"a linguagem, qualquer linguagem é um clarão."
Foi apresentado ontem à noite, na livraria Ler Devagar, no Bairro Alto, em Lisboa, o 16º livro de poemas de Amadeu Baptista, O Som do Vermelho.
Falaram sobre o livro a sua prefaciadora, Ana Isabel Ribeiro e o poeta António Cabrita.
Trata-se de um poema longo, em três partes, que dialoga com três pinturas de Rogério Ribeiro.
Amadeu Baptista é um dos poetas com mais fôlego da actualidade. A sua escrita está marcada por uma intensidade de comunicação fulgurante.
Os seus poemas, de facto, assumem a função primordial da poesia: dizer o que não pode ser dito, fazem-se portadores do rumor mais profundo da nossa existência, desfazendo uma distância do essencial que vamos construindo.
Pena é que tão tão poucos de nós estejam dispostos a fazerem-se interpelar por esta poesia avassaladora.
21.2.04
20.2.04
[SONETOS À SEXTA-FEIRA]
FERNÃO ÁLVARES DO ORIENTE
Mata, não tira Amor o mundo à pena,
Procura mal, não bens; cega, não guia,
Escura noite traz, não doura o dia,
Desata, não confirma a paz serena.
A ingrata, não alegre sorte ordena,
Dura nele só mal, não alegria,
Segura n'alma dor, não glória cria,
Trata-nos mal, não bem, sempre na pena.
À vida triste não faz ledo o rosto,
Banha d'águas, não de prazer o peito,
Tirano, não já rei, mora aos seus n'alma.
Convida-nos ao pranto, não ao gosto,
A sanha mostra, em nada ao mundo aceito,
Engano usando, não ofrece a palma.
(fixação do texto de Isabel Almeida)
MARTIM DO CRASTO RIO
Perdi-me dentro em mi como um deserto,
Minh'alma está metida em laberinto,
E posto em tal perigo já me sinto
Cair noutro maior, nele encoberto.
Tenho o socorro longe, a morte perto,
Pois vivo do que temo e do que sinto,
Se alguém me quer valer não lho consinto,
Por vir o que receo a ser mais certo.
Nova invenção d mal, novo tromento,
Sr cutelo da vida a própria vida,
Ser desatino usar do pensamento.
Vingai-vos, dor cruel, dor conhecida,
Que a vosso pesar sei do entendimento
Que em grande dor não há vida comprida.
(fixação do texto de Isabel Almeida)
(atribuído a) Frei BERNARDO DE BRITO
SONETO EM QUE MOSTRA A EFICÁCIA DA FORMOSURA DE SÍLVIA
Querendo amor ficar com vencimento,
de quem o teve já de seus ardores,
mudou a ordem antiga dos amores
em novo e desusado fingimento.
E disfarçado enfim neste ornamento,
embrenhado uma tarde entre mil flores,
na'ljava concertou três passadores
para render de Sílvia o peito isento.
Passava descuidada a Ninfa bela,
e olhando com desdem ao moço esquivo
d'amores o matou no mesmo instante.
Se amor morreu de amores só com vê-la
quem poderá ficar no mundo vivo
à vista de uma vista tão possante?
(de Sílvia de Lisardo - fixação do texto de Fiama Hasse Pais Brandão)
D. FRANCISCO MANUEL DE MELO
Vária ideia estando na América, e perturbado no estudo por bailes de Bárbaros.
São dadas nove. A luz e o sofrimento
Me deixam só nesta varanda muda.
Quando a Domingos, que dormindo estuda,
Por um nome que errou, lhe chamo eu cento
Mortos da mesma morte o dia e vento.
A noite estava para estar sesuda,
Que desta negra gente em festa ruda,
Endoudece o lascivo movimento.
Mas eu que digo? Solto o tão sublime
Discurso ao ar, e vou pegar da pena,
Para escrever tão simples catorzada?
Vedes? Não faltará pois quem ma estime:
Que a palha para o asno, ave é de pena,
Falando com perdão da gente honrada.
(fixação do texto de José V. de Pina Martins)
NICOLAU TOLENTINO
Não tomando em desprezo o escuro estado
em que me pôs Fortuna e Natureza,
olhastes sem horror minha baixeza
e fizestes sentar-me ao vosso lado.
