(…)
- E a sua vida? Ainda não sei nada de si… Diga-me, o que é a sua vida?
- A minha vida são os meus livros. As palavras que conduzo. As situações que rego. Os homens que invento para os outros homens. As mulheres que nunca consegui encontrar para o corpo de acção, para o espírito das palavras. Às vezes ando quinze dias atrás duma mulher que encontro casualmente na rua, a observá-la, a segui-la, até casa, até ao emprego, para lhe fixar os mínimos (gloriosos) pormenores para depois os lançar ao papel como um osso a um cão. Mas acabo sempre por desistir porque nunca conseguiria reproduzir-me como uma fotografia ou uma radiografia. Os meus livros não são um guia automobilístico nem o roteiro de uma cidade. Estão abandonados no sangue até que deles participe todo o mundo. E às vezes esqueço-me de viver a minha própria vida. Sim, a minha vida é um veiculo que se alimenta de sol em vez de gasolina e que anda só em sentido contrario…
- Porque escreve então?
Pergunta antiga, descubro-me no Egipto há milhares de anos rente ao Nilo, os dedos na terra, um sorriso na crista da boca, o sol levando-me os olhos. Sempre a pergunta inutil. Agora na boca translúcida de Apília. Apília, quando colhíamos morangos ao nascer dos dias egípcios e depois cansados nos deitávamos, tu ao comprido, eu com a cabeça nas tuas ancas comendo os morangos que escorregavam para as tuas pernas até aquecerem na nossa respiração, que se ia evaporando.
- Porque não sei falar…
(…)(excerto de Os Três Seios de Novélia, 1969)