SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
ARTE POÉTICA
A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas dar minha voz à veemência das coisas
E fazer do mundo exterior substância da minha mente
Como quem devora o coração do leão
Olha fita escuta
Atenta para a caçada no quarto penumbroso
(de O Búzio de Cós e outros poemas, editorial Caminho, 1997)
27.3.10
26.3.10
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
VARANDAS
É na varanda que os poemas emergem
Quando se azula o rio e brilha
O verde-escuro do cipreste – quando
Sobre as águas se recorta a branca escultura
Quasi oriental quasi marinha
Da torre aérea e branca
E a manhã toda aberta
Se torna irisada e divina
E sobre a página do caderno o poema se alinha
Noutra varanda assim num Setembro de outrora
Que em mil estátuas e roxo azul se prolongava
Amei a vida como coisa sagrada
E a juventude me foi eternidade
(de O Búzio de Cós e outros poemas, editorial Caminho, 1997)
VARANDAS
É na varanda que os poemas emergem
Quando se azula o rio e brilha
O verde-escuro do cipreste – quando
Sobre as águas se recorta a branca escultura
Quasi oriental quasi marinha
Da torre aérea e branca
E a manhã toda aberta
Se torna irisada e divina
E sobre a página do caderno o poema se alinha
Noutra varanda assim num Setembro de outrora
Que em mil estátuas e roxo azul se prolongava
Amei a vida como coisa sagrada
E a juventude me foi eternidade
(de O Búzio de Cós e outros poemas, editorial Caminho, 1997)
MIGUEL-MANSO
EM ÉVORA, UM TERRAÇO
quando o nível das águas subir
(não se sabe ainda quantos metros)
e se apagarem certos lugares: a sombra
do limoeiro da infância
a praia onde todo o Verão cabia
e terminar submerso tudo o que foi raso e sacro
então que pelo menos permaneça intacto
aquele terraço em Évora
(de Santo Subito, edição do Autor, 2010 - os carimbos de Gent)
EM ÉVORA, UM TERRAÇO
quando o nível das águas subir
(não se sabe ainda quantos metros)
e se apagarem certos lugares: a sombra
do limoeiro da infância
a praia onde todo o Verão cabia
e terminar submerso tudo o que foi raso e sacro
então que pelo menos permaneça intacto
aquele terraço em Évora
(de Santo Subito, edição do Autor, 2010 - os carimbos de Gent)
ANTÓNIO DACOSTA
VARANDA da minha infância
Cidade feliz
De teus ócios merecidos
Chegou o fim amargo
Do meu último olhar
Vejo enfim as calmas areias quentes
Os fetos das fontes que o tempo secou
O fundo poço que sou e é velho e é triste
Nada muda o destino deste parado barco
O mar dorme em paz e sossego
A terra mostra ao sol os seios preguiçosos
As mulheres espreitam arrepiadas às janelas
Do caminho sobem ao céu súbitas nuvens de poeira
Tudo é divino à luz dourada dourado
Só eu sou levado de mim e me perco
(de A Cal dos Muros, selecção e apresentação de Bernardo Pinto de Almeida, Assírio & Alvim, 1994 - peninsulares)
VARANDA da minha infância
Cidade feliz
De teus ócios merecidos
Chegou o fim amargo
Do meu último olhar
Vejo enfim as calmas areias quentes
Os fetos das fontes que o tempo secou
O fundo poço que sou e é velho e é triste
Nada muda o destino deste parado barco
O mar dorme em paz e sossego
A terra mostra ao sol os seios preguiçosos
As mulheres espreitam arrepiadas às janelas
Do caminho sobem ao céu súbitas nuvens de poeira
Tudo é divino à luz dourada dourado
Só eu sou levado de mim e me perco
(de A Cal dos Muros, selecção e apresentação de Bernardo Pinto de Almeida, Assírio & Alvim, 1994 - peninsulares)
25.3.10
LUÍS AMARO
FUGA
passar a vida,
sem mágoas, sem um lamento,
água correndo, impelida
pelo vento.