Então, de ingrata obrigação chamado
Deixei à força a companhia e a mesa;
e inda cheio de ideias de grandeza,
vim dar por tema um verbo conjugado.
Não sei com dous opostos conformar-me;
sofrem-me os grandes, sou taful e moço,
não sei a «senhor mestre» costumar-me.
Tais extremos, Senhor, unir não posso;
de dous génios não sou. Mandai fechar-me
ou a minha aula, ou o palácio vosso.
(fixação do texto e notas de Rodrigues Lapa)
___________________
"sofrem-me os grandes" = os fidalgos têm-me apreço
FERNÃO ÁLVARES DO ORIENTE
Mata, não tira Amor o mundo à pena,
Procura mal, não bens; cega, não guia,
Escura noite traz, não doura o dia,
Desata, não confirma a paz serena.
A ingrata, não alegre sorte ordena,
Dura nele só mal, não alegria,
Segura n'alma dor, não glória cria,
Trata-nos mal, não bem, sempre na pena.
À vida triste não faz ledo o rosto,
Banha d'águas, não de prazer o peito,
Tirano, não já rei, mora aos seus n'alma.
Convida-nos ao pranto, não ao gosto,
A sanha mostra, em nada ao mundo aceito,
Engano usando, não ofrece a palma.
(fixação do texto de Isabel Almeida)
MARTIM DO CRASTO RIO
Perdi-me dentro em mi como um deserto,
Minh'alma está metida em laberinto,
E posto em tal perigo já me sinto
Cair noutro maior, nele encoberto.
Tenho o socorro longe, a morte perto,
Pois vivo do que temo e do que sinto,
Se alguém me quer valer não lho consinto,
Por vir o que receo a ser mais certo.
Nova invenção d mal, novo tromento,
Sr cutelo da vida a própria vida,
Ser desatino usar do pensamento.
Vingai-vos, dor cruel, dor conhecida,
Que a vosso pesar sei do entendimento
Que em grande dor não há vida comprida.
(fixação do texto de Isabel Almeida)
(atribuído a) Frei BERNARDO DE BRITO
SONETO EM QUE MOSTRA A EFICÁCIA DA FORMOSURA DE SÍLVIA
Querendo amor ficar com vencimento,
de quem o teve já de seus ardores,
mudou a ordem antiga dos amores
em novo e desusado fingimento.
E disfarçado enfim neste ornamento,
embrenhado uma tarde entre mil flores,
na'ljava concertou três passadores
para render de Sílvia o peito isento.
Passava descuidada a Ninfa bela,
e olhando com desdem ao moço esquivo
d'amores o matou no mesmo instante.
Se amor morreu de amores só com vê-la
quem poderá ficar no mundo vivo
à vista de uma vista tão possante?
(de Sílvia de Lisardo - fixação do texto de Fiama Hasse Pais Brandão)
D. FRANCISCO MANUEL DE MELO
Vária ideia estando na América, e perturbado no estudo por bailes de Bárbaros.
São dadas nove. A luz e o sofrimento
Me deixam só nesta varanda muda.
Quando a Domingos, que dormindo estuda,
Por um nome que errou, lhe chamo eu cento
Mortos da mesma morte o dia e vento.
A noite estava para estar sesuda,
Que desta negra gente em festa ruda,
Endoudece o lascivo movimento.
Mas eu que digo? Solto o tão sublime
Discurso ao ar, e vou pegar da pena,
Para escrever tão simples catorzada?
Vedes? Não faltará pois quem ma estime:
Que a palha para o asno, ave é de pena,
Falando com perdão da gente honrada.
(fixação do texto de José V. de Pina Martins)
NICOLAU TOLENTINO
Não tomando em desprezo o escuro estado
em que me pôs Fortuna e Natureza,
olhastes sem horror minha baixeza
e fizestes sentar-me ao vosso lado.
Então, de ingrata obrigação chamado
Deixei à força a companhia e a mesa;
e inda cheio de ideias de grandeza,
vim dar por tema um verbo conjugado.
Não sei com dous opostos conformar-me;
sofrem-me os grandes, sou taful e moço,
não sei a «senhor mestre» costumar-me.
Tais extremos, Senhor, unir não posso;
de dous génios não sou. Mandai fechar-me
ou a minha aula, ou o palácio vosso.
