19.1.11

JOSÉ NEWTON ALVES DE SOUSA


Se é a poesia, mais do que um impulso vocacional, uma capacidade que luta por realizar-se expressionalmente, refletindo ora o sujeito, ora o objeto, ou a ação, compreende-se que, antes de tomar forma externa, lírica, épica, satírica ou dramática, já é poesia, mas poesia em procura, poesia transitiva em relação a uma forma, buscada, que será, depois, re-buscada, entendendo-se êste último têrmo, não só no sentido de nova procura, mas também no de aprimoramento formal.
Antes de alguém parir seus poemas, já os viveu e reviveu, já lhes comunicou marca e pessoalidade inconfundíveis, de tal maneira que ninguém mais no mundo será capaz de os reviver e os recriar na mesma medida, no mesmo grau afetivo e na mesma plenitude do verdadeiro autor.
Essa pessoalidade essencial é que faz legítimo o poema, tornando-o irreproduzível, o que não significa inimitável, e único, o que não quer dizer não passível de semelhança com outro.
A poesia, em estado inicial, isto é, a poesia latente ainda, com relação aos outros, mas atualizada, com relação ao autor, já se denuncia pela vida, pelo gesto, pelo ser existencial do poeta, antes que êste a exprima em versos.
O tempo do nascimento do poema nem sempre coincide com o de sua concepção. Nem todo poeta tem pressa de revelar aos outros o que já é síntese de beleza e sofrimento em sua alma. Há, entretanto, uma poesia como que impulsiva, que se não contém pacientemente dentro, mas força uma saída, rompe a película do repouso, para ser corpo exterior atuante.
[…]


(excerto inicial da conferência Considerações sôbre a Poesia de António Gedeão, Centro de Estudos Portugueses, da Faculdade de Filosofia do Crato, 1969)

18.1.11

JOSÉ AGUSTÍN GOYTISOLO


y hoy
te consume
el tédio

Como una nube turbia corrompiéndose
en lentas gotas de barro o de melancolia
como una lluvia antigua
que empapa hasta a los muertos más mezquinos
así el tédio resbala por los muros
forma charcos groseros en las calles
penetra en las iglesias y en los cines
y se filtra en las casas con su olor a desastre.
Un aire de fastidio y de humedad entonces
se apodera de gestos y palabras
se cuelga de los trajes
preside los encuentros de família
viaja en los sucios autobuses
y envuelve la tristísima cíudad desconfiada.
Ah testigo implacable de las horas vacías
aburrimiento enorme que no ocultan
ni la música ambígua de las salas de fiesta
ni el clamor dei estádio
ni el tintineo y charla de las mesas de bar.
Y en médio de una edad de hastío y podredumbre
de espera y rabia oculta
tan solo algunos ninos se divierten
jugando a destruirse por buhardillas de sueno
mientras que afuera sigue
esa lluvia cayendo desconsoladamente
sobre la piel de un mundo en bancarrota.


(de Taller de Arquitectura, 1977)


e hoje
consome-te

o tédio


Como uma nuvem turva a corromper-se
em lentas gotas de barro ou de melancolia
como uma chuva antiga
que ensopa até os mortos mais mesquinhos
assim o tédio escorre pelos muros
forma charcos grosseiros nas ruas
penetra nas igrejas e nos cinemas
e se infiltra nas casas com seu odor a desastre.
Um sopro de náusea e de humidade então
apodera-se de gestos e palavras
suspende-se das roupas
preside aos encontros de família
viaja nos autocarros sujos
e envolve a tristíssima cidade desconfiada.
Ah testemunho implacável das horas vazias
enfado enorme que não é ocultado
nem pela música ambígua dos salões de festas
nem pelo clamor do estádio
nem pelo tilintar e conversa das mesas dos bares.
E a meio de uma idade de fastio e podridão
de espera e raiva oculta
apenas algumas crianças se divertem
brincando a destruir-se em recantos de sonho
enquanto lá fora continua
aquela chuva que cai desconsoladamente
sobre a pele de um mundo em bancarrota.


(tradução minha)

17.1.11

HIERONYMUS BOSCH


Tentações de Santo Antão, c. 1500
Óleo sobre madeira de carvalho
131,5x53 cm / 131,5x119 cm / 131,5x53 cm
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa



JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


TENTAÇÕES DE SANTO ANTÃO


Lá está o peixe de espada à cinta e o grande fogo em noite
de natal. O capitão da barca voa altos céus e o ovo deu à
luz o pranto das Eríneas. Tudo o que quisermos está aqui: a
virgem cavalgando uma árvore num céu gelado, manto azul,
mãos orantes, segue-a a gadanha da morte e a ave e outra ave
e os peixes e outro peixe. O facho aceso aquece a paisagem,
o descalabro da vida e o humano, de tão humano o quero, diz
em voz baixa o timoneiro enquanto passa sob a neblina.
Sob o som de pesadas botas ninguém, alguém anuncia a mesa
posta: frutos silvestres, pedaços, pedacinhos de ferro: o
grande diospiro abre sob o comando do símio: mendigos,
desejos obsessivos, pequenos monstros desembarcam em murmúrio.
Dias inteiros, séculos ergueram da água baixa e pútrida altas
torres. Perdeu-se de esmolas a cidade e o monge reza, meio-
-louco, fantasiador. Nos campos não há pastos nem rebanhos,
mas os sinos anunciam a ração da tarde e logo a da manhã.
Um manto rubro, uma serpente, as raias, o homem cabeça e pernas
e as figuras anunciam a novidade do feminino corpo nu:
continuam a passar, obstinados, em fúria, agora com lentidão
eterna, os meses e os anos, tempo e sempre mais tempo. O
peçonhento sangue dos humanos é igual ao sangue dos répteis:
gerações erguem gerações e o homem de negro encerrado no focinho
de urso formigueiro leva o alaúde. O mocho contempla a guerra
da noite e todos escutam impronunciável palavra a coberto de
maravilha: coxos, sem orelhas, órbitas vazias e logo plenas
de cega luminosidade; ninguém, todos experimentam a mente do
santo. A longínqua visão reflecte-se. Na gruta, um Cristo
crucificado assiste os animais e as árvores, o devaneio, as
casas, o derruir da verdadeira e profunda identidade. Fascinado,
estático, possuído pelo entusiasmo, o frade morre no
espelho: entre o seu rosto e o teu rosto inscreve-
-se e logo se rasura a pálida e terna forma de um rosto de
criança: traz guelras no exacto lugar da respiração: talvez
por isso não tenha a coragem da esperança quando
acompanha a barca dourada que se desloca para o sol e
de novo aparece e de novo desaparece —
ave do sonho dentro do sonho.


/Hieronymus Bosch, c.1500/


(de Museu das Janelas Verdes, Relógio d'Água editores, 2002)