ANA LUÍSA AMARAL
UMA CONSTANTE DA VIDA
Errámos junto
à História : devíamos
pegar em foices e enxadas
e destruir mil campos
de pensar:
computadores, ogivas nucleares,
assentos petrolíferos e mais:
centrais de mil cisões
(e, já agora, aquele pequeníssimo
sonar)
Errámos pela
História: enquanto tempo,
devíamos pegar nas foices,
nas enxadas.
E nos anéis das fadas
plantar outras sementes: bombas
despoletadas, ferrugentas,
que dessem trigo e paz
Errámos nas Histórias
de encantar:
um lobo freudiano, um capuchinho,
um osso pela grade
da prisão.
Voltaram as sereias
sentadas no olhar em devoção
(sem nunca terem nem sequer
partido)
(E seduz-nos ainda
esse cantar.)
Errámos sem saber
que o seu vagar é tal
que o sonho, cedo ou tarde,
se fará.
Que ao lado da cisão: a catedral
e ao lado do vitral: irracional
razão
A história junto
à História,
a enxada quebrada
pelo chão
(de Às Vezes o Paraíso, 1998)
31.3.07
28.3.07
WILLIAM SHAKESPEARE
Sonnet XV
When I consider everything that grows
Holds in perfection but a little moment,
That this huge stage presenteth nought but shows
Whereon the stars in secret influence comment;
When I perceive that men as plants increase,
Cheered and check'd even by the selfsame sky,
Vaunt in their youthful sap, at height decrease,
And wear their brave state out of memory;
Then the conceit of this inconstant stay
Sets you most rich in youth before my sight,
Where wasteful Time debateth with Decay
To change your day of youth to sullied night;
And all in war with Time for love of you,
As he takes from you, I engraft you new.
Se considero quanto é fugitiva
A perfeição de tudo que prospera,
Dos astros sinto a direcção furtiva
Sobre o palco da vida, essa quimera;
Se vejo homens e plantas a medrar
Que o mesmo Céu anima e prejudica,
Enche de seiva, aumenta, faz minguar,
E a fama do que foram sacrifica,
A própria sensação desta inconstância
Me faz ver-te mais rico em juventude,
Pois quero que resistas à ganância
Do decair, que sofres amiúde;
E o Tempo a guerrear, por teu amor,
Se te consome, eu dou-te mais vigor.
(tradução de Maria do Céu Saraiva Jorge, in Os Sonetos de Shakespeare, 1962)
Se considero quanto cresce vivo,
e atinge a perfeição só por instantes;
e que este imenso palco está cativo
de ocultos astros fortes e inconstantes;
se atento que Homem como planta aumenta,
do mesmo céu domado e guarnecido,
e que da seiva juvenil que o tenta
quando é mais forte é que será esvaído;
então o conceito deste incerto estado
mais rico em juventude em mim te cria,
ao ver que o Tempo a te mudar se há dado
em noite escura esse tão claro dia.
Com o Tempo em guerra por amor de ti,
o que el' te rouba, eu te reponho aqui
(tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 seculos, 1978)
Se considero tudo quanto cresce e apenas
por um fugaz momento na perfeição avulta,
e se este palco enorme não mostra mais que cenas
que os astros acompanham por influência oculta;
se vejo que igual céu anima e desanima
tanto homens como plantas que a par se desenvolvem,
juvenil seiva eleva-os e ao fim tombam de cima,
e logo da lembrança tais glórias se dissolvem;
então o conceber desta inconstante essência
te põe ante meus olhos mais rico em juventude,
enquanto o tempo pródigo se alia à decadência
para que o teu jovem dia na treva vil se mude.
Só por amor de ti, co tempo guerreando,
quanto ele te roubar te vou reenxertando.
(tradução de Vasco Graça Moura, in 50 Sonetos de Shakespeare, editorial Presença, 1987)
Se considero tudo quanto cresce
E a perfeição atinge um só momento,
Que cada cena que este palco oferece
Dos astros tem secreto assentimento;
Que cada homem medra como planta
P’lo mesmo céu amado e repelido,
Na seiva juvenil se agiganta,
E do cume declina, em breve olvido:
A ideia deste estado sempre vário
Traz-te a meus olhos, rico em juventude
Em quanto à ruína o templo perdulário
Disputa que o teu dia em noite mude:
Co’o tempo em guerra por amor de ti,
O que el’ te rouba, eu reenxerto aqui.
