MÁRIO DIONÍSIO
4Pintura fácil poesia fácil
que bom sentir
tua frescura natural
Que bom dizer que sim a toda a gente
Azul o céu
as casas brancas
sol amarelo
O vermelho na telha
o verde na garrafa e na caruma
como olhos e abrolhos
paixão e coração
Que bom dizer que sim que sim que sim
poder sentir esta harmonia universal
tão salutar tão natural
(que não existe em parte alguma)
15Tudo começa num ramo
de oliveira
aberto em braços de que saem braços
luxuriosos caprichosos
vagarosos de abraços deslaçados
nos espaços
Prende-se nele a brisa em mil requebros lassos
complacente
Um bago branco Um bago azul
mil bafos de euforia
Na serena folhagem transparente
Solta-se quente aberta em leque
Uma quase alegria
Comprometida e inocente
25Altos cachões de espuma
com instantes de prata
Um corpo aqui se afunda
em seu tumulo de água
De extremo a extremo um pano azul puído e sujo
batido pelo vento em si mesmo desata um arvoredo
de mágoa
Rola no horizonte o peso
redondo e cavo dum balão de medo
Ao longe um eco verde
de lata
46Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difuso duma ausência
que não magoa e sabe bem
Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto
O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente
Que longe tudo o que procuro!
Ser como os outros todos um instante que seja e tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro
63Só tintas claras Delicadas
gradações de riso aberto e de frescura
clareza de mim mesmo agora mesmo vista
noutros olhos suspensa e repetida
nos olhos todos que a desejam sem procura
como se um bem o maior bem pudesse haver na vida
sem conquista
Tintas claras que sonho se me furtam sem remédio
Outra vez roxo e negro as vão cobrindo
e com elas quem amo e todo o resto
Ao branco se mistura um sujo breu que não é tédio
ou indiferença mas tristeza dum tempo em que se morre
em caves de tortura e esquecimento
as palavras de fogo só as ouve o vento
e os amantes se perdem no caminho
contra fantasmas que eles mesmos vão urdindo
Pintura escura negra pegajosa faço e a detesto
em raiva cega transformando o meu carinho
e de raiva criando um vão tormento
que tudo diz e diz tão pouco ou pouco mais que nada
Pintura negra e feia suja cujo visco de mim mesmo escorre
ao arrepio de cada pincelada
que minha mão por mão desconhecida vai pousando
e não posso apagar nem evitar nem acusar desventuradamente
ou iludir sequer com desespero amando e rebuscando e só traindo
a claridade impenitente
que em mim também já mal distingo e bem distingo estrebuchando
lá mais fundo até ao fundo ferida
e amordaçada
81Claridade violeta violenta
na face torturada
Indignação raivosa
e afogada
em amarelo fulvo e fosco
de surpresa e de roxo desencanto
Vem-lhe da grade um fio
vermelho vivo
que sinuoso corre pelo rosto
e ao canto da boca morta
um grosso empasto de branco
sujo de moscas e de pranto
(de
Memória dum Pintor Desconhecido, 1965 – incluído em
Poesia Incompleta, publicações Europa-América, 1966)
[Este livro
foi considerado por Nuno Júdice como o melhor de poesia do século XX, no inquérito que está a ser feito pelo blogue
Os Livros Ardem Mal. Fico contente por pertencer à meia dúzia de pessoas que sabiam que o livro existe.]