MARÍA ZAMBRANO
A origem da filosofia enraíza-se
nessa luta que se trava ainda dentro do sagrado e face a ele. A filosofia
nasceu, foi o produto de uma atitude original ocorrida numa rara conjuntura
entre o homem e o sagrado. A formação dos deuses, a sua revelação pela poesia,
foi indispensável, porque foi ela, a poesia, que primeiro enfrentou esse mundo
oculto do sagrado. E assim, em parte, a insuficiência dos deuses, resultante da
acção poética, deu lugar à atitude filosófica. Mas, por outro lado, vemos que
na atitude que a actividade poética supõe, se encontra já o antecedente necessário
que dará origem à filosofia. Como sempre que de uma actividade humana nasce
outra diferente, e até contrária, não é só da sua limitação, do que não chegou
a alcançar, que ela nasce, mas também daquilo que chegou a ser; do seu aspecto
negativo unido ao positivo.
E assim, a filosofia
inicia-se do modo mais antipoético, por uma pergunta. A poesia, essa, começa
sempre por uma resposta a uma pergunta não formulada. Interrogar-se é próprio do
homem, o sinal de que chegou a um momento em que vai separar-se do que o
rodeia, qualquer coisa como a ruptura de um amor, como o nascimento.
Toda a pergunta indica
a perda de uma intimidade ou a extinção de uma adoração. Nos dois processos
actua como fundo último, determinante, o cansaço, talvez a necessidade de um alguém
que quer tornar-se independente, viver por sua conta, libertar-se daquilo mesmo
que foi o lugar da sua alma. E mais ainda do que a ruptura de um amor, é algo
como o nascimento; o processo em que um ser se alimentou e respirou dentro de
outro, intrincado com ele, se solta à procura do seu próprio espaço vital. Assim,
a pergunta filosófica que Tales formulou outrora [“O que são as coisas?”]
significa o desprendimento da alma humana, já não desses deuses criados pela
poesia, mas da instância sagrada, do mundo obscuro de onde eles próprios saíram.
Pois as imagens poéticas dos deuses eram, por sua vez, uma solução encontrada
para essa necessidade de desprendimento, da saída para um espaço livre, para
uma relativa solidão.
(excerto de «A Disputa
entre a Filosofia e a Poesia sobre os Deuses», in O Homem e o Divino,
tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Relógio d’Água, 1995)