(tradução de Jorge Vilhena Mesquita, in Di Versos 5, Outono-Inverno de 2000-2001)
Quando penso que tudo quanto cresce
na perfeição só breve instante avulta,
que ao vasto palco só de cenas desce
lá das estrelas a influência oculta;
se vejo homens e plantas como anima
e desanima o céu e em tal pujança,
à seiva jovem, urna vez em cima,
cai o esplendor bem longe da lembrança;
a ideia então desta inconstante estada
deixa-me ver-te em glória juvenil,
e lutam tempo e queda a qual degrada
teu jovem dia numa noite vil.
Co tempo cm guerra por amor de ti,
quanto te roube eu to enxerto aqui.
(tradução de Vasco Graça Moura, in Os Sonetos de Shakespeare, 2002)
Sonnet XV
When I consider everything that grows
Holds in perfection but a little moment,
That this huge stage presenteth nought but shows
Whereon the stars in secret influence comment;
When I perceive that men as plants increase,
Cheered and check'd even by the selfsame sky,
Vaunt in their youthful sap, at height decrease,
And wear their brave state out of memory;
Then the conceit of this inconstant stay
Sets you most rich in youth before my sight,
Where wasteful Time debateth with Decay
To change your day of youth to sullied night;
And all in war with Time for love of you,
As he takes from you, I engraft you new.
Se considero quanto é fugitiva
A perfeição de tudo que prospera,
Dos astros sinto a direcção furtiva
Sobre o palco da vida, essa quimera;
Se vejo homens e plantas a medrar
Que o mesmo Céu anima e prejudica,
Enche de seiva, aumenta, faz minguar,
E a fama do que foram sacrifica,
A própria sensação desta inconstância
Me faz ver-te mais rico em juventude,
Pois quero que resistas à ganância
Do decair, que sofres amiúde;
E o Tempo a guerrear, por teu amor,
Se te consome, eu dou-te mais vigor.
(tradução de Maria do Céu Saraiva Jorge, in Os Sonetos de Shakespeare, 1962)
Se considero quanto cresce vivo,
e atinge a perfeição só por instantes;
e que este imenso palco está cativo
de ocultos astros fortes e inconstantes;
se atento que Homem como planta aumenta,
do mesmo céu domado e guarnecido,
e que da seiva juvenil que o tenta
quando é mais forte é que será esvaído;
então o conceito deste incerto estado
mais rico em juventude em mim te cria,
ao ver que o Tempo a te mudar se há dado
em noite escura esse tão claro dia.
Com o Tempo em guerra por amor de ti,
o que el' te rouba, eu te reponho aqui
(tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 seculos, 1978)
Se considero tudo quanto cresce e apenas
por um fugaz momento na perfeição avulta,
e se este palco enorme não mostra mais que cenas
que os astros acompanham por influência oculta;
se vejo que igual céu anima e desanima
tanto homens como plantas que a par se desenvolvem,
juvenil seiva eleva-os e ao fim tombam de cima,
e logo da lembrança tais glórias se dissolvem;
então o conceber desta inconstante essência
te põe ante meus olhos mais rico em juventude,
enquanto o tempo pródigo se alia à decadência
para que o teu jovem dia na treva vil se mude.
Só por amor de ti, co tempo guerreando,
quanto ele te roubar te vou reenxertando.
(tradução de Vasco Graça Moura, in 50 Sonetos de Shakespeare, editorial Presença, 1987)
Se considero tudo quanto cresce
E a perfeição atinge um só momento,
Que cada cena que este palco oferece
Dos astros tem secreto assentimento;
Que cada homem medra como planta
P’lo mesmo céu amado e repelido,
Na seiva juvenil se agiganta,
E do cume declina, em breve olvido:
A ideia deste estado sempre vário
Traz-te a meus olhos, rico em juventude
Em quanto à ruína o templo perdulário
Disputa que o teu dia em noite mude:
Co’o tempo em guerra por amor de ti,
O que el’ te rouba, eu reenxerto aqui.
(tradução de Jorge Vilhena Mesquita, in Di Versos 5, Outono-Inverno de 2000-2001)
Quando penso que tudo quanto cresce
na perfeição só breve instante avulta,
que ao vasto palco só de cenas desce
lá das estrelas a influência oculta;
se vejo homens e plantas como anima
e desanima o céu e em tal pujança,
à seiva jovem, urna vez em cima,
cai o esplendor bem longe da lembrança;
a ideia então desta inconstante estada
deixa-me ver-te em glória juvenil,
e lutam tempo e queda a qual degrada
teu jovem dia numa noite vil.
Co tempo cm guerra por amor de ti,
quanto te roube eu to enxerto aqui.
