É, então, que se encontram aí novas palavras. Elas são as que efectivamente lemos, mas não lhe pertencem agora. Desapareceram para que o livro seja escrito desde o princípio.
(texto inicial)
O que podemos esperar? É mais perto que vês
um caminho. A ele nos habituamos. É deste modo
que consegues compreender-me melhor. Reparas agora
como os gestos podem ficar reduzidos a um único
movimento e as cores à mesma transparência
que as há-de tornar maiores. Encontras o sentido
que pertencia a tudo, para que finalmente seja
apenas nosso, como se olhássemos para longe.
(da sequência Acerca do Sentido)
O olhar diante de outro olhar o que vê? Antes
era a distância entre ambos, esse relance súbito
que se torna interior, o seu cume tranquilo
dentro de cada imagem. Há um novo segredo
que vinha ter connosco e ali ocupa o espaço
que não é de ninguém. Assim foi o princípio
tão súbito dessa perda para que seja a leve
intimidade de em tudo haver o mesmo encontro.
(da sequência Lições de Trevas)
SEGREDO
Os gestos que esconderam qualquer rosto.
E mais nada. O que sentes lembra agora
uma enseada ao longe. Assim o modo
de surpreender mais cedo o que era a mesma
imagem que sujeita a própria ausência
ao que por ser assim contém a nova
vontade de encontrar uma mais íntima
direcção insuspeita que se alonga
noutro sentido até ficar oculta
só por instantes no que se aguardava
há muito: este segredo onde procuras
um rio ou uma ponte, os gestos leves
sobre o rosto voltado para nada
daquilo que foi nosso e assim se perde
(da sequência Seis Poemas)
Caminhamos até este lugar. Fecho os olhos para conhecer
o que se torna igual a uma promessa. As flores morrem nas jarras
e deixam cair ao longo dos caules um peso estranho. Tu reparaste
na sua transparência. Como era íntimo esse movimento capaz de vir
percorrê-las para ser menor esta destruição. É assim que principia
a perda do mesmo brilho que existe à nossa volta. Já nada
espero e, por isso, deixei que de mim o tempo se afastasse. De longe
chega uma voz e ela procura os lábios vazios até ficar dispersa
pela névoa. É talvez uma única palavra. Há quem julgue
que se trata da pronúncia que passa por uma ferida.
(da sequência Considerações de Ovídio acerca do seu desterro)
(poemas do livro Lições de Trevas, edições Quasi, 2002 - biblioteca “uma existência de papel”)
MATILDE ROSA ARAÚJO
Nasceu em 1921.
PÁGINAS DE DIÁRIO
Outro dia
Montanhas longe alagadas de rosa pálido. O sol já se pôs aqui, as árvores estão mais escuras, os prédios indecisos parece que vão cair. Em baixo passa uma menina de branco, chapéu e vestido brancos, numa bicicleta. Um chapéu de abas largas. Ali mais para a esquerda os montes estão azuis. Uma tristeza enorme me torna prisioneira solitária de uma ilha e mesmo assim sinto-me senhora do mundo. A minha janela é alta e a beleza deste morrer do dia tamanha. Já a menina deslizou e sumiu-se como uma flor pelo asfalto cinzento a rolar. E eu fui assim como uma gota que de mim inteira resvalasse.
(in Árvore - folhas de poesia - 1º fascículo, Outono de 1951)
LUCIDEZ DESNECESSÁRIA
Diante das estrelas
E do sol
Sabendo a morte
E a vida aranha
Disconforme
E concordante
Pronta a parar na teia
Envelheci
Mas posso olhar ainda
Ainda
Cravos de sangue e rosas da estrada
Como se eterna fosse
Mas tão tarde.
(de Voz Nua, livros Horizonte, 1986)
VIDA
- Mãe! O mundo é mau,
Torna a flor num lodo
E um pássaro num verme,
E eu não sabia...
- Filha! Semeia flores no lodo,
Empresta o teu canto ao verme.
Se as tuas mãos continuarem puras
E meigo o teu coração,
Acredita que o mundo é belo.
E saberás!
(de O Cantar da Tila - poemas para a juventude, Atlântida editora, 1979 - desenhos de Maria Keil)
Nasceu em 1921.
PÁGINAS DE DIÁRIO
Outro dia
Montanhas longe alagadas de rosa pálido. O sol já se pôs aqui, as árvores estão mais escuras, os prédios indecisos parece que vão cair. Em baixo passa uma menina de branco, chapéu e vestido brancos, numa bicicleta. Um chapéu de abas largas. Ali mais para a esquerda os montes estão azuis. Uma tristeza enorme me torna prisioneira solitária de uma ilha e mesmo assim sinto-me senhora do mundo. A minha janela é alta e a beleza deste morrer do dia tamanha. Já a menina deslizou e sumiu-se como uma flor pelo asfalto cinzento a rolar. E eu fui assim como uma gota que de mim inteira resvalasse.
(in Árvore - folhas de poesia - 1º fascículo, Outono de 1951)
LUCIDEZ DESNECESSÁRIA
Diante das estrelas
E do sol
Sabendo a morte
E a vida aranha
Disconforme
E concordante
Pronta a parar na teia
Envelheci
Mas posso olhar ainda
Ainda
Cravos de sangue e rosas da estrada
Como se eterna fosse
Mas tão tarde.
