10.2.07

EUGÉNIO DE ANDRADE

(...) Quanto ao Enzensberger, traduzi à pressa os poemas que aí estão para lhe oferecer, como um par de rosas, num jantar para que me convidou, tendo-me ele dado em troca o primeiro exemplar da tradução portuguesa do Almeida Faria. Estivemos a comparar a versão daquele poema onde as palavras são sementes de álamo, ele fascinado com as diferenças, cujo responsável era um cubano amigo dele, de nome Herberto Padilla. Não emendei a minha tradução, naturalmente, para sua alegria.
(...)

(excerto da nota inicial a Trocar de Rosa, Na Regra do Jogo, 1980)


HANS MAGNUS ENZENSBERGER

RAJADA


há palavras
leves
como sementes de álamo

erguem-se
levadas pelo vento
e voltam a cair

difícil agarrá-las
porque se afastam muito
como sementes de álamo

há palavras
que mais tarde talvez
removerão a terra

que espalharão sombra
uma sombra delgada
ou talvez não

(tradução de de Eugénio de Andrade in Trocar de Rosa, idem)


ventogesto

algumas palavras
leves
como sementes de álamo

sobem
viradas pelo vento
mergulham

difíceis de aprender
levam longe
como sementes de álamo

algumas palavras
soltam a terra
talvez mais tarde

lancem uma sombra
uma sombra subtil
ou talvez não

(tradução de Almeida Faria, in Poemas Políticos, publicações Dom Quixote, 1975)

9.2.07

HENRY MILLER

(...)
A vida é banquete ou fome, como diz o velho provérbio chinês. Hoje é mais fome do que qualquer outra coisa. Sem precisarmos de recorrer aos ensinamentos de um sábio como Freud, é evidente que, em épocas de fome, os homens se comportam de maneira diferente do que na abundância. Em tempos de fome, andamos a vaguear pelas ruas com um olhar voraz. Olhamos para o nosso irmão, vemos nele um suculento naco e prontamente lhe armamos uma cilada e o devoramos. Fazêmo-lo em nome da revolução. A verdade é que não tem muita importância aquilo em nome de que o fazemos. Quando os homens se tornam irmãos tornam-se também ligeiramente canibais. Na China, onde as fomes são mais frequentes e mais devastadoras, já tem acontecido as pessoas ficarem tão histéricas (por trás da famosa mascara oriental) que, quando vêem ser executado um homem, se descontrolam e riem.
A fome em que vivemos tem a peculiaridade de se verificar no meio da abundância. Trata-se mais de uma fome espiritual, poderíamos dizê-lo, do que uma fome física. Desta feita, as pessoas não lutam pelo pão, mas pelo direito ao seu pedaço de pão, distinção que se reveste de alguma importância. O pão, em sentido figurado, está em toda a parte, mas a maior parte de nós tem fome. Especialmente os poetas - poderei dizê-lo? Pergunto, porque é tradição os poetas passarem fome. É, portanto, um pouco estranho vê-los identificarem a sua fome física habitual com a fome espiritual das massas. Ou será o contrário? Seja como for, estamos hoje todos esfomeados, excepto, sem dúvida, os ricos e a burguesia presunçosa, que nunca souberam o que é passar fome, nem espiritual nem fisicamente.
Inicialmente, os homens matavam-se uns aos outros na mira imediata da pilhagem - alimentação, armas, utensílios, mulheres, etc. Tinha sentido, embora nem caridade nem compaixão. Hoje somos compassivos, caridosos e fraternos, mas continuamos a matar da mesma maneira, e matamos sem a mínima esperança de atingirmos os nossos objectivos. Matamo-nos uns aos outros em benefício dos vindouros, para que estes possam gozar de uma vida com mais abundância. (Grande treta!)
(...)

(excerto da Carta aberta aos surrealistas de todo o mundo, in O Mundo do Sexo e outros textos, tradução de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira, publicações Dom Quixote, 1987)

8.2.07

AMADEU BAPTISTA

Boca do Inferno


Não lhes há-de bastar o baraço
da crítica nas paginas dos jornais
e a folha adventícia de um talento tradutor
que galvaniza as capelas e enche os olhos de poeira.
Também de torcicolos maneiristas e a raivinhas pequenas
não há-de encher-se o saco meio roto
onde tudo na manga é apenas um coelho
bastante epigonal e o mais das vezes roto.
Sequer o grito histérico e liofilizado
à mesa congregadora da afável leitaria
urdirá as malhas de preclara ciência
de em versos acertar a existência.
É gente mercenária que está disposta a tudo
pela manobra sem risco da pós-modernidade
onde depositaram os ossos prestamistas
porque não têm alma.
De nada há-de valer-lhes a rede com que contam.
O oportunismo mentecapto é o sem abrigo
com que o estímulo da rendição já os encontra
nas ruas rarefeitas da cidade
e os outros arredores não menos putas.

(in Boca do Inferno, Revista de Cultura e Pensamento, n.º 6, Abril de 2001)