(fixação do texto e notas de Rodrigues Lapa)
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19.2.04
[na senda das excelentes contratações do Quartzo]
NICOLAU SAIÃO
Nasceu em Monforte do Alentejo, em 1946.
É também pintor e publicista. Colabora com alguma imprensa local.
Desde há dias é também colaborador deste excelente blog.
HOMEM
Casas novas, número vinte e dois
diz o guarda-fiscal reformado. A boca
estampa no vidro
um desenho recortado. Um pulôver branco
- que bafo! - adeja, desconfiado. É a flor do Inverno
ruga que pouco a pouco chega. Casas novas
casas novas: bilhete humano rasgado.
Foi por esse caminho que passaram
Baco, Nitzsche, Colombo e Abu-Rahman?
AS LUZES
Vagamente inquietos
sobre a secretária
como anões cercados de lodo
como insectos enormes e ofegantes
iluminados flutuam
e violentam a carne
das praias quando amanhece
e a trovoada aparece
com seu sexo de safira
Na invenção mais mortífera
que o nevoeiro contém
lentamente se despenham
incorruptos
Os poemas esqueceram
revoltaram-se e são homens
com o seu hálito de arsénico
como amantes invisíveis.
(de Os Objectos Inquietantes, editorial Caminho, 1992)
DOIS
O tempo
O tempo, quando um grande vazio de repente finda
como em obras de paixão/ a porta que bate e já começa
a deixar a marca leve, quase de acaso para fora
das presenças que anos futuros não mais terão por si
mesmos/ contam eles, sobre outra forma conseguida
achada, que é como quem diz, numa revista destroçada
Para depois
Dizemos todos/ como estradas sem ninguém, como gaiolas
onde os pássaros para antes deixam sua imagem fotografada
e a nossa memória tem de súbito poucos poucos meses
mas mesmo assim revive sobrevive/ como um assobio
E por isso para fora a voz é uma estrada
uma folha que paira/ ou rua para dentro doutro momento
como uma criança soprada oscilante ressoando
tal qual para fora a infinita mágoa
de uma lembrança encontrada depois perdida/ dizem todos.
RETRATO
Sim, elas têm nome: metade
calando-se, metade
subindo
escuras como cascas
ou como vidros quebrados.
Terça-feira, quarta-feira
- perfis abandonados
números e acordes
inúteis.
Chamam-lhes o que preciso
fôr: nenhum receio obriga
a metade que são
ausente
a qualquer coisa dor
fundo nos ossos.
VAN GOGH
Com um tiro, Vicente?
Entre a casa e o sol?
Então para quê
o vermelho ante o céu?
E o inferno para tanta gente?
E a noite tremendo
de frio?
Nanja eu!
Prefiro comer um chapéu
um caracol
ou a capa do meu tio.
(de Flauta de Pan, edições Colibri, 1998)
NICOLAU SAIÃO
Nasceu em Monforte do Alentejo, em 1946.
É também pintor e publicista. Colabora com alguma imprensa local.
Desde há dias é também colaborador deste excelente blog.
HOMEM
Casas novas, número vinte e dois
diz o guarda-fiscal reformado. A boca
estampa no vidro
um desenho recortado. Um pulôver branco
- que bafo! - adeja, desconfiado. É a flor do Inverno
ruga que pouco a pouco chega. Casas novas
casas novas: bilhete humano rasgado.
Foi por esse caminho que passaram
Baco, Nitzsche, Colombo e Abu-Rahman?
AS LUZES
Vagamente inquietos
sobre a secretária
como anões cercados de lodo
como insectos enormes e ofegantes
iluminados flutuam
e violentam a carne
das praias quando amanhece
e a trovoada aparece
com seu sexo de safira
Na invenção mais mortífera
que o nevoeiro contém
lentamente se despenham
incorruptos
Os poemas esqueceram
revoltaram-se e são homens
com o seu hálito de arsénico
como amantes invisíveis.