(tradução de Vasco Graça Moura, in Os Sonetos de Shakespeare, 2002)
26.3.07
[Salazar e a Poesia - resumo]
«O que não faz sentido / É o sentido que tudo isto tem.»
«O que não faz sentido / É o sentido que tudo isto tem.»
«A nação inteira passou, sem qualquer sobressalto, de respirar monotonamente com ditador, a respirar monotonamente sem ele.»
[Salazar e a Poesia - VI]
JORGE DE SENA
«NÃO, NÃO, NÃO SUBSCREVO,...»
Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de faláeia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e á inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do pais no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que
do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Africas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o OteIo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata
do oportunismo ã espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio
o navegante intrépido). Que a esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente á lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.
Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com fineza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de poéticas agora.
(de Quarenta Anos de Servidão, 1979)
JORGE DE SENA
«NÃO, NÃO, NÃO SUBSCREVO,...»
Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de faláeia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e á inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do pais no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que
do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Africas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o OteIo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata
do oportunismo ã espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio
o navegante intrépido). Que a esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente á lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.
Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com fineza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de poéticas agora.
Santa Bárbara, Fevereiro 1976
(aniversário de uma tentativa heróica de conter uma noite que duraria décadas)
(de Quarenta Anos de Servidão, 1979)
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Jorge de Sena,
Portuguesa,
salazar
[Salazar e a Poesia - V]
MIGUEL TORGA
(de Diário XI, edição do Autor, 2.ª edição revista, 1991 – 1.ª edição de 1973)
MIGUEL TORGA
Coimbra, 27 de Julho de 1970 - Morreu Salazar. Mas tarde demais para ele e para nós, os que o combatíamos. Para ele, porque não morreu em glória, como sempre deve ter esperado; para nós, porque o não vimos morrer na nossa raiva, na nossa humilhação, na nossa revolta. Viveu a frio conscientemente, envolto numa redoma de severidade gelada, a meter medo, e acabou por morrer a frio inconscientemente, numa preservada agonia amolecida, a meter dó. A doença desceu-o de super-homem a homem, e, a duração dela, de homem a farrapo humano. E, quando há pouco chegou a notícia de que se finara de vez, nenhum estremecimento abalou o país. Nem o dos partidários, nem o dos adversários. Para uns, a sombra definitiva do cadáver sobrepôs-se apenas à bruxuleante luz do ídolo; para os outros, o sentimento de piedade cobriu cristãmente o ressentimento sectário. A obra de domesticação nacional estava realizada há muito por uma tenacidade dominadora que utilizava apenas as qualidades negativas do português, e não tinha outra sabedoria do tempo senão a lição da rotina sancionada nos códigos do passado. A fome de aventura, a inquietação da liberdade, o alento da esperança, o orgulho, o brio, a alegria e a coragem - tudo fora sistemática e impiedosamente apagado na lembrança da grei. Daí que se não vislumbrem quaisquer sinais de tristeza aterrada, e, menos ainda, de euforia redentora. A nação inteira passou, sem qualquer sobressalto, de respirar monotonamente com ditador, a respirar monotonamente sem ele.
(de Diário XI, edição do Autor, 2.ª edição revista, 1991 – 1.ª edição de 1973)
[Salazar e a Poesia - IV]
JOSÉ GOMES FERREIRA
XXI
Todos nós
trazemos punhais
no sonho
fora da lei.
Mas ninguém sente remorsos de pensar:
«Fui talvez eu que o matei.»
XXII
Os mortos vão entrando nas covas
(alguns saem de noite para respirar às escondidas)
e logo correm outros, ainda vivos, para ajudar
a construir a ponte
com lume, sangue, pedras, nuvens, ferro, covardia, coragem,
desalento...
Mas haverá outra margem
para além do vento?
XXIII
Já muita gente pisa
o chão
com terror de magoar a luz
e esta sensação estagnada
de que os nossos mortos
em vão mordem a terra
com os dentes do coração
- à espera do socialismo do Nada.
XXIV
A morte dantes era tecida por aranhas de crepes,
necessidade de haver corvos e flores,
solidão exportada para criptas de trevas.
Claro, os tiranos também morrem como nós,
na mesma cera estendida à espera de haver asas
e liberdade nos abismos.
Mas parecem diferentes quando passam como hoje
em cortejos de longos véus de vento e luto
onde só faltam tochas humanas nos passeios para aquecerem a pompa.
Também às vezes acendem os candeeiros nas ruas
para ofuscarem o sol com tules negros
do tamanho de haver sempre noite no planeta.
