2.3.12


[outros melros LXIII] 

GEORG TRAKL


CANTO DUM MELRO PRESO
A Ludwig von Ficker

Hálito escuro na verde ramaria.
Florinhas azuis pairam em volta da face
Do solitário, fazendo morrer o passo
Dourado sob a oliveira.
Levanta voo a noite em asa ébria.
Tão baixo sangra humildade,
Orvalho, que manso goteja do espinheiro em flor.
Compaixão de braços radiosos
Abraça um coração que quebra.


(in Traduções II – Obras Completas de Paulo Quintela, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998 – original de Sebastião em Sonho, 1915)

1.3.12


TERESA ZILHÃO


27

Se queres um tesouro, procura um peixe
no núcleo da maré cheia, onde na seiva
subaquática milhares habitam.
Num simétrico reencontro, nossas células
diferem mas partilham em comunhão todo
o conhecimento. Difícil será isolá-lo e
galopar até à sua guelra que cantará:
«Nada está parado pois tudo se move e tudo
vibra, olha o golfinho que tudo partilha.
Na sua ave de saber, ajuda em silêncio
e, no não manifesto – brilha... brilha.»


(de Novo Palco, Difel, 1998)

29.2.12


MÁRIO BOTAS

 (a partir de um quadro)


Romance de D. Sebastião de Portugal e Gabriel de Espinosa Pasteleiro em Madrigal

em memória de Mário Botas

Romance de cordel impresso anonimamente em 4 de Agosto de 1983 e encontrado por Almeida Faria

I

Em Portugal houve um rei
de nome Sebastião
era um dos donos do mundo
ele e Felipe II
seu tio e seu sucessor
como contarei depois

Este D. Sebastião
nasceu póstumo do pai
aos três anos era rei
aos onze anos sofria
de qualquer venéreo mal
que ficou por explicar

Não queria D. Felipe
dar-lhe em casamento a filha
enquanto se não curasse
o que nunca sucedeu
e assim este rei cresceu
doente e desesperado

Tomou horror às mulheres
cujos olhares evitava
educado pelos padres
achava-as causa do mal
que sofria em sua carne
e o tornava incapaz

Chegado aos vinte e quatro anos
juntou todos os navios
que conseguiu reunir
dentro e fora do país
e mais três mil mercenários
e mais soldados do Papa

E em 25 de Junho
zarpou para o norte de África
em derradeira cruzada
até que em 4 de Agosto
em pleno deserto ardente
sete a oito mil soldados

Sendo uns dois mil a cavalo
de armaduras a escaldar
sob o incêndio do sol
e armas que a grande armada
trouxera inúteis a bordo
pesadas para o areal

Morreram às mãos dos árabes
que ágeis em volta giravam
e com leves cavaleiros
depressa os desbarataram
trucidaram saquearam
em poucas horas fatais

Assim acabou a vida
do jovem rei desgraçado
do jovem rei suicida
em vingança contra a sorte
que o fez doente e demente
em vez de são e sensato

Assim morreu um império
que ao fim do mundo chegava
assim começou o quinto
império que nunca será
assim chegámos ao fim
do rei muito desejado

Assim em 4 de Agosto
de 1578
morreu louco e temerário
o senhor de Portugal
morreu ele e a fina flôr
da sua casa real

II

Quase vinte anos passados
apareceu em Madrigal
no deserto de Castela
um pasteleiro parecido
com o rei desaparecido
e em Portugal desejado

Dona Ana de Áustria sobrinha
do rei Felipe II
rei de Espanha e Portugal
recebeu o pasteleiro
na cela do seu convento
e deu-lhe jóias reais

Estavam noivos ou casados
pelo monge Miguel dos Santos
quando Felipe II
prendeu os três e matou
o monge e o pasteleiro
que se dizia ser rei

A pobre Dona Ana de Áustria
foi condenada à clausura
mais dura e mais solitária
por receber no seu quarto
esse D. Sebastião
fosse verdadeiro ou falso

Era isto em Madrigal
longe do mundo e do mar
longe de um país e povo
ainda capaz de durar
outros quatrocentos anos
e durante quantos mais?

Após o grande desastre
sem rei nem roque a reboque
de outros desertos maiores
para lá de longos mares
quem aguarda um rei de fábula
vencido e contudo amado?

Muitos à esquerda e direita
mesmo que não seja rei
mesmo que não traga a lei
mesmo que seja Ninguém
vaga imagem vã miragem
de outro verão em outra idade

Que seja e isso já basta
algo a que a gente se agarre
nesta aridez irreal
que enlouquece e dá coragem
aos cansados de esperar
por promessas de Eldorado

Que a desforra da derrota
venha logo e original
mas não dê muito trabalho
para a gente não cansar
que a vida é curta e confusa
e a morte dura demais

Que o império não exista
senão no sonho é igual
que se prefira sonhar
em vez de ver e olhar
que se force o impossível
é igual tudo é igual

Tudo isto de resto é história
e não sei se tem moral
de um rei louco e de seu duplo
e do duplamente louco
povo deste Portugal.


(gravura e texto in Prelo, 1 – Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Outubro/Dezembro de 1983)

28.2.12


PAUL ÉLUARD


«A POESIA DEVE TER COMO FIM A VERDADE PRÁTICA»

Aos meus amigos exigentes

Se vos digo que o sol na floresta
É como um ventre que se entrega num leito
Acreditais e aprovais os meus desejos

Se vos digo que o cristal de um dia de chuva
Continua a soar na languidez do amor
Acreditais e alongais o tempo-amor

Se vos digo que nas ramagens do meu leito
Faz ninho um pássaro que jamais diz sim
Acreditais compartilhais minha inquietação

Se vos digo que no golfo de uma fonte
Gira a chave de um rio entreaberto o verde
Acreditais-me e mais compreendeis-me.

Mas quando canto sem rodeios a minha rua
E meu país como rua sem fim
Já não me acreditais e partis p'ra o deserto

Pois caminhais sem alvo sem saberdes que os homens
Precisam estar unidos e ter esperança e lutar
P'ra explicar o mundo e para o transformar

Com uma só batida do coração vos levo
Estou fatigado vivi e vivo ainda
Mas espanto-me de falar p'ra vosso agrado
Quando vos queria libertar p'ra vos unir
Não só à alga e ao junco da aurora
Mas aos nossos irmãos que constroem a luz.


(in Poemas Políticos, tradução de Carlos Grifo, editorial Presença, 1973)