(de Os Objectos Inquietantes, editorial Caminho, 1992)
DOIS
O tempo
O tempo, quando um grande vazio de repente finda
como em obras de paixão/ a porta que bate e já começa
a deixar a marca leve, quase de acaso para fora
das presenças que anos futuros não mais terão por si
mesmos/ contam eles, sobre outra forma conseguida
achada, que é como quem diz, numa revista destroçada
Para depois
Dizemos todos/ como estradas sem ninguém, como gaiolas
onde os pássaros para antes deixam sua imagem fotografada
e a nossa memória tem de súbito poucos poucos meses
mas mesmo assim revive sobrevive/ como um assobio
E por isso para fora a voz é uma estrada
uma folha que paira/ ou rua para dentro doutro momento
como uma criança soprada oscilante ressoando
tal qual para fora a infinita mágoa
de uma lembrança encontrada depois perdida/ dizem todos.
RETRATO
Sim, elas têm nome: metade
calando-se, metade
subindo
escuras como cascas
ou como vidros quebrados.
Terça-feira, quarta-feira
- perfis abandonados
números e acordes
inúteis.
Chamam-lhes o que preciso
fôr: nenhum receio obriga
a metade que são
ausente
a qualquer coisa dor
fundo nos ossos.
VAN GOGH
Com um tiro, Vicente?
Entre a casa e o sol?
Então para quê
o vermelho ante o céu?
E o inferno para tanta gente?
E a noite tremendo
de frio?
Nanja eu!
Prefiro comer um chapéu
um caracol
ou a capa do meu tio.
(de Flauta de Pan, edições Colibri, 1998)
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18.2.04
VÍTOR MATOS E SÁ
7
Na terrível importância quotidiana da vida
és a margem inevitável da tua brancura.
Entre teus braços escorre teu corpo,
entre teus olhos que searas rompendo!
Vem - eu te espero no alto de outro riso,
outro nome, outros dedos mais longos,
mais calmos, correntes...
Hei-de amar-te aí, sobre as primaveras e um vento
que amar-te assim desmancharia as rosas.
De nós subirão as estrelas para o céu;
de nós teus olhos fechados hão-de ver-me
regressando por teu corpo como um barco
ou a noite mais antiga e secreta.
(de Horizonte dos Dias, 1952)
7
Na terrível importância quotidiana da vida
és a margem inevitável da tua brancura.
Entre teus braços escorre teu corpo,
entre teus olhos que searas rompendo!
Vem - eu te espero no alto de outro riso,
outro nome, outros dedos mais longos,
mais calmos, correntes...
Hei-de amar-te aí, sobre as primaveras e um vento
que amar-te assim desmancharia as rosas.
De nós subirão as estrelas para o céu;
de nós teus olhos fechados hão-de ver-me
regressando por teu corpo como um barco
ou a noite mais antiga e secreta.
(de Horizonte dos Dias, 1952)
O veneno lucra na distância dos braços
a dor doméstica dos dias.
Dá-me um pouco da chuva do teu passado,
o método de perder ilusões,
aquilo que os dedos sentem quando tocam na roupa.
a dor doméstica dos dias.
Dá-me um pouco da chuva do teu passado,
o método de perder ilusões,
aquilo que os dedos sentem quando tocam na roupa.