Nestas ocasiões, os jornais vestem-se de noite
põem as primeiras páginas ao serviço das caveiras,
batem adjectivos nos tambores do papel.
E então principia a raiz solene
da estátua oficial necessária
por subscrição dos Bancos que arrecadam nos cofres montes de mãos suadas.
Depois emitem-se selos para concluir o equilíbrio das pedras
com argamassa de suor alugado
para o morto de bronze, lá em cima, fingir de cristal.
Mas que é isto? De súbito a marcha fúnebre da Heróica volta-se do avesso
com ouro nos trombones em festa
brilhantes de tão esfregados pela pomada Ódio.
E o povo não chora... Que se passa? Guardaram as lágrimas para os filhos presos?
Depressa! Tragam baldes de água podre para encher os olhos desta gente.
E tirem as crianças dos ombros dos pais, para não avistarem o futuro.
Proíbam esta alegria lúgubre de quando a vida parecia só do outro lado
e os homens em redor das aras das clareiras
devoravam a carne dos cavalos de crinas incendiadas
abatidos por Sacerdotes com cutelos de lâminas de sangue
que lhes decepavam as patas para os convivas rituais
beberam a magia vermelha dos Quatro Jorros.
Nesse tempo, morrer não era apenas o peso horizontal do pesadelo,
mas voo, continuação da vida no vinho das ânforas fúnebres
quando os corações mastigados sabiam ao centro do mundo.
Hoje as libações combinam-se pelo telefone,
saboreia-se de boca em boca o entusiasmo de existir a morte
para dançarmos a embriaguez da liberdade em segredo.
Escrevem-se datas nas rolhas do champanhe votivo
que todos tínhamos guardado nas caves
para beber neste grande Dia da Cova Aberta,
em que ninguém consegue esconder a volúpia da sede.
E até eu vou agora erguer, como os outros, a taça negra
- feliz por não ter de obedecer mais a Sua Alteza, o Devorador de pequeninos sóis.
Sua Alteza, que tornou esta pátria mais pequena do que é.
E não somente a Pátria. O Inferno, o Céu, a hora da Morte, a Agonia,
Deus, o Sol, a Lua, a Revolução, as almas, a Fé.
Não é verdade, Sophia?
(de Maio-Abril 1968-1975, in Poeta Militante - 3.º volume, 1978)
JOSÉ GOMES FERREIRA
XXI
(Todos andámos a matá-lo em pensamento. É horrível! – dirão alguns moralistas do futuro)
trazemos punhais
no sonho
fora da lei.
Mas ninguém sente remorsos de pensar:
«Fui talvez eu que o matei.»
XXII
(Ouve-se dizer por toda aparte: «oxalá não morra antes dele!» - «Do Salazar, claro».)
Os mortos vão entrando nas covas
(alguns saem de noite para respirar às escondidas)
e logo correm outros, ainda vivos, para ajudar
a construir a ponte
com lume, sangue, pedras, nuvens, ferro, covardia, coragem,
desalento...
Mas haverá outra margem
para além do vento?
XXIII
Já muita gente pisa
o chão
com terror de magoar a luz
e esta sensação estagnada
de que os nossos mortos
em vão mordem a terra
com os dentes do coração
- à espera do socialismo do Nada.
XXIV
(O Salazar morreu e vai hoje a enterrar: «O velho abutre é sábio e alisa as suas penas. / A podridão lhe agrada e seus discursos / têm o dom de tornar as almas mais pequenas» Sophia de Mello Breyner)
A morte dantes era tecida por aranhas de crepes,
necessidade de haver corvos e flores,
solidão exportada para criptas de trevas.
Claro, os tiranos também morrem como nós,
na mesma cera estendida à espera de haver asas
e liberdade nos abismos.
Mas parecem diferentes quando passam como hoje
em cortejos de longos véus de vento e luto
onde só faltam tochas humanas nos passeios para aquecerem a pompa.
Também às vezes acendem os candeeiros nas ruas
para ofuscarem o sol com tules negros
do tamanho de haver sempre noite no planeta.
Nestas ocasiões, os jornais vestem-se de noite
põem as primeiras páginas ao serviço das caveiras,
batem adjectivos nos tambores do papel.
E então principia a raiz solene
da estátua oficial necessária
por subscrição dos Bancos que arrecadam nos cofres montes de mãos suadas.
Depois emitem-se selos para concluir o equilíbrio das pedras
com argamassa de suor alugado
para o morto de bronze, lá em cima, fingir de cristal.