Ouvir a música do instante que passa
e recolhê-la no coração,
olhos fechados à dor e à desgraça,
os ouvidos atentos à canção
do instante que passa.
Beber a luz doirada que irradia
dos vastos horizontes,
e ver escoar-se o dia
entre pinhais e montes...
Doce melancolia.
Esquecer todas as agruras
que lá vão
e este negro mar de desventuras
em que voga ao sabor de torvas ondas
meu coração.
(de Diário Íntimo, 1975)
FUGA
a Herberto HelderNuma nuvem de esquecimento
passar a vida,
sem mágoas, sem um lamento,
água correndo, impelida
pelo vento.
Ouvir a música do instante que passa
e recolhê-la no coração,
olhos fechados à dor e à desgraça,
os ouvidos atentos à canção
do instante que passa.
Beber a luz doirada que irradia
dos vastos horizontes,
e ver escoar-se o dia
entre pinhais e montes...
Doce melancolia.
Esquecer todas as agruras
que lá vão
e este negro mar de desventuras
em que voga ao sabor de torvas ondas
meu coração.
(de Diário Íntimo, 1975)
24.3.10
EMILY DICKINSON
I never saw a Moor —
I never saw the Sea —
Yet know I how the Heather looks
And what a Billow be.
I never spoke with God
Nor visited in Heaven —
Yet certain am I of the spot
As if the Checks were given —
c. 1865 / 1890
Eu nunca vi Charnecas —
Nunca vi o mar —
Mas sei como é uma Urze,
Como serão as Vagas.
Nunca falei com Deus
Nem visitei o céu —
Mas sei tão bem o caminho
Qual se o Mapa fora meu.
c. 1865 / 1890
(in 80 Poemas de Emily Dickinson, tradução de Jorge de Sena, edições 70, 1979)
I never saw a Moor —
I never saw the Sea —
Yet know I how the Heather looks
And what a Billow be.
I never spoke with God
Nor visited in Heaven —
Yet certain am I of the spot
As if the Checks were given —
c. 1865 / 1890
Eu nunca vi Charnecas —
Nunca vi o mar —
Mas sei como é uma Urze,
Como serão as Vagas.
Nunca falei com Deus
Nem visitei o céu —
Mas sei tão bem o caminho
Qual se o Mapa fora meu.
c. 1865 / 1890
(in 80 Poemas de Emily Dickinson, tradução de Jorge de Sena, edições 70, 1979)
23.3.10
[outros melros LVIII]
JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES
Cape Cod Evening
Subo no fim da tarde
com os fumos das ervas secas
ao alto donde se vê o mar.
Recolho os cereais cortados.
A hera cresce pelo choupo.
Os plátanos raiam com a luz.
A rã saiu do lodo para a fonte.
Os bugalhos tombam
no barro dos campos.
Cantam os melros no trigo colhido.
Voltei, vê tu, dizem as coisas.
A luz interior acende-se
no poço da voz, mortal
e pronta a não mais findar.
(de Alguns Livros Reunidos, Contexto, 1987)
JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES
Cape Cod Evening
Subo no fim da tarde
com os fumos das ervas secas
ao alto donde se vê o mar.
Recolho os cereais cortados.
A hera cresce pelo choupo.
Os plátanos raiam com a luz.
A rã saiu do lodo para a fonte.
Os bugalhos tombam
no barro dos campos.
Cantam os melros no trigo colhido.
Voltei, vê tu, dizem as coisas.
A luz interior acende-se
no poço da voz, mortal
e pronta a não mais findar.