17.2.04
[Ale e Nébia mudaram a canalização para aqui - ponho a tocar uma canção para dar sorte]
SÉRGIO GODINHO
O BAÚ DE SIGMUND FREUD
A religião é uma maneira de explicar tudo
o surrealismo é uma maneira de não explicar nada
entre a prece e a charada
há-de haver uma outra estrada
que eu ainda hei-de percorrer
(isto disse o doutor Freud)
Não nego que olhar para dentro
não digo que olhar p’ro ego
não desmanche o fingimento
não faça ver quem é cego
Mas que trabalho, que canseira (não há maneira)
nos salões do inconsciente
há baús de tantas cores
tanto pó por sobre as dores
tanto dos nossos insides
que nos sai desnaturado
Eu sei, eu sei, Freud explica
O b-a-bá do baú
mas
se eu fosse a ti Segismundo
não teria vindo ao mundo
pra nos fazer vir a nós
que quem quiser vir a si
vai ter que abrir o baú
Outro dia levantei-me tão bem disposto
até o espelho sorria ao olhar para o meu rosto
deitei-me logo outra vez
há que ser poupado e parco
pra não lhe perder o gosto
pra não afundar o barco
Tanta cobrança afectiva
vinda a boiar do passado
fica um sujeito à deriva
sem saber do que é culpado
Mas que trabalho, que canseira (não há maneira)
nos salões do inconsciente
há baús de tantas cores
tanto pó por sobre as dores
tanto dos nossos insides
que nos sai desnaturado
Eu sei, eu sei, Freud explica
O b-a-bá do baú
mas
se eu fosse a ti Segismundo
não teria vindo ao mundo
pra nos fazer vir a nós
que quem quiser vir a si
vai ter que abrir o baú
O cobarde é uma pessoa que foge para trás
o herói é uma pessoa que foge pra frente
em maior ou menor grau
todos nós fugimos
ao medo que faz o cobarde
ao medo que faz o valente
O certo é que quando te olhas
Te entregas à introspecção
Nem que seja a saca rolhas
(passe o vulgar da expressão)
Mas que trabalho, que canseira (não há maneira)
nos salões do inconsciente
há baús de tantas cores
tanto pó por sobre as dores
tanto dos nossos insides
que nos sai desnaturado
Eu sei, eu sei, Freud explica
O b-a-bá do baú
mas
se eu fosse a ti Segismundo
não teria vindo ao mundo
pra nos fazer vir a nós
que quem quiser vir a si
vai ter que abrir o baú
(do álbum Aos Amores, 1989)
SÉRGIO GODINHO
O BAÚ DE SIGMUND FREUD
A religião é uma maneira de explicar tudo
o surrealismo é uma maneira de não explicar nada
entre a prece e a charada
há-de haver uma outra estrada
que eu ainda hei-de percorrer
(isto disse o doutor Freud)
Não nego que olhar para dentro
não digo que olhar p’ro ego
não desmanche o fingimento
não faça ver quem é cego
Mas que trabalho, que canseira (não há maneira)
nos salões do inconsciente
há baús de tantas cores
tanto pó por sobre as dores
tanto dos nossos insides
que nos sai desnaturado
Eu sei, eu sei, Freud explica
O b-a-bá do baú
mas
se eu fosse a ti Segismundo
não teria vindo ao mundo
pra nos fazer vir a nós
que quem quiser vir a si
vai ter que abrir o baú
Outro dia levantei-me tão bem disposto
até o espelho sorria ao olhar para o meu rosto
deitei-me logo outra vez
há que ser poupado e parco
pra não lhe perder o gosto
pra não afundar o barco
Tanta cobrança afectiva
vinda a boiar do passado
fica um sujeito à deriva
sem saber do que é culpado
Mas que trabalho, que canseira (não há maneira)
nos salões do inconsciente
há baús de tantas cores
tanto pó por sobre as dores
tanto dos nossos insides
que nos sai desnaturado
Eu sei, eu sei, Freud explica
O b-a-bá do baú
mas
se eu fosse a ti Segismundo
não teria vindo ao mundo
pra nos fazer vir a nós
que quem quiser vir a si
vai ter que abrir o baú
O cobarde é uma pessoa que foge para trás
o herói é uma pessoa que foge pra frente
em maior ou menor grau
todos nós fugimos
ao medo que faz o cobarde
ao medo que faz o valente
O certo é que quando te olhas
Te entregas à introspecção
Nem que seja a saca rolhas
(passe o vulgar da expressão)
Mas que trabalho, que canseira (não há maneira)
nos salões do inconsciente
há baús de tantas cores
tanto pó por sobre as dores
tanto dos nossos insides
que nos sai desnaturado
Eu sei, eu sei, Freud explica
O b-a-bá do baú
mas
se eu fosse a ti Segismundo
não teria vindo ao mundo
pra nos fazer vir a nós
que quem quiser vir a si
vai ter que abrir o baú
(do álbum Aos Amores, 1989)
O meu contributo para a colecção de opiniões sobre o filme de Mel Gibson:
Look allways to the bright side of life.
Look allways to the bright side of life.
MICHEL QUOIST
Faze, Senhor, que eu evite as pancadas sem rumo que cansam e magoam, e não atingem o inimigo.
Afasta de mim estas cóleras espectaculares, que chamam a atenção mas deixam inutilmente enfraquecido.
Não permitas que orgulhosamente eu queira sempre preterir os outros, esmagando, ao passar, os que vão à frente,
Apaga do meu rosto o ar sombrio das tempestades vencedoras.