Mas que é isto? De súbito a marcha fúnebre da Heróica volta-se do avesso
com ouro nos trombones em festa
brilhantes de tão esfregados pela pomada Ódio.
E o povo não chora... Que se passa? Guardaram as lágrimas para os filhos presos?
Depressa! Tragam baldes de água podre para encher os olhos desta gente.
E tirem as crianças dos ombros dos pais, para não avistarem o futuro.
Proíbam esta alegria lúgubre de quando a vida parecia só do outro lado
e os homens em redor das aras das clareiras
devoravam a carne dos cavalos de crinas incendiadas
abatidos por Sacerdotes com cutelos de lâminas de sangue
que lhes decepavam as patas para os convivas rituais
beberam a magia vermelha dos Quatro Jorros.
Nesse tempo, morrer não era apenas o peso horizontal do pesadelo,
mas voo, continuação da vida no vinho das ânforas fúnebres
quando os corações mastigados sabiam ao centro do mundo.
Hoje as libações combinam-se pelo telefone,
saboreia-se de boca em boca o entusiasmo de existir a morte
para dançarmos a embriaguez da liberdade em segredo.
Escrevem-se datas nas rolhas do champanhe votivo
que todos tínhamos guardado nas caves
para beber neste grande Dia da Cova Aberta,
em que ninguém consegue esconder a volúpia da sede.
E até eu vou agora erguer, como os outros, a taça negra
- feliz por não ter de obedecer mais a Sua Alteza, o Devorador de pequeninos sóis.
Sua Alteza, que tornou esta pátria mais pequena do que é.
E não somente a Pátria. O Inferno, o Céu, a hora da Morte, a Agonia,
Deus, o Sol, a Lua, a Revolução, as almas, a Fé.
Não é verdade, Sophia?
(de Maio-Abril 1968-1975, in Poeta Militante - 3.º volume, 1978)
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José Gomes Ferreira,
Portuguesa,
salazar
[Salazar e a Poesia - III]
LUÍS AMORIM DE SOUSA
(...)
(excerto de Londres e Companhia, Assírio & Alvim, 2004)
LUÍS AMORIM DE SOUSA
(...)
Eu nem queria acreditar que estava a conversar com Pablo Neruda e como num desabafo, contei-lhe que tinha começado a ler a sua obra em Moçambique, mas que os seus livros estavam proibidos e eram difíceis de encontrar. Contei-lhe ainda que um amigo meu tinha arranjado um exemplar do Canto General e que, com todo o cuidado para não darmos nas vistas, eu e outros companheiros íamos espaçadamente a casa dele, para ler o poema à sucapa. Neruda olhou para mim com uma expressão que não esqueço e pôs a mão no meu braço.
- A história que acabou de me contar, foi-me contada mais vezes. Aconteceu também noutros países e quase sempre com jovens. É uma coisa que se repete ao longo da minha vida e que me deixa sempre emocionado.
E o grande Pablo Neruda agradeceu-me.
Depois falou de Salazar, que acusou de abafar a cultura portuguesa e disse que o considerava cabalmente responsável pelo isolamento mundial dos nossos poetas. Bebendo um trago de vinho perguntou se conhecíamos os vinhos do seu país. Tivemos que admitir que não e, sorrindo, Neruda comentou que por esse isolamento não poderia culpar o ditador Salazar.
(...)(excerto de Londres e Companhia, Assírio & Alvim, 2004)
[Salazar e a Poesia - II]
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
O VELHO ABUTRE
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
(de Livro Sexto, 1962)
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
O VELHO ABUTRE
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
(de Livro Sexto, 1962)
[Salazar e a Poesia - I]
FERNANDO PESSOA
SALAZAR
António de Oliveira Salazar.
Três nomes em sequência regular...
António é António
Oliveira é uma árvore
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
……………………………………
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
……………………………………
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.
Mas enfim é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé.
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho
Nem até
Café.
(sequência datada de 29 de Março de 1935, publicada pela primeira vez, enviada por Jorge de Sena, em O Estado de São Paulo, na edição de 20 de Agosto de 1960)
FERNANDO PESSOA
SALAZAR
António de Oliveira Salazar.
Três nomes em sequência regular...
António é António
Oliveira é uma árvore
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
……………………………………
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
……………………………………
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.
Mas enfim é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé.
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho
Nem até
Café.
(sequência datada de 29 de Março de 1935, publicada pela primeira vez, enviada por Jorge de Sena, em O Estado de São Paulo, na edição de 20 de Agosto de 1960)
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