26.12.13

FERNANDO ECHEVARRÍA


1

ENTRARAM PARA ONDE A DESMESURA,
abstraindo a importância de lugares,
os absorveu na drástica coluna
de um fogo repentino a desastrar-se.
E a dirigi-los pela noite súbita
para um limbo de incêndio inominável
em que só ecos de negrura e música
ajustariam cunhos singulares.
Não haveria transparência avulsa.
Apenas a de esquecimento em fase de
sobreviver à bruma
em cujo esquecimento se afastasse.
E, com ele, se ausentaria a chusma
de gente, de animais, coisas e árvores.
Iriam para mais zona nenhuma.
Nela, invisível, erguer-se-ia a idade
de pulsos convincentes e de lúcidas
pungências a abismar-se
pela abstracção de puridade alguma.
Para ausência infinita de lugares.

2

MAS ERA AUSÊNCIA OPERATIVA. DE ONDE
surdiam pulsos contundindo, quando
a compenetração trazia o longe
à transparência intemporal de páramo,
regido só por dimensões tão doces
que retinham apenas sobressaltos.
O sopro aí sobressaía imóvel.
Abria a sua doação de fausto
a que aderia o homem
depois de ao tempo se eximir e ao espaço.
E depois de sofrer mais horizontes
cada vez mais extensos - ou mais altos? -
de onde ausentar-se convocava. E a noite,
convocada também, sumia o rasto
de quanto se sumira, abrindo, a monte,
antevisão possível, recuando.

3

E O RECUO CONVOCAVA AINDA,
retendo, embora, quantos convocara
nessa extensão de ausência operativa,
aqui tão perto de a uma tal distância.
Apontavam aí marcos de via
e de pungência jubilosa. Farta
expunham a visão funda de míngua
que doação igual proporcionava.
Abstrusamente e por um triz ubíqua
ia chegando a pulsação. A mágoa
alargava-se à conta da alegria,
recolhendo as presenças alheadas
daqueles, convocados, que seguiam
mantendo-nos afins, à borda de água.

4

ENQUANTO SE AUSENTAVAM NOS ABRIAM
a feliz novidade de um espaço
de onde somente se alargava a vista.
E em que tempo algum era contado.
Essa ausência, contudo, nos retinha
o impulso veemente, o luto em rapto
daquele, jubiloso, que partira
deixando-nos, no entanto,
o pulso contundente. A sua ida
pungindo o ponto críptico do campo
que nos reduz a uma atenção tão limpa
que nela avulta o espigão do trânsito.
Como avulta também a campa lisa,
a compenetração e os carvalhos
a aparecer do fundo dessa vida
que traz a lume a nitidez sem espaço.



(de In Terra Viventium, Afrontamento, 2011)

24.12.13



RAUL DE CARVALHO


O MEU MELHOR POEMA…

Claro que era perfeitamente natural
que eu escrevesse agora
o meu melhor poema.

Que interrompesse
a leitura interrompida
por acção e graça
de qualquer fortuita
eventualidade:
um cachimbo vazio
uma casca de noz
a notícia de que
finalmente chegou
o amigo do estrangeiro
a falta absoluta de sono
ou por exemplo
um assobio.

Vibrante claro matinal musical festivo categórico
absolutamente vivo
absolutamente
um assobio.

Que veio
que entrou sem eu saber como
(nunca se sabe como)
pelas pernas destapadas
dos meus ouvidos
pelas ancas
coléricas
em que se apoiam
os meus ouvidos
pela parte de trás
dos meus ouvidos
(bolas! as coisas são o que são
e quem mente não diz
a verdade).
Um assobio que passeia.
(Lembro-me de um homem que passeia
pela rua
com um galgo
pela rua à hora
em que as pessoas despem
suas camisas de dormir
e pedem a Deus
muitas coisas.
O homem que passeia pela rua com um galgo
também pede a Deus muitas coisas.)

Pelos pêlos encaracolados
dos meus ouvidos
pelos orifícios por onde se cruzam
se estendem se apalpam se complicam
ouvidos e pernas pernas e ouvidos
ouvidos com pernas pernas com ouvidos.
(Por que diabo a esta hora
há alguém que se lembra
de assobiar,
a esta tão absurda hora,
a esta hora tão cheia
de cravos e ruas e conversas e noite
a esta hora da noite sem movimento
hora de peões abrigados à chuva
contando uns aos outros
pequenas histórias
pequenas e maravilhosas histórias
para passar o tempo
a esta hora em que tudo
é mentira é mentira!
Quem será que se lembra?)

Nos tempos de el-rei
coração-de-leão
morreu um menino
de coração puro.
Quem será que se lembra?
Que foi
que aconteceu?
Por que razão
à vizinha do lado
lhe deu uma síncope
ao operário lhe apareceu
de repente trabalho
Jesus-Cristo apareceu
e não foi um milagre
há santos e santas na corte do céu
e há gosto por todas as coisas da vida
por que razão o suicida
gostou da água (— Quentinha!, disse ele, — Quentinha!)
por que razão o amor
é a coisa mais natural
que pode haver?
por que razão
alguém se pôs
a assobiar???

E eu, que estava tão sossegado
tão dentro de mim
tão bem instalado aqui dentro
tão longe dos meus amigos
tão cheio de boas e honestas obrigações
tão humilde para o olhar do próximo
tão disposto a perdoar a dar a concordar a perder
a tudo o que vocês quiserem
tão atrapalhado por não saber onde pôr as mãos
tão arrependido de me levantar tarde
tão resolvido definitivamente
a acabar: acabou-se: Acabar
com essa repugnante
história dos pontapés.
Eu que neste momento
da lembrança
só tinha a lembrança
dum ponto qualquer
vazio e total
diferente e igual
conforme e fatal
onde não fazer
mal a ninguém
que me fez mal.
Eu que estava mesmo quase convencido
de que a poesia para ser boa
não deve perturbar a sagrada
reunião da família.
Eu, que não sou forte em metáforas,
e quero e adoro e odeio
a realidade.

Por que diabo aquele tipo
se lembrou de mim, a esta
hora?

Sempre, sempre esta suspeita
de música...


(in Pequena Antologia do Natal, edições Mic, 1977)

23.12.13

[no dia em que passam 125 anos sobre o corte da orelha de VAN GOGH] 

FERNANDO GUIMARÃES


VAN GOGH: «AUTO-RETRATO COM A ORELHA LIGADA»

O corte numa orelha. Esta rasura
que pode ser da morte, tão vizinha
de todo o corpo, enquanto principiam
as colheitas que vinham revelar

a cicatriz mais perto das searas,
o ruído que passa pela gaze
porosa, as ligaduras que no rosto
o fecham para sempre, mesmo quando

não existem sequer. Qualquer imagem
é sempre igual porque nela se via
aquilo que em segredo procuramos

até que se encontrasse o mesmo sítio
onde fique contida a própria dor
só para ser arada nestes campos.



(de Os Caminhos Habitados, Afrontamento, 2013)