GEORGES BATAILLE
É o estado de transgressão que comanda o desejo, a exigência de um mundo mais profundo, mais rico e prodigioso, numa palavra a exigência de um mundo sagrado. A transgressão traduz-se sempre com formas prodigiosas como as formas da poesia e da música, da dança, da tragédia ou da pintura. As formas da arte não têm outra origem além da festa de todos os tempos; e a festa, que é religiosa, liga-se à ostentação de todos os recursos da arte. Não podemos imaginar uma arte independente do movimento que gera a festa. O recreio é, num ponto, a transgressão da lei do trabalho. A arte, o recreio e a transgressão só têm o seu encontro ligados num movimento único de negação dos princípios que presidem à regularidade do trabalho. Foi na aparência a maior preocupação das origens — como é ainda nas sociedades arcaicas — conciliar o trabalho e o recreio, o interdito e a transgressão, o tempo profano e os desvarios da festa numa espécie de equilíbrio leve onde os contrários não param de se compor, onde o próprio recreio ganha a aparência do trabalho e onde a transgressão contribui para a afirmação do interdito. Só avançamos com uma espécie de segurança: de que a transgressão, num forte sentido, só existe a partir do momento em que a própria arte se manifesta, e o seu nascimento na Idade da Rena coincide pouco mais ou menos com um tumulto de recreio e festa que estas figuras anunciam no fundo das cavernas onde a vida resplandece, onde ele está sempre a ser ultrapassado e se consuma no jogo da morte e do nascimento.
(excerto de O Nascimento da Arte, tradução de Aníbal Fernandes, Sistema Solar, 2015)