(de Voz Nua, livros Horizonte, 1986)
VIDA
- Mãe! O mundo é mau,
Torna a flor num lodo
E um pássaro num verme,
E eu não sabia...
- Filha! Semeia flores no lodo,
Empresta o teu canto ao verme.
Se as tuas mãos continuarem puras
E meigo o teu coração,
Acredita que o mundo é belo.
E saberás!
(de O Cantar da Tila - poemas para a juventude, Atlântida editora, 1979 - desenhos de Maria Keil)
Recentemente foram anunciados prémios para dois grandes poetas, daqueles de que se fala pouco e de que se seria bom falar mais:
- Já há umas três semanas foi anunciado o prémio de carreira da Sociedade Portuguesa de Autores para Matilde Rosa Araújo, escritora luminosa que muitos continuam a remeter apenas para o território da "escrita para crianças";
- Esta semana foi anunciado o prémio Luís Miguel Nava para Fernando Guimarães pelo seu livro Lições de Trevas. Fernando Guimarães é um poeta de rara intensidade, mas é também um excelente crítico de poesia - crítico no verdadeiro sentido da palavra: aquele que procura perceber, aquele que está atento aos pormenores e às subtilezas, "nomeando, sem preconceitos, e com detalhe as suas características" (cf. Houaiss). Neste caso estão também de parabéns os editores, o Jorge e o valter, pela dedicação que têm manifestado pela poesia de consagrados esquecidos e de novos por conhecer.
- Já há umas três semanas foi anunciado o prémio de carreira da Sociedade Portuguesa de Autores para Matilde Rosa Araújo, escritora luminosa que muitos continuam a remeter apenas para o território da "escrita para crianças";
- Esta semana foi anunciado o prémio Luís Miguel Nava para Fernando Guimarães pelo seu livro Lições de Trevas. Fernando Guimarães é um poeta de rara intensidade, mas é também um excelente crítico de poesia - crítico no verdadeiro sentido da palavra: aquele que procura perceber, aquele que está atento aos pormenores e às subtilezas, "nomeando, sem preconceitos, e com detalhe as suas características" (cf. Houaiss). Neste caso estão também de parabéns os editores, o Jorge e o valter, pela dedicação que têm manifestado pela poesia de consagrados esquecidos e de novos por conhecer.
19.12.03
CARL SANDBURG
Filho de imigrantes suecos, nasceu em 1878, em Galesburg, perto de Chicago, EUA.
É um dos nomes mais importantes da literatura americana do séc. XX.
Morreu em 1967, na Carolina do Norte.
Esqueci o significado de vinte ou trinta poesias escritas há trinta ou quarenta anos. As minha preferências vão ainda para poesias bem fáceis publicadas há muito e que continuam a atrair as pessoas simples. (da introdução a Complete Poems, 1951)
ANNA IMROTH
Cruza-lhe os braços sobre o peito - assim.
Endireita-lhe um pouco mais as pernas - assim.
E chama o carro para que a leve a casa.
A mãe dela há-de chorar, e também as irmãs e os irmãos.
Mas os outros salvaram-se todos: foi ela a única rapariga da fábrica
[que não teve sorte ao saltar cá p'ra baixo quando o fogo irrompeu.
Andou aqui a mão de Deus - e a falta de uma saída de emergência.
CHAMFORT
Apresento Chamfort. Um exemplo.
Fechou-se na biblioteca com uma pistola
e com um tiro desfez-se do nariz e do olho direito.
E este Chamfort sabia como se escreve
- milhares de pessoas liam os seus livros sobre a maneira de viver -
mas não era capaz de se matar
por suas próprias mãos - estão a perceber?
Foram dar com ele no tapete, num charco de sangue,
frio como uma madrugada de Abril:
falava e falava, dizendo máximas divertidas e pungentes epigramas.
Pois bem, tapou o nariz e o olho direito como uma venda,
bebeu café e conversou anos e anos
com homens e mulheres que gostavam dele
porque sabia rir e todos os dias desafiava a morte:
«Vem daí buscar-me!».
SOPA
Vi um homem famoso comer sopa.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
com uma colher.
FUGA
Todos amavam Chick Lorimer na nossa cidade.
E mesmo fora da cidade
Todos o amavam.
Pois é: não há nenhum de nós que não ame uma estranha rapariga
que aperta ao peito o sonho que a empolga.
Ninguém sabe, agora, para onde foi Chick Lorimer.
Ninguém sabe porque fez a mala, com poucas, velhas coisas,
e fugiu
fugiu com o queixinho
espetado para a frente
e os leves cabelos ondeados
em desalinho sob o chapéu,
ela que dançava, cantava, amava com ferocidade e alegria.
Eram dez, eram cem os homens que seguiam Chick?
Eram cinco, eram cinquenta os que tinham o coração despedaçado?
Todos amavam Chick Lorimer.
Ninguém sabe para onde fugiu.
