29.10.08

MÁRIO DIONÍSIO

(excerto de) Antiprefácio

[...] Porque poesia é vida – como diz o lugar-comum, e por alguma razão se trata dum lugar-comum –, mas vida na sua mais recôndita e autêntica, mais renitente realidade, no momento luminoso em que se dá conta de que está a sê-lo, a tornar-se possível, a tomar, por vias imprevisíveis, consciência do seu estado permanente de mudança. Um momento de prodigiosa paragem no seio da mudança constante com que a própria vida se confunde, palavra reveladora, salvadora, destruidora, busca que nunca encontra tudo e nunca desiste de buscar, vitória sobre toda a renúncia, mesmo quando fala de renúncia, grande janela escancarada ou estreita fresta que apenas se entreabre ou promete entreabrir-se no que teimosamente tenta fechar-se, acabar, desumanizar-se e, por ela, mais e mais se humaniza, permanece, mas transformando-se e, transformado, transformando. Ou não será isso que, para lá de todas as outras distinções, distingue estes objectos novos, feitos de palavras e espaços, dos outros objectos todos, uma mesa, um copo, uma cadeira, a máquina mais complexa que possa imaginar-se, por vezes tão belos, sim, mas só quando (só porque) a poesia os liberta da sua perfeição definitiva, acabada, esgotada, e criadoramente os toca de incompleto?
[...]

(de Poesia incompleta – 1936-1965, publicações Europa-América, 1966)
MÁRIO DIONÍSIO

4


Pintura fácil poesia fácil
que bom sentir
tua frescura natural

Que bom dizer que sim a toda a gente

Azul o céu
as casas brancas
sol amarelo

O vermelho na telha
o verde na garrafa e na caruma
como olhos e abrolhos
paixão e coração

Que bom dizer que sim que sim que sim
poder sentir esta harmonia universal
tão salutar tão natural

(que não existe em parte alguma)


15

Tudo começa num ramo
de oliveira
aberto em braços de que saem braços
luxuriosos caprichosos
vagarosos de abraços deslaçados
nos espaços

Prende-se nele a brisa em mil requebros lassos
complacente

Um bago branco Um bago azul
mil bafos de euforia

Na serena folhagem transparente
Solta-se quente aberta em leque
Uma quase alegria
Comprometida e inocente


25

Altos cachões de espuma
com instantes de prata
Um corpo aqui se afunda
em seu tumulo de água

De extremo a extremo um pano azul puído e sujo
batido pelo vento em si mesmo desata um arvoredo
de mágoa

Rola no horizonte o peso
redondo e cavo dum balão de medo

Ao longe um eco verde
de lata


46

Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difuso duma ausência
que não magoa e sabe bem

Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto

O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente

Que longe tudo o que procuro!

Ser como os outros todos um instante que seja e tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro


63

Só tintas claras Delicadas
gradações de riso aberto e de frescura
clareza de mim mesmo agora mesmo vista
noutros olhos suspensa e repetida
nos olhos todos que a desejam sem procura
como se um bem o maior bem pudesse haver na vida
sem conquista

Tintas claras que sonho se me furtam sem remédio
Outra vez roxo e negro as vão cobrindo
e com elas quem amo e todo o resto

Ao branco se mistura um sujo breu que não é tédio
ou indiferença mas tristeza dum tempo em que se morre
em caves de tortura e esquecimento
as palavras de fogo só as ouve o vento
e os amantes se perdem no caminho
contra fantasmas que eles mesmos vão urdindo

Pintura escura negra pegajosa faço e a detesto
em raiva cega transformando o meu carinho
e de raiva criando um vão tormento
que tudo diz e diz tão pouco ou pouco mais que nada

Pintura negra e feia suja cujo visco de mim mesmo escorre
ao arrepio de cada pincelada
que minha mão por mão desconhecida vai pousando
e não posso apagar nem evitar nem acusar desventuradamente
ou iludir sequer com desespero amando e rebuscando e só traindo
a claridade impenitente
que em mim também já mal distingo e bem distingo estrebuchando
lá mais fundo até ao fundo ferida
e amordaçada


81

Claridade violeta violenta
na face torturada

Indignação raivosa
e afogada
em amarelo fulvo e fosco
de surpresa e de roxo desencanto

Vem-lhe da grade um fio
vermelho vivo
que sinuoso corre pelo rosto

e ao canto da boca morta
um grosso empasto de branco
sujo de moscas e de pranto

(de Memória dum Pintor Desconhecido, 1965 – incluído em Poesia Incompleta, publicações Europa-América, 1966)

