5.10.13

VÍTOR NOGUEIRA


CLICHÉ

Não é que seja o momento para trocar
cartões-de-visita. José Maria da Silva,
fotógrafo profissional com estúdio em Lisboa,
tem por hábito mudar-se para a vila da Ericeira
na época balnear. Ainda está por aqui

no dia 5 de Outubro. Um notável testemunho
(gelatina e sais de prata, memória pronta e fiel)
que, com sorte, há-de chegar à Ilustração
Portuguesa. Além disso, uma kodak não tropeça
em estrangeirismos, ornatos de saber clássico,
no jeito francês da frase, nos defeitos da sintaxe.

José Maria da Silva, fotógrafo profissional,
passa o resto da tarde com um nervoso
miudinho. Até revelar as chapas. Olhem bem
para estas caras, estas formas do passado. Nada mais
para seres humanos. Pode dizer-se que sim.



HORIZONTE

O iate real segue o fio do horizonte,
essa linha escorregadia ao dispor dos que se atrevem.
E de novo a Ericeira fica à espera do crepúsculo.
Antigos embarcadiços podem agora sentar-se
nos bancos de pedra que rodeiam a capela, espraiam
a vista saudosa pela vastidão do mar.

O mar, sempre o mar. Acontece que somos bons
nisso: lágrimas e suspiros, coisas que brilham
no escuro e dependem dos ventos dominantes,
indícios levados pelas águas. Senhoras e senhores
fantasmas, o museu está oficialmente fechado.
Afastem-se do meu jantar.


(de Quem diremos nós que viva?, Edições Averno, 2010)

4.10.13

ANTÓNIO GANCHO


MÚSICA

A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada fazia prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erege a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.


(de O Ar da Manhã, Assírio & Alvim, 1995)

3.10.13

CARLOS BESSA


SAÍDAS PROFISSIONAIS

De repente, sem pose nem porquê,
desata a escrever como um vidente,
como um Rimbaud. Ele, o revoltado,
que publicará não tarda três ou quatro
poemas numa dessas revistas que
ninguém lê e que o tempo tornará
raridade, se contiver nomes que
sonem, que façam a alegria de
alfarrábios e coleccionistas.
Mas por ora é apenas silêncio,
sufoco. Ninguém lhe diz nada, nem mesmo
os amigos mais chegados. E como
ainda não sabe que a literatura
é sempre essa alquimia de esperar,
vai-se esquecendo. O ritmo é outro.
Não o dos versos, mas o da carreira.
Tornar-se-á um gestor de primeira e
acabará os dias rico e feliz,
a dizer aos netos que a poesia é
uma mentira e que ele teve sorte,
abriu os olhos a tempo.



ALÍVIO RÁPIDO

A idade da poesia cedo nos abandona.
A prosa, pelo contrário, vai-se tornando imperativa,
obriga-nos às flexões da fala e encobre,
com elas, possibilidade tão bela, tão nobre.
Como se falar fora maneira de transformar
o menos em muito, e assim em paz com os sonhos
e com menos ânsias nos dedicássemos
à arquitectura das grandes causas,
a família, o emprego, as heranças.
Morre-se tanto à espera da sorte grande.
Por isso, quando dizes amanhã todo eu me esforço
por não cair no mau teatro dos cúmulos,
o do forno, o da panela ao lume. Mas, confesso,
as palavras enchem-se de crude e empoladas
e vulgares, nesse tom tão rente ao risível,
não dizem, planam, afectadas, vazias.
Só depois me lembro que o amanhã é próprio
da meteorologia e que esperar
foi sempre um propósito digno. Mais não seja
porque o coração precisa de uma ginástica
rude, que o endureça e torne elegante.


(de Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007)

2.10.13

WALLACE STEVENS


XIX

Quem me dera que pudesse reduzir o monstro a
Mim mesmo, e pudesse então ser eu mesmo

Face ao monstro, ser mais do que parte
Dele, mais do que o monstruoso tocador de

Um dos seus monstruosos alaúdes, não ser
Só, mas reduzir o monstro e ser,

Duas coisas, as duas em simultâneo numa,
E tocar do monstro e de mim mesmo,

Ou melhor, não de mim mesmo de modo algum,
Mas de algo como a sua inteligência,

Sendo o leão no alaúde
Perante o leão encerrado em pedra.


(de O Homem da Viola Azul, tradução de Maria Adelaide Ramos, Relógio d'Água, 2005 / The Man with the Blue Guitar, 1937)
ROBERT BRINGHURST


II

O pássaro é da cor do bronze duro
à luz solar, porém agora é meia-noite;
o pássaro da cor do bronze duro
à luz solar voando agora
sob a Lua.

Há um ponto em que
os meridianos se encontram num nó
de nada e uma região
onde os meridianos se desfiam e entrelaçam,
mas não como linhas ancoradas; desfiam-se
quais condutoras e arrastadas bordas
de asas, correndo do vazio
para o músculo e do músculo de novo se esticando para trás.

Escuta: os sons são os sons dos meridianos
chilreando, meridianos arrastados para produzirem
a ilusão de plectro, afinando cravelhas e um arcaboiço,
ou porventura a fim de produzirem a audição
de Elias: a pele
do silêncio a salgar,
sendo curtida,
endurecendo para o interior do vento.

Ou então os sons são os sons do ar a abrir-se
sobre o bico e a fechar-se sobre as asas,
abrindo-se por sobre o inamovível carregamento amarrado
entre a espinha e a garra,
amarrado entre o osso da asa e o cérebro.



(de A Beleza das Armas, tradução de Júlio Henriques, Antígona, 1994)

1.10.13

TIAGO PATRÍCIO


OS FALCÕES PEREGRINOS DO ANTIGO TERRITÓRIO DE NOVA YORK

O chefe índio Dois Pássaros baloiçava as tardes
com a mescalina oferecida pelos Falcões Peregrinos
siameses pela cauda como duas visões do mundo

Um era verde e o outro azul como espinhos
O azul cuspia fogo numa planície da altura das monções
engordava como um dragão a sufocar a terra
e enrolava restos de gente pelo vale estéril

O verde corria pelo golfo à hora de maior calor
deslocava os rios como mulheres nubladas
e quando descia à pátria deixava um hálito fundo
com o lamento de um retornado

O chefe índio perguntou
até onde durava a violência
e quando poderiam voltar àquela terra
E eles disseram coisas indistintas e
falaram do ar pesado durante muito tempo
com as asas um do outro até acabar a mescalina
e começar outra forma de aturdimento



(de O Livro das Aves, Quasi edições, 2009)

30.9.13

MIGUEL-MANSO


escreve-se ao contrário dos dias
contra o friso comovedor das gerações
ignorado das cabriolas doutrinais

não se escreve e há também nisso
um aluimento qualquer

corpo afim precipitado para o penhasco
sombrio do mesmo esquecer


(de Aqui podia viver gente, Primeiro Passo, 2012)