(poemas traduzidos por Alexandre O'Neill e publicados no número 4 da série de antologias Tempo de Poesia, s/d)
Filho de imigrantes suecos, nasceu em 1878, em Galesburg, perto de Chicago, EUA.
É um dos nomes mais importantes da literatura americana do séc. XX.
Morreu em 1967, na Carolina do Norte.
Esqueci o significado de vinte ou trinta poesias escritas há trinta ou quarenta anos. As minha preferências vão ainda para poesias bem fáceis publicadas há muito e que continuam a atrair as pessoas simples. (da introdução a Complete Poems, 1951)
ANNA IMROTH
Cruza-lhe os braços sobre o peito - assim.
Endireita-lhe um pouco mais as pernas - assim.
E chama o carro para que a leve a casa.
A mãe dela há-de chorar, e também as irmãs e os irmãos.
Mas os outros salvaram-se todos: foi ela a única rapariga da fábrica
[que não teve sorte ao saltar cá p'ra baixo quando o fogo irrompeu.
Andou aqui a mão de Deus - e a falta de uma saída de emergência.
CHAMFORT
Apresento Chamfort. Um exemplo.
Fechou-se na biblioteca com uma pistola
e com um tiro desfez-se do nariz e do olho direito.
E este Chamfort sabia como se escreve
- milhares de pessoas liam os seus livros sobre a maneira de viver -
mas não era capaz de se matar
por suas próprias mãos - estão a perceber?
Foram dar com ele no tapete, num charco de sangue,
frio como uma madrugada de Abril:
falava e falava, dizendo máximas divertidas e pungentes epigramas.
Pois bem, tapou o nariz e o olho direito como uma venda,
bebeu café e conversou anos e anos
com homens e mulheres que gostavam dele
porque sabia rir e todos os dias desafiava a morte:
«Vem daí buscar-me!».
SOPA
Vi um homem famoso comer sopa.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
com uma colher.
FUGA
Todos amavam Chick Lorimer na nossa cidade.
E mesmo fora da cidade
Todos o amavam.
Pois é: não há nenhum de nós que não ame uma estranha rapariga
que aperta ao peito o sonho que a empolga.
Ninguém sabe, agora, para onde foi Chick Lorimer.
Ninguém sabe porque fez a mala, com poucas, velhas coisas,
e fugiu
fugiu com o queixinho
espetado para a frente
e os leves cabelos ondeados
em desalinho sob o chapéu,
ela que dançava, cantava, amava com ferocidade e alegria.
Eram dez, eram cem os homens que seguiam Chick?
Eram cinco, eram cinquenta os que tinham o coração despedaçado?
Todos amavam Chick Lorimer.
Ninguém sabe para onde fugiu.
(poemas traduzidos por Alexandre O'Neill e publicados no número 4 da série de antologias Tempo de Poesia, s/d)
ALEXANDRE O'NEILL
CAIXADÓCLOS
- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
- Que és o esticalarica que se vê.
- Público em geral, acaso o meu nome...
- Vai mas é vender banha da cobra!
- Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
- Este é dos que fala sozinho na rua...
- Campdòrique, então, não dizes nada?
- Ai tão silvatávares que ele vem hoje!
- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
- É o do terceiro, nunca tem dinheiro...
- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...
- Dos dois ou três nomes que o surrealismo...
- Ah, agora sim, fazem-me justiça!
- Olha o caixadóclos todo satisfeito
a ler as notícias...
(de Feira Cabisbaixa, 1965)
CAIXADÓCLOS
- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
- Que és o esticalarica que se vê.
- Público em geral, acaso o meu nome...
- Vai mas é vender banha da cobra!
- Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
- Este é dos que fala sozinho na rua...
- Campdòrique, então, não dizes nada?
- Ai tão silvatávares que ele vem hoje!
- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
- É o do terceiro, nunca tem dinheiro...
- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...
- Dos dois ou três nomes que o surrealismo...
- Ah, agora sim, fazem-me justiça!
- Olha o caixadóclos todo satisfeito
a ler as notícias...
(de Feira Cabisbaixa, 1965)
18.12.03
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANA
Poesia: o nada que é tudo
(...)
Quando lhe disserem que a poesia não tem mais lugar neste mundo dos diabos (porque no dos deuses sempre tem), não acredite. Quando lhe disserem que no planeta Bush continuam erguendo muros que separem homens e culturas, observe que a poesia ainda pode congregar vozes e esperanças. (...)
Minha cabeça tenta entender essa coisa intrigante. Se os editores dizem que poesia não vende, que poesia não rende, que ninguém compra poesia, que poesia não se negoceia nas bolsas de valores, então, Senhores do Conselho de Sentença, dizei-me vós, porque cresce cada vez mais o número de poetas sobre a terra? Se a poesia não serve para nada, e se "lutar com palavras é a luta mais vã", porque milhões de poetas recomeçam essa luta "mal rompe a manhã"?
