9.7.18


MARÍA ZAMBRANO


A origem da filosofia enraíza-se nessa luta que se trava ainda dentro do sagrado e face a ele. A filosofia nasceu, foi o produto de uma atitude original ocorrida numa rara conjuntura entre o homem e o sagrado. A formação dos deuses, a sua revelação pela poesia, foi indispensável, porque foi ela, a poesia, que primeiro enfrentou esse mundo oculto do sagrado. E assim, em parte, a insuficiência dos deuses, resultante da acção poética, deu lugar à atitude filosófica. Mas, por outro lado, vemos que na atitude que a actividade poética supõe, se encontra já o antecedente necessário que dará origem à filosofia. Como sempre que de uma actividade humana nasce outra diferente, e até contrária, não é só da sua limitação, do que não chegou a alcançar, que ela nasce, mas também daquilo que chegou a ser; do seu aspecto negativo unido ao positivo.
E assim, a filosofia inicia-se do modo mais antipoético, por uma pergunta. A poesia, essa, começa sempre por uma resposta a uma pergunta não formulada. Interrogar-se é próprio do homem, o sinal de que chegou a um momento em que vai separar-se do que o rodeia, qualquer coisa como a ruptura de um amor, como o nascimento.
Toda a pergunta indica a perda de uma intimidade ou a extinção de uma adoração. Nos dois processos actua como fundo último, determinante, o cansaço, talvez a necessidade de um alguém que quer tornar-se independente, viver por sua conta, libertar-se daquilo mesmo que foi o lugar da sua alma. E mais ainda do que a ruptura de um amor, é algo como o nascimento; o processo em que um ser se alimentou e respirou dentro de outro, intrincado com ele, se solta à procura do seu próprio espaço vital. Assim, a pergunta filosófica que Tales formulou outrora [“O que são as coisas?”] significa o desprendimento da alma humana, já não desses deuses criados pela poesia, mas da instância sagrada, do mundo obscuro de onde eles próprios saíram. Pois as imagens poéticas dos deuses eram, por sua vez, uma solução encontrada para essa necessidade de desprendimento, da saída para um espaço livre, para uma relativa solidão.


(excerto de «A Disputa entre a Filosofia e a Poesia sobre os Deuses», in O Homem e o Divino, tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Relógio d’Água, 1995)