25.7.09

[um galego em dia de Santiago]

CELSO EMILIO FERREIRO

DEITADO FRENTE AO MAR...


Lingoa proletária do meu pobo
eu fáloa porque si, porque me gosta,
porque me peta e quero e dame a ganha
porque me sai de dentro, ala do fondo
dunha tristura aceda que me abrangue
ao ver tanto patufos desleigados,
pequenos mequetrefes sin raíces
que ao pôr a garabata xá non saben
afirmarse no amor dos devanceiros,
falar a fala nai,
a fala dos abós que temos mortos,
e ser, co rostro erguido,
marinheiros, labregos do língoaxe,
remo i arado, proa e relha sempre.

Eu fáloa porque si, porque me gosta
e quero estar cos meus, coa xente minha,
perto dos homes bós que sofren longo
unha historia contada en outra lingoa.

Non falo pra os soberbios,
non falo pra os ruís e poderosos,
non falo pra os finchados,
non falo pra os estúpidos,
non falo pra os valeiros,
que falo pra os que agoantan rexamente
mentiras e inxusticias de cotio;
pra os que súan e choran
un pranto cotidián de volvoretas,
de lume e vento sobre os olhos núos.
Eu non podo arredar as minhas verbas
de tódolos que sofren neste mundo.
E ti vives no mundo, terra minha,
berce da minha estirpe,
Galícia, doce mágoa das Espanhas,
deitada rente ao mar, ise caminho...


Glossário:
Petar – bater com a aldraba (da porta), apetecer.
Patufo – néscio.
Mequetrefe – homem intrometido, de pouco proveito.
Devanceiro – antepassado.
Labrego – camponês.
Finchado – vaidoso.
Valeiro – vazio, oco.
Volvoreta – borboleta.


(in Autoescolha Poética (1954-1971), Razão Actual, 1972 - original de Longa Noite de Pedra, 1962)

23.7.09


O texto de apresentação do livro Chave de ignição (de onde retirei o poema do post anterior), do meu Amigo Ruy Ventura, está acessível.
O Autor é o Poeta João Candeias.
RUY VENTURA

a carne queima a sombra e a memória.
deixa sobre os olhos um traço negro.

a água não consegue lavar a cinza deste corpo,
sem membros, o tronco enegrece sobre a terra,
deixa nas árvores o último grito –
lançado na hora do abate.

que corpo resguardava esta carne?
trago às palavras um nome, um gesto, uma fronteira.
sem vida, o meu olhar descobre nas vísceras
vestígios de saudade
que a tarde não conseguiu matar.

sangue apenas?

coágulos dissolvem o centro da cidade.
o metal atravessa as estrelas,
reconhece na carne os odores da última viagem.

que noite vivo?

a memória enegrece, mas persiste,
escavo o esquecimento.

a fotografia permanece
– calcinando o fogo.

(de Chave de ignição, editora Labirinto, 2009)

22.7.09




ADRIAN HENRI


ESTA NOITE AO MEIO-DIA (*)

(para Charles Mingus e os Clayton Squares)

Esta noite ao meio-dia
Os supermercados anunciarão DESCONTO em tudo
Esta noite ao meio-dia
As crianças de famílias felizes serão mandadas para um asilo
Os elefantes contarão uns aos outros anedotas humanas
A América vai declarar paz à Rússia
Generais da Grande Guerra venderão capacetes nas ruas no 11 de Novembro
Os primeiros narcisos do Outono hão-de aparecer
Quando as folhas caírem para as árvores

Esta noite ao meio-dia
Os pombos vão caçar gatos pelos quintais
Hitler dir-nos-á que lutemos nas costas e nas praias
Um túnel será aberto sob Liverpul
Serão avistados porcos voando em formação sobre Woolton
e Nelson não só receberá o olho de volta mas também o braço
Os Americanos brancos exigirão igualdade de direitos
em frente da Casa Preta
e o Monstro acaba de criar o Dr. Frankenstein

Moças em bikini estão a banhar-se na lua
Canções populares estão sendo cantadas por autêntico povo
As galerias de arte são interditas a maiores de 21 anos
Os poetas vêem os seus poemas no Top 20.
Os políticos são eleitos para manicómios
Há empregos para todos e ninguém os quer
Em ruelas escusas amantes adolescentes beijam-se
à luz do dia
Em campas esquecidas em toda a parte os mortos calmamente
enterrarão os vivos
e
Tu dir-me-ás que me amas
Esta noite ao meio-dia


* O título deste poema é tirado dum L. P. de Charles Mingus ‘Tonight at Noon’, Atlanta 1416. (Nota do Autor).

(tradução de Manuel de Seabra, in Antologia da Poesia Britânica Contemporânea, livros Horizonte, 1982 – original de Tonight at Noon, 1969; o tema no vídeo é do álbum referido em nota)

21.7.09

ELISABETH BISHOP

MAÇARICO


Aceita como tal qualquer bramido a seu lado
e que o mundo, de quando em quando, seja obrigado a agitar-se.
Corre, corre para sul, meticuloso, desastrado,
num estado de pânico controlado, um estudioso de Blake.

A praia rechina como gordura. À sua esquerda, um lençol
de água descontínua que vai e vem
acetinada sobre as suas patas escuras e frágeis.
Corre, corre em linha recta por ela, observando os dedos.

– Ou, melhor, observando os espaços de areia entre eles,
onde (nem que seja um diminuto pormenor) o Atlântico se escoa
rápido, recuando e afundando-se, enquanto corre
a olhar os grãos de areia que são arrastados.

O mundo é uma névoa. E a seguir o mundo fica
diminuto e vasto e límpido. A maré
ou está mais alta ou mais baixa: era incapaz, de nos dizer.
O seu bico encontra uma direcção; está preocupado,

procurando alguma coisa, alguma coisa, alguma coisa.
Pobre pássaro, está obcecado!
Os milhões de grãos são negros, brancos, bronzeados e cinzentos,
misturados com grãos de quartzo, rosa e ametista.

(tradução de Maria de Lourdes Guimarães, in Poemas de Marianne Moore e Elisabeth Bishop, editora Campo das Letras, 1999 – colecção o aprendiz de feiticeiro)

20.7.09

CARLOS DE OLIVEIRA

REBANHO


Poeira que o granito
desprende na sua
respiração difícil: prata
sem consistência, faz
pensar num resíduo de estrelas
acumulado pela noite; cor
e peso na leveza da lã,
cai sobre os animais? ou paira
etérea, estranha
à essência da terra?

A segunda poeira nasce
quando se ouve
o toque trémulo dos cascos contra
o chão; opõe-se
à que poisou nocturnamente
e a pedra agora exala;
resguarda o gado, isola-o,
cada vez mais densa,
dessa ameaça do ar.

Quanto ao pastor,
como pode um detrito
de astros lembrar-se dele?
embora a natureza
de ambos pareça confluir:
mas apenas na intuição
sublunar; tão predisposta
a conceber um só
deserto inicial.

(de Pastoral, 1977 – in Trabalho Poético, 3ª edição: livraria Sá da Costa, 1998)