Na verdade, na verdade vos digo: há mais poetas hoje que ontem, e amanhã haverá mais poetas que hoje. E o caso da poesia é o mesmo da arte em geral. A poesia, como a arte, não morre nunca, porque mais que um género literário, é uma "função da mente humana". Ela dá voz a algo que nenhuma outra arte ou forma de expressão pode expressar por ela. E algumas, não poucas, mas milhões e milhões de pessoas têm necessidade da poesia como uma segunda "língua". Por isto cantam, por isto escrevem, por isto, pegam seu dinheirinho editam seus livros ou saem mundo afora falando seus poemas. E ao contrário da maioria das outras artes, que se transformaram predominantemente em negócio, a poesia vive uma situação ambígua: porque a palavra do poeta não se converteu em commodity e produto descartável que segue a moda e o mercado, ela guarda uma autenticidade e uma independência que a singularizam.
(...)
(excertos de artigo publicado no Jornal de Letras de 10 de Dezembro de 2003)
Poesia: o nada que é tudo
(...)
Quando lhe disserem que a poesia não tem mais lugar neste mundo dos diabos (porque no dos deuses sempre tem), não acredite. Quando lhe disserem que no planeta Bush continuam erguendo muros que separem homens e culturas, observe que a poesia ainda pode congregar vozes e esperanças. (...)
Minha cabeça tenta entender essa coisa intrigante. Se os editores dizem que poesia não vende, que poesia não rende, que ninguém compra poesia, que poesia não se negoceia nas bolsas de valores, então, Senhores do Conselho de Sentença, dizei-me vós, porque cresce cada vez mais o número de poetas sobre a terra? Se a poesia não serve para nada, e se "lutar com palavras é a luta mais vã", porque milhões de poetas recomeçam essa luta "mal rompe a manhã"?
Na verdade, na verdade vos digo: há mais poetas hoje que ontem, e amanhã haverá mais poetas que hoje. E o caso da poesia é o mesmo da arte em geral. A poesia, como a arte, não morre nunca, porque mais que um género literário, é uma "função da mente humana". Ela dá voz a algo que nenhuma outra arte ou forma de expressão pode expressar por ela. E algumas, não poucas, mas milhões e milhões de pessoas têm necessidade da poesia como uma segunda "língua". Por isto cantam, por isto escrevem, por isto, pegam seu dinheirinho editam seus livros ou saem mundo afora falando seus poemas. E ao contrário da maioria das outras artes, que se transformaram predominantemente em negócio, a poesia vive uma situação ambígua: porque a palavra do poeta não se converteu em commodity e produto descartável que segue a moda e o mercado, ela guarda uma autenticidade e uma independência que a singularizam.
(...)
(excertos de artigo publicado no Jornal de Letras de 10 de Dezembro de 2003)
17.12.03
RUY CINATTI
SEGUNDO SEPTETO
VI
Relâmpago ou serpente
que escurece o ar e cala as aves.
O desespero infinito.
ou a liberdade plena.
Apenas vivo um terror branco
na pupila familiar que me condena.
Quem me rouba não me muda
em pedra ou bicho de penas.
Nem o amor, nem o dinheiro
participa dos meus planos
de paz, no estilo do sangue
ou no caminho difícil
pelos estilhaços ou pedradas:
mera condição terrena.
(de Sete Septetos, 1967)
SEGUNDO SEPTETO
VI
Relâmpago ou serpente
que escurece o ar e cala as aves.
O desespero infinito.
ou a liberdade plena.
Apenas vivo um terror branco
na pupila familiar que me condena.
Quem me rouba não me muda
em pedra ou bicho de penas.
Nem o amor, nem o dinheiro
participa dos meus planos
de paz, no estilo do sangue
ou no caminho difícil
pelos estilhaços ou pedradas:
mera condição terrena.
(de Sete Septetos, 1967)
16.12.03
Não é uma metáfora, é só um calhau.
O mar que o rodeia é só mar,
a preto e branco.
[fotografia de Gérard Castello-Lopes]
[de como num texto sobre revistas femininas, publicado numa revista de miúdos, se pode encontrar um excelente contributo para um debate sobre a sexualidade]
ADÍLIA LOPES
A minha infância acabou no dia em que a minha mãe teve uma conversa comigo sobre a menstruação. Eu tinha uns 8 anos. A minha mãe, que era bióloga, mostrou-me um dossier da "Marie Claire" em papel cor-de-rosa rugoso. Eu não sabia francês. A minha mãe guardou as páginas cor-de-rosa depois da conversa e não mas voltou a facultar. Porque será que o sexo nos faz tanto medo e tanta vergonha? José Mário Branco canta que é preciso descasar a culpa do prazer. Do prazer e da dor e, sobretudo, do corpo. porque é que o corpo e os mistérios do organismo nos nos afligem tanto? Victor Matos e Sá escreveu "...E o corpo continua por explicar". Porque é que o corpo, que é sagrado, que é templo do Espírito Santo, segundo S. Paulo, nos inspira tantas culpas? Uma coisa é sofrermos porque há um terramoto e nos caem pedras em cima, outra coisa é sermos apedrejados porque fomos condenados à morte por lapidação. Porque é que inventamos convenções sociais que causam tanto sofrimento?