(de Alguns Livros Reunidos, Contexto, 1987)
22.3.10
LUIZA NETO JORGE
«MONUMENTO ÀS AVES»
Com a exacta segurança do guindaste
erguem-se transportando
o peso intenso
do objecto que se ergue
Atmosfera de pássaros
(mágicos cavalgando
a alta realidade)
montanha aérea transposta
por nós aves
O peso desses gordos pássaros
o extenso facto de voo dessas aves
conduz a nossa emigração
(de O Seu a Seu Tempo, 1966)
«MONUMENTO ÀS AVES»
Com a exacta segurança do guindaste
erguem-se transportando
o peso intenso
do objecto que se ergue
Atmosfera de pássaros
(mágicos cavalgando
a alta realidade)
montanha aérea transposta
por nós aves
O peso desses gordos pássaros
o extenso facto de voo dessas aves
conduz a nossa emigração
(de O Seu a Seu Tempo, 1966)
GASTÃO CRUZ
As aves que se movem já não têm
esta vida das folhas apagada
aves apenas mortas e sem nada
que lhes suprima a morte ou dê sequer
o movimento pálido do ar
nelas passando vezes que não é
possível já contar pois tantas vezes
o ar as move que se movem aves
embora no outono já não caiam
folhas ou aves ou talvez só caia
o movimento destas folhas morto
pois é pálido o ar aves e folhas
morrem na seca palidez que o move
e porque os homens não os move o ar
(de As Aves, 1969)
As aves que se movem já não têm
esta vida das folhas apagada
aves apenas mortas e sem nada
que lhes suprima a morte ou dê sequer
o movimento pálido do ar
nelas passando vezes que não é
possível já contar pois tantas vezes
o ar as move que se movem aves
embora no outono já não caiam
folhas ou aves ou talvez só caia
o movimento destas folhas morto
pois é pálido o ar aves e folhas
morrem na seca palidez que o move
e porque os homens não os move o ar
(de As Aves, 1969)
21.3.10
LEVI CONDINHO
ALPHAVILLE
Perseguimos ainda um tempo de vida iluminada
Mas não é disso que nos falam
Eles falam de outras coisas
Coisas muito concretas aparentemente inofensivas
Não há memória nos seus olhos
Não há olhos nos seus olhos
A raiva e as lágrimas os sorrisos do fim da noite
(Quando é de braços entrelaçados a noite)
Nada disso lhes diz respeito
Coração? Dúvida? — coisas de menor importância
A riscar da vida
Nos nossos lábios ainda e sempre húmidos
Nas nossas pálpebras pássaros inquietos
Perdura o rio da infância e é de amor que nós falamos
Rebenta o nosso peito ao querer dizer o indizível
Perante isto eles riem metalicamente
Pensando o escárnio
Pensando a morte sobre nós
Pois bem: resistiremos
E a Paixão será reposta no mundo
Liberta finalmente de significados dúbios
(de Para que alguns me possam amar, edições Távola Redonda, 1977 - série «Taboada da Marginal-Idade»)
ALPHAVILLE
Perseguimos ainda um tempo de vida iluminada
Mas não é disso que nos falam
Eles falam de outras coisas
Coisas muito concretas aparentemente inofensivas
Não há memória nos seus olhos
Não há olhos nos seus olhos
A raiva e as lágrimas os sorrisos do fim da noite
(Quando é de braços entrelaçados a noite)
Nada disso lhes diz respeito
Coração? Dúvida? — coisas de menor importância
A riscar da vida
Nos nossos lábios ainda e sempre húmidos
Nas nossas pálpebras pássaros inquietos
Perdura o rio da infância e é de amor que nós falamos
Rebenta o nosso peito ao querer dizer o indizível
Perante isto eles riem metalicamente
Pensando o escárnio
Pensando a morte sobre nós
Pois bem: resistiremos
E a Paixão será reposta no mundo
Liberta finalmente de significados dúbios
(de Para que alguns me possam amar, edições Távola Redonda, 1977 - série «Taboada da Marginal-Idade»)
Subscrever:
Mensagens (Atom)