[Este livro foi considerado por Nuno Júdice como o melhor de poesia do século XX, no inquérito que está a ser feito pelo blogue Os Livros Ardem Mal. Fico contente por pertencer à meia dúzia de pessoas que sabiam que o livro existe.]
CARL SANDBURG

Quem conhece o povo, os seareiros emigrantes e os apanhadores de fruta, as vítimas de empréstimos fraudulentos, os especuladores das casas a prestações,
Os malabaristas da areia e da madeira que amaciam as mãos passando-as pelo molde onde vai ser fundida a estrutura do motor do nosso carro,
Os pulidores de metais, os soldadores, e os pintores que aplicam os acabamentos ao automóvel,
Os rebitadores e os roscadores de parafusos, os cavaleiros de vigário na grande cidade, os vaqueiros das Grandes Planícies, os ex-condenados, os porteiros de hotel, os carregadores dos caminhos-de-ferro, os guardas das retretes –
O recrutador do sindicato com a lista daqueles que estão prontos a aderir e a dos hesitantes, os informadores pagos secretamente que denunciam qualquer movimento organizativo,
Os que andam de casa em casa procurando adesões, os que tocam às portas, os que dizem bom-dia-já-ouviu-dizer-que, os dos piquetes de greve, os fura-greves, os que são pagos para causar distúrbios, o pessoal da ambulância, os que vão atrás da ambulância, os que querem tirar fotografias, os que lêem os contadores, o pessoal dos barcos de pesca à ostra, os faroleiros –
quem conhece o povo?
Quem conhece tudo isto desde o fosso aos pináculos? É o povo, sim.

(tradução de Hélio Osvaldo Alves, in O escritor – Revista da Associação Portuguesa de Escritores, Nº 13/14 – Dezembro de 1999)

28.10.08

R. LINO

6.


Alguns saem para os exílios, mandam outros
que se lancem noutras águas os detritos...
O planeta sobrepõe-se ao planeta:
alguém se esqueceu de apascentar os países
dentro da pertença da terra e os seus nomes
não merecem os sacrifícios dos que mandados
por força sua obedeceram. Acreditamos
nas oferendas do espaço
como se o tempo explodisse sem as tomar
e a própria terra nos herdasse
com os sonhos sem os males.
Nunca poderei esquecer
como desliza a os lados
o chão daquela varanda
aberta ao calor do campo
na hora em que as ovelhas descansavam...

(de Paisagens de Além Tejo, edições Rolim, 1986)

27.10.08

JORGE ROQUE

Lado de fora

Vida ou lâmina este vinco por onde dobro dias agudos, rumino a frase, enquanto percorro com a língua a linha da cola e alongo entre os dedos a mortalha enrolada, e fumo, fumo, o mesmo já sempre fumado, cansado, repetido (lembro-me de ouvir dizer que os drogados se pareciam todos uns com os outros, fico a pensar nisso). Pela janela o mesmo olhar de nunca ter visto, a mesma procura de nunca o ter sido, a mesma esperança de nada esperar (aquela cor desbotada de criança cansada que já nas fotografias da infância reconhece). Entre olhar e olhar, os dias que morrem , a vida que passa, lado a lado com o charro que arde e o sorriso que fazes para não te verem. Mas talvez te vejam do lado de fora em que não tês vês. E talvez sejas igual aos que de fora viste, como tu julgando-se escondidos.

(de Broto Sofro, Averno, 2008)