(excerto do artigo Femininas Revistas, publicado na revista 365, 12 - Novembro/Dezembro de 2003 - Direcção de Fernando Alvim)
ADÍLIA LOPES
A minha infância acabou no dia em que a minha mãe teve uma conversa comigo sobre a menstruação. Eu tinha uns 8 anos. A minha mãe, que era bióloga, mostrou-me um dossier da "Marie Claire" em papel cor-de-rosa rugoso. Eu não sabia francês. A minha mãe guardou as páginas cor-de-rosa depois da conversa e não mas voltou a facultar. Porque será que o sexo nos faz tanto medo e tanta vergonha? José Mário Branco canta que é preciso descasar a culpa do prazer. Do prazer e da dor e, sobretudo, do corpo. porque é que o corpo e os mistérios do organismo nos nos afligem tanto? Victor Matos e Sá escreveu "...E o corpo continua por explicar". Porque é que o corpo, que é sagrado, que é templo do Espírito Santo, segundo S. Paulo, nos inspira tantas culpas? Uma coisa é sofrermos porque há um terramoto e nos caem pedras em cima, outra coisa é sermos apedrejados porque fomos condenados à morte por lapidação. Porque é que inventamos convenções sociais que causam tanto sofrimento?
(excerto do artigo Femininas Revistas, publicado na revista 365, 12 - Novembro/Dezembro de 2003 - Direcção de Fernando Alvim)
G. K. CHESTERTON
Suponho que ganhei uma mentalidade dogmática. De qualquer modo, mesmo quando não acreditava em nenhuma daquelas coisas chamadas dogmas, presumia que as pessoas se associavam em sólidos grupos por causa dos dogmas em que criam ou descriam. Supunha que os teósofos se sentavam todos numa mesma sala porque todos acreditavam na teosofia. supunha que a igreja teísta acreditava no teísmo. Supunha também que os ateus se entendiam porque não acreditavam no teísmo. Imaginava que nas Sociedades Éticas eram compostas por pessoas que acreditavam na ética, mas não na teologia nem mesmo na religião. Cheguei à conclusão que estava redondamente enganado a este respeito. Hoje, acredito que as congregações destes templos semi-seculares eram, na sua maior parte, compostas por um vasto mar de vagas de vagos incrédulos ou meio-desconfiados, com as suas dúvidas ondulantes, e que nós os podemos encontrar num domingo à cata de uma solução de proveniência teísta e logo no outro domingo de uma solução de proveniência teosófica. Podem espalhar-se por muitos de tais templos; mas o que os liga é a convenção da inconvencionalidade, que por sua vez se liga à ideia de «não ir à Igreja».
(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)
Suponho que ganhei uma mentalidade dogmática. De qualquer modo, mesmo quando não acreditava em nenhuma daquelas coisas chamadas dogmas, presumia que as pessoas se associavam em sólidos grupos por causa dos dogmas em que criam ou descriam. Supunha que os teósofos se sentavam todos numa mesma sala porque todos acreditavam na teosofia. supunha que a igreja teísta acreditava no teísmo. Supunha também que os ateus se entendiam porque não acreditavam no teísmo. Imaginava que nas Sociedades Éticas eram compostas por pessoas que acreditavam na ética, mas não na teologia nem mesmo na religião. Cheguei à conclusão que estava redondamente enganado a este respeito. Hoje, acredito que as congregações destes templos semi-seculares eram, na sua maior parte, compostas por um vasto mar de vagas de vagos incrédulos ou meio-desconfiados, com as suas dúvidas ondulantes, e que nós os podemos encontrar num domingo à cata de uma solução de proveniência teísta e logo no outro domingo de uma solução de proveniência teosófica. Podem espalhar-se por muitos de tais templos; mas o que os liga é a convenção da inconvencionalidade, que por sua vez se liga à ideia de «não ir à Igreja».
(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)
15.12.03
[para o padre Tolentino, no dia do seu aniversário]
VIRGIL GEORGHIU
Os moços, os poetas e os padres devem dizer a verdade, sem cálculos se essa verdade lhes é proveitosa ou se os leva à morte. Não se regateia a sinceridade quando se é moço, padre ou poeta.
(de O Homem que Viajou Sozinho, Bertrand editora, 1954 - tradução de Vitorino Nemésio)
VIRGIL GEORGHIU
Os moços, os poetas e os padres devem dizer a verdade, sem cálculos se essa verdade lhes é proveitosa ou se os leva à morte. Não se regateia a sinceridade quando se é moço, padre ou poeta.
(de O Homem que Viajou Sozinho, Bertrand editora, 1954 - tradução de Vitorino Nemésio)
14.12.03
TEIXEIRA DE PASCOAIS
Nasceu em Amarante, em 1877.
Formou-se em Direito e exerceu a advocacia.
Criou, com outros, a Renascença Portuguesa, grupo que se propôs «restituir Portugal à consciência dos seus valores espirituais próprios», na sequência da publicação da revista A Águia, de que viria a ser director literário.
Publicou mais de trinta obras.
Morreu em 14 de Dezembro de 1952, na sua casa de Pascoaes.