Ao contrário, Senhor, faze que calmamente eu preencha os meus dias, tal como o mar lentamente recobre toda a praia.
Faze-me humilde como o mar, quando silencioso e ameno avança sem se fazer notar.
Dá-me a graça de esperar os meus irmãos, medir os meus passos pelos deles, para com eles subir.
Concede-me a perseverança triunfante das ondas.
Faze que cada um dos meus recuos seja ocasião de subida.
Dá a meu rosto a claridade das águas límpidas, à minha alma a brancura da espuma;
Ilumina a minha vida como os raios do Teu Sol fazem cantar o espelho das águas,
Mas sobretudo, Senhor, faze que eu não guarde para mim esta Luz, e que todos os que de mim se aproximem voltem a casa ávidos de se banharem na Tua Graça eterna.
(de Poemas para Rezar, 6ª ed: Moraes editores, 1970 - tradução de Lucas Moreira Neves, revista para Portugal por Pedro Tamen)
Faze, Senhor, que eu evite as pancadas sem rumo que cansam e magoam, e não atingem o inimigo.
Afasta de mim estas cóleras espectaculares, que chamam a atenção mas deixam inutilmente enfraquecido.
Não permitas que orgulhosamente eu queira sempre preterir os outros, esmagando, ao passar, os que vão à frente,
Apaga do meu rosto o ar sombrio das tempestades vencedoras.
Ao contrário, Senhor, faze que calmamente eu preencha os meus dias, tal como o mar lentamente recobre toda a praia.
Faze-me humilde como o mar, quando silencioso e ameno avança sem se fazer notar.
Dá-me a graça de esperar os meus irmãos, medir os meus passos pelos deles, para com eles subir.
Concede-me a perseverança triunfante das ondas.
Faze que cada um dos meus recuos seja ocasião de subida.
Dá a meu rosto a claridade das águas límpidas, à minha alma a brancura da espuma;
Ilumina a minha vida como os raios do Teu Sol fazem cantar o espelho das águas,
Mas sobretudo, Senhor, faze que eu não guarde para mim esta Luz, e que todos os que de mim se aproximem voltem a casa ávidos de se banharem na Tua Graça eterna.
(de Poemas para Rezar, 6ª ed: Moraes editores, 1970 - tradução de Lucas Moreira Neves, revista para Portugal por Pedro Tamen)
O Centenário
Poesia de Pedro Homem de Mello em colectânea
As comemorações do centenário do nascimento de Pedro Homem de Mello (1904-1984) terão como ponto alto o lançamento, a 17 de Julho, de uma colectânea da sua poesia organizada por Manuel Alegre e Paulo Sucena, e também a inauguração, em Setembro, de uma escultura, da autoria de José Rodrigues, em Afife - terra onde Mello viveu, escreveu grande parte da sua obra e morreu no dia 6 daquele mês. O programa, apresentado ontem na Cooperativa Árvore, no Porto, pela Associação Recreativa e Cultural O Casino Afifense, reúne vários outros eventos, entre os quais uma exposição sobre a vida e obra do poeta, a apresentar naquela localidade do Alto Minho, e o lançamento pelos CTT de um selo comemorativo.
(do jornal Público de hoje)
Poesia de Pedro Homem de Mello em colectânea
As comemorações do centenário do nascimento de Pedro Homem de Mello (1904-1984) terão como ponto alto o lançamento, a 17 de Julho, de uma colectânea da sua poesia organizada por Manuel Alegre e Paulo Sucena, e também a inauguração, em Setembro, de uma escultura, da autoria de José Rodrigues, em Afife - terra onde Mello viveu, escreveu grande parte da sua obra e morreu no dia 6 daquele mês. O programa, apresentado ontem na Cooperativa Árvore, no Porto, pela Associação Recreativa e Cultural O Casino Afifense, reúne vários outros eventos, entre os quais uma exposição sobre a vida e obra do poeta, a apresentar naquela localidade do Alto Minho, e o lançamento pelos CTT de um selo comemorativo.
(do jornal Público de hoje)
16.2.04
JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
8.
Outra vida não concedem os deuses.
