17.10.13

DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES


Outubro
mês dos figos maduros
da perfeita tranquilidade
mês
em que das eiras
perdigueiros correm para os currais
e dos currais se ouvem burros e éguas
outubro
mês dos patos nos ribeiros
mês das serras, das perdizes
dos ferreiros, das cegonhas
das paisagens, das feiras com queijo
do sr. sebastião e dos alpendres
outubro
mês dos meus avós vivos
levando-me a ver os moinhos de água


(de O Valete do Sétimo Naipe, Felício & Cabral, 1994)

14.10.13

BEN CLARK




(chanson)

Há sacos do lixo com asas e sem asas.
Há sacos do lixo com perfume
e outros feitos de fécula
de batata (rompem-se num instante).
Há sacos de cozinha e outros sacos
para um contentor comunitário.
Há sacos de design que parecem aquários
mas estes também são apenas lixo.


(tradução minha - original de Basura, Editorial Delirio, 2011)
EDUARDO GUERRA CARNEIRO



IV

Há nomes de luxo onde o lixo
arde — bouças chamejantes.
Medo é a palavra exacta nas travessas
quando bandos circulam protegidos
pela finança alta e licenciada.
Se ele diz que há cavalos e cães
e fala dos doutores, esquecem
que no fundo era o mercado.
O país ergue-se em peões e os baldios
em chamas. Volta ao restolhar do milho
e camponeses dizem da lavoura,
da fome e da calúnia. Basta
olhar os murais onde esse luxo
se transformou no lixo capital.

A canalha junta-se nos pátios
no lusco-fusco de alguns entardeceres.
Galinhas debicam, entre caliça e cimento,
nos torrões onde pode estar semente ou grão.
O bolor cresce, com a humidade, em caixotões
encostados, a esmo, pelos cantos. A canalha
canta nos lugares — nódoas de vinho
e sangue misturados. O ódio ressuma
das frinchas dos tabiques. Na lama
desses pátios surgem flores carnívoras,
alimentadas a grogue e lavadura.
Crioula é a voz, a desmaiar no violão
e o azul ultramarino invade a cantina.
A hora do lobo ainda junta essa canalha.

Não penses que a canalha é lixo.
Nunca o foi. Na secura das terras,
fouce a fouce, ergue as colheitas
dos teus alimentos. Não julgues a canalha
o bode expiatório destes dramas. Lumpen
é quase luz noutra reforma dita
dura. Ouve as sirenes da polícia
e as ambulâncias solenes da morte.
Entre os espelhos quebrados dessas lojas
estão os focos do incêndio dos costumes.
Alarma-te: metrópoles em pânico
estão a arder. Não penses que o lixo
é só ao lado. Eis que ele se aproxima,
raia a raia.


(de Lixo, &etc, 1993)

13.10.13

JOSÉ RICARDO NUNES


NÓS, AS CRIANÇAS

Trocamos as cores,
desconhecemos onde acaba a mão direita
e recomeça a esquerda.
Inventamos novas palavras sem saber
que desde sempre havia mundo para elas.
Ou roubamos às sílabas.
Mas somos ainda menos do que crianças,
muito menos do que aquelas crianças
que levam tudo à boca.


(de Novas Razões, Gótica, 2002)