A história da poesia está cheia de reconhecimentos tardios. Nem sequer é pois excepção que a Teixeira de Pascoaes tenha cabido a sorte de permanecer, durante quase toda a sua vida, ignorado da maioria dos seus contemporâneos, à excepção daqueles núcleos que, em sucessivas gerações, sempre souberam reconhecer nele um dos maiores poetas portugueses. Já ele era velhinho quando a fama acabou por lhe bafejar o nome. Mas a sua poesia quase não contribuiu para tal. Deveu-a sobretudo ao seu livro em prosa sobre S. Paulo; as suas obras poéticas continuaram a ter tão pouca procura como antes, a sua poesia tão pouco eco como até aí; permaneceu um poeta «para os raros apenas», como diria o seu muito famoso contemporâneo Eugénio de Castro.
A verdade é porém que nenhum reconhecimento público poderá dar à sua poesia aquilo que ela, na sua totalidade, recusa a qualquer maioria; ele é, de facto, um poeta impopularizável a todos os títulos; o seu nome acabou por ser famoso - e talvez nem tanto... Mas a sua obra continuará desconhecida, devido àquilo mesmo que nela é essencial. (Adolfo Casais Monteiro, A Metafísica da Paisagem: Teixeira de Pascoaes. Incluído em A Poesia Portuguesa Contemporânea, Sá da Costa, 1977)
ANTIGA DOR
O subtil, o reflexo, o vago, o indefinido,
Tudo o que o nosso olhar só vê por um momento
Tudo o que fica na Distância diluído,
Como num coração a voz do sentimento.
Tudo o que vive no lugar onde termina
Um amor, uma luz, uma canção um grito,
A última onda duma fonte cristalina,
A última nebulosa etérea do Infinito...
Esse país aonde tudo principia
A ser névoa, a ser sombra ou vaga claridade,
Onde a noite se muda em clara luz do dia,
Onde o amor começa a ser uma saudade;
O longínquo lugar aonde o que é real
Principia a ser sonho, esperança, ilusão;
O lugar onde nasce a aurora do Ideal
E aonde a luz começa a ser escuridão...
A última fronteira, o último horizonte,
Onde a Essência aparece e a Forma terminou...
O sítio onde se muda a natureza inteira
Nessa infinita Luz que a mim me deslumbrou!...
O indefinido, a sombra, a nuvem, o apagado,
O limite da luz, o termo dum amor,
Tornou o meu olhar saudoso e magoado,
Na minha vida foi minha primeira dor...
Mas hoje, que o segredo oculto da Existência,
Num momento de luz, o soube desvendar,
Depois que pude ver das cousas a essência
E a sua eterna luz chegou ao meu olhar,
Meu infinito amor é a Alma universal,
Esa nuvem primeira, essa sombra d'outrora...
O Bem que tenho hoje é o meu antigo Mal,
A minha antiga noite é hoje a minha aurora!...
(de Sempre, 1898/1902)
DE NOITE
Quando me deito ao pé da minha dor,
Minha Noiva-fantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos íntimos, acesos,
Extáticos, surpresos,
Aparece-me o Reino Espiritual...
E ali, despido o hábito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dor... o amor antigo.
A minha dor está comigo ali,
Como outrora, eu estava ao pé de ti...
Se eu fosse a minha dor, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!
Mas eu não sou a dor, a dor etérea...
Sou a Carne que sofre; esta miséria
Que no silêncio clama!
A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama...
(de Elegias, 1912)
V
O Poeta é um doido errando sempre além,
Que d'este mundo, em vida, se desterra...
É o ser divino e pálido que tem
Na alma toda a luz, no corpo toda a terra.
(de Cantos Indecisos, 1921)
PARAÍSOS
Temos dois paraísos: o da infância
E o da velhice;
O da flor e o do fruto,
O da loucura e o da razão.
O Jardim e o Pomar,
A Primavera, Deusa helénica,
O Outono, Deus da Ibéria.
O resto é Inverno até à Groenlândia
E Verão até ao Cabo
(de Últimos Versos, 1953)
[A Assírio & Alvim está a publicar, desde há alguns anos, a Obra de Pascoaes, em edições acompanhadas com óptimos textos para a compreensão do Poeta na sua diversidade; de referir, também, os muitos livros e textos dispersos que António Cândido Franco, também poeta, tem dedicado a Teixeira de Pascoaes, que representam um contributo de profundidade e paixão]
Nasceu em Amarante, em 1877.
Formou-se em Direito e exerceu a advocacia.
Criou, com outros, a Renascença Portuguesa, grupo que se propôs «restituir Portugal à consciência dos seus valores espirituais próprios», na sequência da publicação da revista A Águia, de que viria a ser director literário.
Publicou mais de trinta obras.
Morreu em 14 de Dezembro de 1952, na sua casa de Pascoaes.
A história da poesia está cheia de reconhecimentos tardios. Nem sequer é pois excepção que a Teixeira de Pascoaes tenha cabido a sorte de permanecer, durante quase toda a sua vida, ignorado da maioria dos seus contemporâneos, à excepção daqueles núcleos que, em sucessivas gerações, sempre souberam reconhecer nele um dos maiores poetas portugueses. Já ele era velhinho quando a fama acabou por lhe bafejar o nome. Mas a sua poesia quase não contribuiu para tal. Deveu-a sobretudo ao seu livro em prosa sobre S. Paulo; as suas obras poéticas continuaram a ter tão pouca procura como antes, a sua poesia tão pouco eco como até aí; permaneceu um poeta «para os raros apenas», como diria o seu muito famoso contemporâneo Eugénio de Castro.