Dourados templos;
douradas naves; o altar em que perecemos -
ares de vago incenso apaziguam a febre, ardem devagar,
tumultuosamente.
Sombras vi na locomoção do tempo.
Vai-se de uma véspera às horas mais altas.
Em frente -
ouve-se como um eco de pirâmides, muito cedo.
Chega-se ao fim quando tudo se cala.
Fecham-se as cancelas, os lábios.
Fechamo-nos no ocaso das rosas, não florimos com o trevo.
Um sonho de água atravessará o mármore, as galerias do sangue -
consumai o sacrifício.
Que seja a dança, claridade.
Baías onde a mágoa não perdura.
Um vinho incandescente na orla dos mares.
Remos, sinais de alegria, nenhuma morte no intervalo das luas.
Eu cantei as tempestades, o presságio dos ventos.
Eles arremessam os dardos.
flechas que me habituam ao tempo e ao coração -
assim emudecem os astros na clara noite do norte e das montanhas -
assim estremece o peito, a morada de um homem.
Se o lançarem às vagas desfolhar-se-á vivamente.
(de Autoretrato, Assírio & Alvim, 1986 - cadernos peninsulares / literatura - sublinhado meu)
8.
Outra vida não concedem os deuses.
Dourados templos;
douradas naves; o altar em que perecemos -
ares de vago incenso apaziguam a febre, ardem devagar,
tumultuosamente.
Sombras vi na locomoção do tempo.
Vai-se de uma véspera às horas mais altas.
Em frente -
ouve-se como um eco de pirâmides, muito cedo.
Chega-se ao fim quando tudo se cala.
Fecham-se as cancelas, os lábios.
Fechamo-nos no ocaso das rosas, não florimos com o trevo.
Um sonho de água atravessará o mármore, as galerias do sangue -
consumai o sacrifício.
Que seja a dança, claridade.
Baías onde a mágoa não perdura.
Um vinho incandescente na orla dos mares.
Remos, sinais de alegria, nenhuma morte no intervalo das luas.
Eu cantei as tempestades, o presságio dos ventos.
Eles arremessam os dardos.
flechas que me habituam ao tempo e ao coração -
assim emudecem os astros na clara noite do norte e das montanhas -
assim estremece o peito, a morada de um homem.
Se o lançarem às vagas desfolhar-se-á vivamente.
(de Autoretrato, Assírio & Alvim, 1986 - cadernos peninsulares / literatura - sublinhado meu)
15.2.04
NA INTERNET COMO NO CANCIONEIRO DE RESENDE
(apenas um bom exemplo, vindo do outro lado do Atlântico)
Internetiquês
I
Para Márcia, a par dessa linguagem
Essa língua montada em megabytes
de usuários de redes e rodeios
de um mói de mensagens nos e-mails
tão fincada nos chats e nos sites,
essa língua tão fadada a ser diet,
descoberta nos vales do silício
é rascunho de novo hieróglifo?
www, nas pirâmides ao avesso,
feitas entre 0 ou 1, desconheço
um tal troço sem fim e sem início.
André Ricardo Aguiar
II
para André, idem
um tal troço sem fim e sem início
invisível que a gente nunca pega
mesmo assim dentro dele se navega
como o ar vagueando em precipício
urubus a voar em rebuliço
pelos céus internautas do nordeste
onde quem manda é cabra da peste
pula de um blogue a outro em prosa e verso
faz desse quarto e sala um universo
e não tem megabyte que o conteste.
Márcia Maia
(apenas um bom exemplo, vindo do outro lado do Atlântico)
Internetiquês
I
Para Márcia, a par dessa linguagem
Essa língua montada em megabytes
de usuários de redes e rodeios
de um mói de mensagens nos e-mails
tão fincada nos chats e nos sites,
essa língua tão fadada a ser diet,
descoberta nos vales do silício
é rascunho de novo hieróglifo?
www, nas pirâmides ao avesso,
feitas entre 0 ou 1, desconheço
um tal troço sem fim e sem início.
André Ricardo Aguiar
II
para André, idem
um tal troço sem fim e sem início
invisível que a gente nunca pega
mesmo assim dentro dele se navega
como o ar vagueando em precipício
urubus a voar em rebuliço
pelos céus internautas do nordeste
onde quem manda é cabra da peste
pula de um blogue a outro em prosa e verso
faz desse quarto e sala um universo
e não tem megabyte que o conteste.