26.10.08

PAUL GAUGUIN

(excerto de) NOA NOA

[...]
Nessa noite fumei um cigarro na areia, à beira-mar. O sol chegava rapidamente ao horizonte e começava a esconder-se atrás da ilha de Moorea, à minha direita. Opostas à luz, as montanhas desenhavam-se negras e poderosas no céu incendiado. Como velhos castelos de ameias. Enquanto todas estas terras sucumbem no dilúvio, de tanta feudalidade desaparecida para sempre e respeitada pelas ondas (murmúrio de uma multidão imensa) resta a cimeira protectora mais próxima dos céus, que olha majestosamente para as águas fundas, a ironia ou a altivez condoída. Esta multidão talvez submersa por ter tocado na árvore da ciência, opondo-se à cabeça. – Esfinge.
A noite chegou depressa. Desta vez ainda Moorea dormia. Mais tarde adormeci na minha cama. Silêncio de uma noite tahitiana. Só se ouviam as batidas do meu coração. Da cama viam-se os caniços alinhados e espaçados da cabana, com filtragens de lua, como um instrumento de música. Entre os nossos antepassados, chama-se pipo*, entre eles vivo – mas silencioso – (de noite fala a recordar). Adormeci com esta música. Por cima de mim, o grande telhado alto de folhas de pandanus com os lagartos que nele moram. No sono eu podia imaginar o espaço acima da minha cabeça, a abobada celeste, nenhuma prisão que nos fizesse sufocar. A minha cabana era o espaço, a liberdade.
Eu estava completamente só e olhávamos um para o outro.
Dois dias depois, esgotei as minhas provisões. Com dinheiro, eu tinha imaginado que encontrava o necessário para me alimentar. Ora a comida existe é nas árvores, na montanha, no mar, mas tem de saber-se trepar a uma árvore alta, ir à montanha e voltar carregado, apanhar peixe, mergulhar e no fundo das águas arrancar conchas solidamente coladas à rocha. Eu, homem civilizado, por ali andava e naquele instante muito abaixo do selvagem; e como o estômago vazio me obrigava a pensar tristemente na situação, um indígena fez-me sinais e gritou na sua língua: «Vem comer». Compreendi mas senti vergonha. Abanando a cabeça, recusei. Minutos depois uma criança veio em silêncio abandonar-me à porta alguns alimentos embrulhados muito asseadamente em folhas verdes recém-colhidas, e retirou-se. Como eu sentia fome foi em silêncio, também, que aceitei. Um pouco mais tarde o homem passou. Sem parar, só disse com ar amável uma palavra: «Paiá»? Estás satisfeito, percebi vagamente.
No chão, debaixo de tufos de largas folhas de abóbora, descobri uma cabeça pequena e escura, de olhar tranquilo. Estava a ser examinado por uma criança que fugiu amedrontada, quando os meus olhos encontraram os seus. Estas criaturas, estes dentes de canibal faziam subir-me à boca a palavra «selvagens». Para eles eu também era «o selvagem». E talvez com razão.
[...]
*Nota do Tradutor: Escrevendo «pipo», Gauguin deve talvez querer referir-se a pipeau, ou seja, uma gaita pastoril que pode realmente sugerir os caniços paralelos da sua cabana.
(in Noa Noa, precedido de Homenagem a Gauguin, de Victor Segalen, tradução de Aníbal Fernandes, Assírio & Alvim, 1985 - Arte e produção)
VICTOR SEGALEN

(excerto de) HOMENAGEM A GAUGUIN

[...]
Outra desgraça nos reserva a intimidade do Sr. Gauguin, empregado bancário – e desgraça ainda mais estéril. Porque se Huysmans andava a procurar-se com volúpia desde novo e através do lodaçal da sua própria alma, se Rimbaud escrevia à profeta antes de atingir a verdadeira mocidade – Paul Gauguin, que a vida empurrava, não queria saber de pinturas. Consinta o leitor em espantar-se: nesta crónica de um grande pintor que logo ao princípio tem mais de vinte e oito anos, não estava em causa a pintura.
E com um paradoxo duplo, oposto aos exemplos anteriores, pode mesmo acreditar-se que as funções do dia-a-dia é que levaram Gauguin a contactar com as tintas. Huysmans explica isto chamando-lhe manifestação do Maligno que costuma meter-se na alma por todos os transpirantes poros da nossa pele... Pode supor-se que o demónio das Visões penetrou na presa ao Domingo, esse vazio que uma semana em cheio provoca no bom empregado. Um belo domingo, para matar o tempo, Gauguin pôs-se a pintar. Vai objectar-se que uma fatalidade idêntica poderia tê-lo feito pescar à linha; ou ainda que o gosto de pintar fica a dever-se como em Taine, esse bom examinador, a uma influência do meio (mas o próprio Gauguin regista que Taine falou de tudo, excepto de pintura) e pode dizer-se, com Jean de Rotonchamp [Um dos primeiros, se não o primeiro, biógrafo de Gauguin. (N. do T.)], que «em casa de Gustave Arosa, seu tutor, o futuro artista do Cristo amarelo talvez tenha adquirido um amor latente e não pressentido pela obra pintada, pois esse Gustave Arosa... dotado de fino gosto, reunira em sua casa um certo número de telas da escola moderna...». Mais valerá reconhecermos a geradora virtude do Domingo num bom empregado, e a sua maleficiosa virtude, pois nesse mesmo dia, descanso do Criador, é que o Maligno actua e dá febre aos amaldiçoados entre os homens, seus filhos de orgulho e revolta: os artistas, os Foras-da-lei. Em tudo isto quero ver uma predestinação autêntica!
[...]

(in Noa Noa, de Paul Gauguin, precedido de Homenagem a Gauguin, tradução de Aníbal Fernandes, Assírio & Alvim, 1985 - Arte e produção)