A verdade é porém que nenhum reconhecimento público poderá dar à sua poesia aquilo que ela, na sua totalidade, recusa a qualquer maioria; ele é, de facto, um poeta impopularizável a todos os títulos; o seu nome acabou por ser famoso - e talvez nem tanto... Mas a sua obra continuará desconhecida, devido àquilo mesmo que nela é essencial. (Adolfo Casais Monteiro, A Metafísica da Paisagem: Teixeira de Pascoaes. Incluído em A Poesia Portuguesa Contemporânea, Sá da Costa, 1977)
ANTIGA DOR
O subtil, o reflexo, o vago, o indefinido,
Tudo o que o nosso olhar só vê por um momento
Tudo o que fica na Distância diluído,
Como num coração a voz do sentimento.
Tudo o que vive no lugar onde termina
Um amor, uma luz, uma canção um grito,
A última onda duma fonte cristalina,
A última nebulosa etérea do Infinito...
Esse país aonde tudo principia
A ser névoa, a ser sombra ou vaga claridade,
Onde a noite se muda em clara luz do dia,
Onde o amor começa a ser uma saudade;
O longínquo lugar aonde o que é real
Principia a ser sonho, esperança, ilusão;
O lugar onde nasce a aurora do Ideal
E aonde a luz começa a ser escuridão...
A última fronteira, o último horizonte,
Onde a Essência aparece e a Forma terminou...
O sítio onde se muda a natureza inteira
Nessa infinita Luz que a mim me deslumbrou!...
O indefinido, a sombra, a nuvem, o apagado,
O limite da luz, o termo dum amor,
Tornou o meu olhar saudoso e magoado,
Na minha vida foi minha primeira dor...
Mas hoje, que o segredo oculto da Existência,
Num momento de luz, o soube desvendar,
Depois que pude ver das cousas a essência
E a sua eterna luz chegou ao meu olhar,
Meu infinito amor é a Alma universal,
Esa nuvem primeira, essa sombra d'outrora...
O Bem que tenho hoje é o meu antigo Mal,
A minha antiga noite é hoje a minha aurora!...
(de Sempre, 1898/1902)
DE NOITE
Quando me deito ao pé da minha dor,
Minha Noiva-fantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos íntimos, acesos,
Extáticos, surpresos,
Aparece-me o Reino Espiritual...
E ali, despido o hábito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dor... o amor antigo.
A minha dor está comigo ali,
Como outrora, eu estava ao pé de ti...
Se eu fosse a minha dor, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!
Mas eu não sou a dor, a dor etérea...
Sou a Carne que sofre; esta miséria
Que no silêncio clama!
A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama...
(de Elegias, 1912)
V
O Poeta é um doido errando sempre além,
Que d'este mundo, em vida, se desterra...
É o ser divino e pálido que tem
Na alma toda a luz, no corpo toda a terra.
(de Cantos Indecisos, 1921)
PARAÍSOS
Temos dois paraísos: o da infância
E o da velhice;
O da flor e o do fruto,
O da loucura e o da razão.
O Jardim e o Pomar,
A Primavera, Deusa helénica,
O Outono, Deus da Ibéria.
O resto é Inverno até à Groenlândia
E Verão até ao Cabo
(de Últimos Versos, 1953)
[A Assírio & Alvim está a publicar, desde há alguns anos, a Obra de Pascoaes, em edições acompanhadas com óptimos textos para a compreensão do Poeta na sua diversidade; de referir, também, os muitos livros e textos dispersos que António Cândido Franco, também poeta, tem dedicado a Teixeira de Pascoaes, que representam um contributo de profundidade e paixão]
DANIEL FARIA
DO LIVRO PRIMEIRO DA NOITE ESCURA, DE SÃO JOÃO DA CRUZ 3
A princípio as palavras alumbram. Porque no escuro
O coração pára de correr. Secando a água
Secam os caminhos, perdem-se os companheiros
De viagem, perdem-se as casas dos vizinhos.
A noite a princípio é o homem sem casa, é o lugar
Em silêncio. É a humildade humedecendo
O corpo descalço e consumido.
A noite activa a noite - é um motor imenso
De lume. O arbusto a princípio é a própria inclinação
Da cabeça
Queimada nos cabelos, consumida em pensamentos
A princípio não se entende a sede, a inclinação, o vazio
E vamos cavando de lugar em lugar a expansão
Do arbusto que transborda. De toda a terra
à alma é a mais árida - um imenso motor em chama
Nos mecanismos da viagem ardente
A princípio não se sente
O amor - a humidade amanhecendo
O coração ressequido
(de Dos Líquidos, Fundação Manuel de Leão, 2000 - este livro foi reeditado recentemente, juntamente com outros e com poemas inéditos, pelas edições Quasi)
DO LIVRO PRIMEIRO DA NOITE ESCURA, DE SÃO JOÃO DA CRUZ 3
A princípio as palavras alumbram. Porque no escuro
O coração pára de correr. Secando a água
Secam os caminhos, perdem-se os companheiros
De viagem, perdem-se as casas dos vizinhos.
