12.7.08

GIOVANNI BELLINI

Sacra Conversazione, 1505
óleo sobre madeira
500x235 cm
Veneza, San Zaccaria


MANUEL SIMÕES


SACRA CONVERSAZIONE
(Giovanni Bellini)

A luz anuncia a cor
de ouro e púrpura, a incrível
simetria das figuras.
Estão assim só imóveis
ao olhar de êxtase, breve,
da aparência; o movimento,
esse, desenha-se no secreto
diálogo, no canto intuível
e na leitura: palavra e música
de uma textura quem sabe se
de coesão traduzível
no aparente enigma da pintura.

(de Micromundos, edições Colibri, 2005)

11.7.08

VASKO POPA

Ao ladrão de rosas


Um faz de roseira
Alguns de filhas do vento
Outros de ladrões de rosas

Os ladrões de rosas aproximam-se da roseira
Um deles apodera-se de uma rosa
E no coração a esconde.

Aparecem as filhas do vento
Vêem a beleza violada
E põem-se a perseguir os ladrões

A cada um deles abrem o peito
Nuns encontram um coração
Noutros palavra de honra que não

Elas começam a abrir-lhes o peito
Até lhes descobrirem o coração
E nesse coração a rosa roubada


Às escondidas

Um esconde-se do outro
Sob a língua dele se escondeu
Busca o outro debaixo da terra

Ele escondeu-se na fronte do outro
O outro procura-o no céu

Escondeu-se no próprio esquecimento
O outro vai procurá-lo nas ervas

Ele procura-o, procura-o em vão
Procura-o sabe-se lá onde
À força de procurar ele próprio se perde


Ao jogo do agarra

Uns arrancam aos outros
O braço o pé seja o que for

Agarram aquilo entre os dentes
Fogem o mais depressa possível
E enterram-no em qualquer parte
Os outros dispersam-se pelos quatro cantos
Buscam cheiram buscam cheiram
Revolvem a terra toda

Se por sorte descobrem os braços
Ou antes um pé ou seja o que for
São eles então, que têm de morder

O jogo prossegue com animação

Enquanto houver braços
Enquanto houver pés
Enquanto houver seja o que for


Depois do jogo

Por fim as mãos agarram o ventre
Para que não rebente a rir
Mas o ventre já lá não está

Uma das mãos mal pode levantar-se
Para enxugar o suor da fronte
A fronte já lá não está

A outra mão agarra o coração
Para evitar que o coração salte do peito
O coração já lá não está

As duas mãos tornam a cair
Caem ociosas sobre o colo
Mas já não há colo

Sobre uma das palmas está chover
Sobre a outra palma rebentam ervas
Não me perguntem mais nada


(traduções de António Ramos Rosa, in Voz Consonante: traduções de poesia, edições Quasi, 2006 – O Barco Ébrio)


[ao editar este post, ocorreu-me, sem razão específica, que este poemas seriam particularmente do agrado da minha Amiga Ana Salomé]

10.7.08

EMILY DICKINSON

A Rotina ser Estímulo?
Lembrai-vos de como cessa –
Ser-se capaz de Acabar
É uma Específica Graça –
Do Retrospecto a Flecha
O poder de recompor
Partido com o Tormento
Devém, ah, mais formoso


c. 1871

(tradução de Jorge de Sena, in 80 Poemas de Emily Dickinson, Edições 70, 1979)

9.7.08

VITORINO NEMÉSIO

NOMEIO O MUNDO

Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente
Em cada pausa e pulsação, um verso.

14.9.59

(de O Verbo e a Morte, 1959)

8.7.08

JOSÉ JORGE LETRIA

O pior ainda são os dias em que toda
a escrita é despropositada e incómoda.
A mão que ousa o verso é lenta e trémula,
prolongando o tédio sobre a página.
Tudo é branco em redor como uma duna
ou uma doença subterrânea. Aquele que escreve
está inclinado sobre a água ou sobre a
noite e nenhuma fala lhe ascende à boca.
Tece-se o não dizer com ínfimas agulhas
e se houvesse uma arca para guardá-lo
seria larga e brilhante como uma casa.
Havia de morar nela a solidão dos grandes
dias cinzentos e dentro dela
uma pequena pedra polida e esguia.

(de Os Achados da Noite, Concellería de Cultura do Concello de Ourense, 1992)

7.7.08

[outros melros LIII]

LEONARDO DA VINCI

A ALFENA E O MELRO


A alfena, sendo picada nos seus finos ramos, cobertos de novos frutos, pelos pungentes bicos dos importunos melros, lamentava-se com piedosos queixumes ao melro, pedindo-lhe, já que lhe tirava os seus frutos dilectos, que ao menos não a privasse das folhas, que a defendiam dos escaldantes raios de sol, e que com as suas aceradas unhas não lhe arrancasse a casca despindo-a da sua tenra pele. Ao que o melro, com rudeza respondeu: - Ora cala-te, bravio galho! Não sabes que a natureza te fez dar estes frutos para meu alimento? Não vês que estás no mundo para me servires desta comida? Não sabes, bruto campónio, que no próximo inverno vais ser alimento do fogo? – Ouvidas pacientemente pela árvore estas palavras, não sem lágrimas, daí a pouco tempo foi o melro apanhado pela rede, e servindo ramos para fazer de gaiola para encarcerar o melro, calhou, entre outros ramos, à delicada alfena dar as grades para a gaiola; a árvore, vendo-se ser causa de tirar a liberdade ao melro, alegrando-se, dirigiu-lhe estas palavras: - Ó melro, eu aqui estou, ainda não consumada, como tu dizias, pelo fogo; vejo-te na prisão antes que me vejas queimada!

(de Bestiário, Fábulas e outros escritos, tradução de José Colaço Barreiros, 1995)