26.3.07

[Salazar e a Poesia - IV]

JOSÉ GOMES FERREIRA

XXI

(Todos andámos a matá-lo em pensamento. É horrível! – dirão alguns moralistas do futuro)
Todos nós
trazemos punhais
no sonho
fora da lei.

Mas ninguém sente remorsos de pensar:
«Fui talvez eu que o matei.»

XXII
(Ouve-se dizer por toda aparte: «oxalá não morra antes dele!» - «Do Salazar, claro».)

Os mortos vão entrando nas covas
(alguns saem de noite para respirar às escondidas)
e logo correm outros, ainda vivos, para ajudar
a construir a ponte
com lume, sangue, pedras, nuvens, ferro, covardia, coragem,
desalento...

Mas haverá outra margem
para além do vento?

XXIII

Já muita gente pisa
o chão
com terror de magoar a luz
e esta sensação estagnada
de que os nossos mortos
em vão mordem a terra
com os dentes do coração
- à espera do socialismo do Nada.

XXIV
(O Salazar morreu e vai hoje a enterrar: «O velho abutre é sábio e alisa as suas penas. / A podridão lhe agrada e seus discursos / têm o dom de tornar as almas mais pequenas» Sophia de Mello Breyner)

A morte dantes era tecida por aranhas de crepes,
necessidade de haver corvos e flores,
solidão exportada para criptas de trevas.

Claro, os tiranos também morrem como nós,
na mesma cera estendida à espera de haver asas
e liberdade nos abismos.

Mas parecem diferentes quando passam como hoje
em cortejos de longos véus de vento e luto
onde só faltam tochas humanas nos passeios para aquecerem a pompa.

Também às vezes acendem os candeeiros nas ruas
para ofuscarem o sol com tules negros
do tamanho de haver sempre noite no planeta.

Nestas ocasiões, os jornais vestem-se de noite
põem as primeiras páginas ao serviço das caveiras,
batem adjectivos nos tambores do papel.

E então principia a raiz solene
da estátua oficial necessária
por subscrição dos Bancos que arrecadam nos cofres montes de mãos suadas.

Depois emitem-se selos para concluir o equilíbrio das pedras
com argamassa de suor alugado
para o morto de bronze, lá em cima, fingir de cristal.

Mas que é isto? De súbito a marcha fúnebre da Heróica volta-se do avesso
com ouro nos trombones em festa
brilhantes de tão esfregados pela pomada Ódio.

E o povo não chora... Que se passa? Guardaram as lágrimas para os filhos presos?
Depressa! Tragam baldes de água podre para encher os olhos desta gente.
E tirem as crianças dos ombros dos pais, para não avistarem o futuro.

Proíbam esta alegria lúgubre de quando a vida parecia só do outro lado
e os homens em redor das aras das clareiras
devoravam a carne dos cavalos de crinas incendiadas

abatidos por Sacerdotes com cutelos de lâminas de sangue
que lhes decepavam as patas para os convivas rituais
beberam a magia vermelha dos Quatro Jorros.

Nesse tempo, morrer não era apenas o peso horizontal do pesadelo,
mas voo, continuação da vida no vinho das ânforas fúnebres
quando os corações mastigados sabiam ao centro do mundo.

Hoje as libações combinam-se pelo telefone,
saboreia-se de boca em boca o entusiasmo de existir a morte
para dançarmos a embriaguez da liberdade em segredo.

Escrevem-se datas nas rolhas do champanhe votivo
que todos tínhamos guardado nas caves
para beber neste grande Dia da Cova Aberta,

em que ninguém consegue esconder a volúpia da sede.
E até eu vou agora erguer, como os outros, a taça negra
- feliz por não ter de obedecer mais a Sua Alteza, o Devorador de pequeninos sóis.

Sua Alteza, que tornou esta pátria mais pequena do que é.
E não somente a Pátria. O Inferno, o Céu, a hora da Morte, a Agonia,
Deus, o Sol, a Lua, a Revolução, as almas, a Fé.

Não é verdade, Sophia?

(de Maio-Abril 1968-1975, in Poeta Militante - 3.º volume, 1978)

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