A noite a princípio é o homem sem casa, é o lugar
Em silêncio. É a humildade humedecendo
O corpo descalço e consumido.
A noite activa a noite - é um motor imenso
De lume. O arbusto a princípio é a própria inclinação
Da cabeça
Queimada nos cabelos, consumida em pensamentos
A princípio não se entende a sede, a inclinação, o vazio
E vamos cavando de lugar em lugar a expansão
Do arbusto que transborda. De toda a terra
à alma é a mais árida - um imenso motor em chama
Nos mecanismos da viagem ardente
A princípio não se sente
O amor - a humidade amanhecendo
O coração ressequido
(de Dos Líquidos, Fundação Manuel de Leão, 2000 - este livro foi reeditado recentemente, juntamente com outros e com poemas inéditos, pelas edições Quasi)
São JOÃO DA CRUZ, presbítero e doutor da Igreja
Nasceu em Fontiveros, província de Ávila (Espanha) pelo ano de 1542. Depois de ter passado algum tempo na Ordem dos Carmelitas, foi o primeiro entre os seus irmãos de Religião que, a partir de 1568, persuadido por Santa Teresa de Ávila, se declarou a favor da reforma da sua Ordem, tendo suportado, por isso, inumeráveis sofrimentos e trabalhos.
Morreu em Úbeda, a 14 de Dezembro, no ano 1591, com grande fama de santidade e sabedoria, de que dão testemunho os seus escritos espirituais.
(...) falando agora segundo o sentido e afecto da contemplação e conhecimento das criaturas a alma vê que há nelas tanta abundância de graças e virtudes e formosura com que Deus as dotou, que lhe parece estarem todas vestidas de admirável formosura e virtude natural, derivada e comunicada naquela infinita formosura sobrenatural da figura de Deus, cujo olhar veste de formosura e alegria o mundo e todos os céus; assim como também pelo abrir de sua mão enche de bênção todos os viventes, como diz David (Salmo 144, 16). E portanto, a alma, chagada em amor por este rastro de formosura do Amado que conheceu nas criaturas, em ânsias de ver aquela invisível formosura, que esta visível formosura causou, diz a seguinte canção:
CANÇÃO VI
Ai!, quem pod'rá sarar-me?
Entrega-te, em arroubo verdadeiro;
Não queiras enviar-me
Mais nenhum mensageiro,
Que não sabem dizer-me o que requeiro.
(...)
Como se dissera: eu quero-Te todo a Ti, e eles, os mensageiros, não me sabem nem podem dizer a Ti todo; porque nenhuma coisa da terra nem do céu pode dar à alma a notícia que deseja ter de Ti, e assim não me sabem dizer o que eu quero. Em lugar destes mensageiros, sê Tu o mensageiro e as mensagens.
(a tradução das anotações é a das Obras Completas, edições Carmelo, 5ª ed: 1986; a tradução da Canção é a de José Bento em Poesias Completas, Assírio & Alvim, 1990, que inclui gravuras de Ilda David')
Nasceu em Fontiveros, província de Ávila (Espanha) pelo ano de 1542. Depois de ter passado algum tempo na Ordem dos Carmelitas, foi o primeiro entre os seus irmãos de Religião que, a partir de 1568, persuadido por Santa Teresa de Ávila, se declarou a favor da reforma da sua Ordem, tendo suportado, por isso, inumeráveis sofrimentos e trabalhos.
Morreu em Úbeda, a 14 de Dezembro, no ano 1591, com grande fama de santidade e sabedoria, de que dão testemunho os seus escritos espirituais.
(...) falando agora segundo o sentido e afecto da contemplação e conhecimento das criaturas a alma vê que há nelas tanta abundância de graças e virtudes e formosura com que Deus as dotou, que lhe parece estarem todas vestidas de admirável formosura e virtude natural, derivada e comunicada naquela infinita formosura sobrenatural da figura de Deus, cujo olhar veste de formosura e alegria o mundo e todos os céus; assim como também pelo abrir de sua mão enche de bênção todos os viventes, como diz David (Salmo 144, 16). E portanto, a alma, chagada em amor por este rastro de formosura do Amado que conheceu nas criaturas, em ânsias de ver aquela invisível formosura, que esta visível formosura causou, diz a seguinte canção:
CANÇÃO VI
Ai!, quem pod'rá sarar-me?
Entrega-te, em arroubo verdadeiro;
Não queiras enviar-me
Mais nenhum mensageiro,
Que não sabem dizer-me o que requeiro.
(...)
Como se dissera: eu quero-Te todo a Ti, e eles, os mensageiros, não me sabem nem podem dizer a Ti todo; porque nenhuma coisa da terra nem do céu pode dar à alma a notícia que deseja ter de Ti, e assim não me sabem dizer o que eu quero. Em lugar destes mensageiros, sê Tu o mensageiro e as mensagens.
(a tradução das anotações é a das Obras Completas, edições Carmelo, 5ª ed: 1986; a tradução da Canção é a de José Bento em Poesias Completas, Assírio & Alvim, 1990, que inclui gravuras de Ilda David')
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