Márcia Maia
[o João d'O Companheiro Secreto informa que "Domingo passado foi o aniversário da Rita Wemans. Temos saudades dela." - Eu não conheci a Rita, mas também tenho saudades dela]
RITA WEMANS
Nasceu em Lisboa, em 1982.
"Aliou a fé cristã ao empenhamento, pertencendo, desde 1996, ao Movimento Católico de Estudantes (...) Era também catequista na paróquia de Nossa Senhora dos Navegantes, onde planeava iniciar um grupo de jovens. Cedo revelou uma personalidade artística. (...) A escrita e a pintura foram expressões da sua alegria de viver e dedicação aos outros." (da badana de Enchamos tudo de Futuros)
Morreu em 2002, num acidente de automóvel.
Para que, um dia, o que aqui
escrevo não seja só meu, produzido
na noite calada do mais íntimo
de mim, mas floresça em
significados para os outros e os console
Inseguranças
A lápis escrevo o que surge
num confuso emaranhado
de ideias indefinidas
é quase como pescar num cardume
um peixe de cada vez e
ficar a olhar para ele, como
se reflectisse a minha vida.
Escrevo a lápis porque já
nada para mim é certo
E porque me perco neste mundo
Só de ideias, fantasias e considerações
Não sei mais o que penso
Acerca das coisas às
vezes detesto-me por isso
Saber esperar...
Saber esperar o que já veio
Saber ter o que há-de vir
é mais do que pôr uma espe-
rança desmedida no futuro
e ir saboreando o hoje
e o amanhã...
Saber ter olhos para ver o invisível,
e ouvidos p'ra escutar
o que ninguém nos diz,
mas nós queríamos tanto...
Vale a pena sorrir
Quando o que esperam de nós são lágrimas
Vale a pena ver o pôr-do-Sol
e pensar na próxima manhã
Enchamos tudo de futuros
como se eles espreitassem
das nuvens, ou estivessem
à nossa espera para nos dizer
bom dia e para esperarem
até chegarmos lá.
Vale a pena acreditar nos sonhos e
palpá-los mais do que numa esperança vã!
2000
(de Enchamos tudo de Futuros, Sopa de Letras, 2003)
RITA WEMANS
Nasceu em Lisboa, em 1982.
"Aliou a fé cristã ao empenhamento, pertencendo, desde 1996, ao Movimento Católico de Estudantes (...) Era também catequista na paróquia de Nossa Senhora dos Navegantes, onde planeava iniciar um grupo de jovens. Cedo revelou uma personalidade artística. (...) A escrita e a pintura foram expressões da sua alegria de viver e dedicação aos outros." (da badana de Enchamos tudo de Futuros)
Morreu em 2002, num acidente de automóvel.
Para que, um dia, o que aqui
escrevo não seja só meu, produzido
na noite calada do mais íntimo
de mim, mas floresça em
significados para os outros e os console
Inseguranças
A lápis escrevo o que surge
num confuso emaranhado
de ideias indefinidas
é quase como pescar num cardume
um peixe de cada vez e
ficar a olhar para ele, como
se reflectisse a minha vida.
Escrevo a lápis porque já
nada para mim é certo
E porque me perco neste mundo
Só de ideias, fantasias e considerações
Não sei mais o que penso
Acerca das coisas às
vezes detesto-me por isso
Saber esperar...
Saber esperar o que já veio
Saber ter o que há-de vir
é mais do que pôr uma espe-
rança desmedida no futuro
e ir saboreando o hoje
e o amanhã...
Saber ter olhos para ver o invisível,
e ouvidos p'ra escutar
o que ninguém nos diz,
mas nós queríamos tanto...
Vale a pena sorrir
Quando o que esperam de nós são lágrimas
Vale a pena ver o pôr-do-Sol
e pensar na próxima manhã
Enchamos tudo de futuros
como se eles espreitassem
das nuvens, ou estivessem
à nossa espera para nos dizer
bom dia e para esperarem
até chegarmos lá.
Vale a pena acreditar nos sonhos e
palpá-los mais do que numa esperança vã!
2000
(de Enchamos tudo de Futuros, Sopa de Letras, 2003)
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