20.12.08

MANUEL DA SILVA RAMOS

(…)
- E a sua vida? Ainda não sei nada de si… Diga-me, o que é a sua vida?
- A minha vida são os meus livros. As palavras que conduzo. As situações que rego. Os homens que invento para os outros homens. As mulheres que nunca consegui encontrar para o corpo de acção, para o espírito das palavras. Às vezes ando quinze dias atrás duma mulher que encontro casualmente na rua, a observá-la, a segui-la, até casa, até ao emprego, para lhe fixar os mínimos (gloriosos) pormenores para depois os lançar ao papel como um osso a um cão. Mas acabo sempre por desistir porque nunca conseguiria reproduzir-me como uma fotografia ou uma radiografia. Os meus livros não são um guia automobilístico nem o roteiro de uma cidade. Estão abandonados no sangue até que deles participe todo o mundo. E às vezes esqueço-me de viver a minha própria vida. Sim, a minha vida é um veiculo que se alimenta de sol em vez de gasolina e que anda só em sentido contrario…
- Porque escreve então?
Pergunta antiga, descubro-me no Egipto há milhares de anos rente ao Nilo, os dedos na terra, um sorriso na crista da boca, o sol levando-me os olhos. Sempre a pergunta inutil. Agora na boca translúcida de Apília. Apília, quando colhíamos morangos ao nascer dos dias egípcios e depois cansados nos deitávamos, tu ao comprido, eu com a cabeça nas tuas ancas comendo os morangos que escorregavam para as tuas pernas até aquecerem na nossa respiração, que se ia evaporando.
- Porque não sei falar…
(…)

(excerto de Os Três Seios de Novélia, 1969)

19.12.08

ERNESTO GRASSI

(…) As condições biográficas do autor de uma obra de arte nada nos revelam do processo artístico da sua composição, pois que as vivências «pessoais» do poeta não são diferentes, na maioria das vezes, das que são comuns aos seus contemporâneos e próximos que não foram capazes de extrair delas um sentido universal. Embora pareça contraditório, assim é: a personalidade que através da obra de arte nos fala é, sem dúvida, a de um indivíduo que se move em determinado condicionamento histórico, mas é sobretudo a encarnação de uma força impessoal cujo fito é configurar o objectivo e universal. Daí a impressão de um estranho anonimato no qual, todavia, se patenteia algo de muito pessoal, que no projecto criador transmuta e anula o meio ambiente e tem capacidade para tanto porque as suas raízes atingem o fundo último do ser, do indizível ignoto. É decerto este o sentido das palavras de Rimbaud:

(excerto de A Arte e o Mito, tradução de Manuela Pinto dos Santos, sem data – LBL Enciclopédia)
ARTHUR RIMBAUD

(…) A inteligência universal sempre arremessou as suas ideias com naturalidade; os homens recolhiam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se em conformidade, escreviam-se livros: tal era o sentido das coisas, o homem não se trabalhando, não estando ainda desperto ou não mergulhando na plenitude do grande sonho. Funcionários, escreventes: autor, criador, poeta, esse homem nunca existiu!
O primeiro estudo para o homem que quer ser poeta é o próprio conhecimento, por inteiro; ele procura a sua alma, inspecciona-a, experimenta-a, apreende-a. Desde que a sabe, deve cultivá-la; isso parece simples: em todo o cérebro se dá um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; muitos outros atribuem-se o seu próprio progresso intelectual! – Mas do que se trata é de tornar a alma monstruosa: a exemplo dos comprachicos, pois! Imagine um homem implantando e cultivando verrugas no seu próprio rosto.
(…)

(excerto de carta a Paul Demeny, datada de 15 de Maio de 1871, in Cartas do Visionário e mais nove poemas, tradução de Ângelo Novo, Fora do Texto, 1995)

18.12.08

AMADEU BAPTISTA

Ternura


A magnífica
refeição que o tratador
dá ao cavalo:
aveia,

duas dúzias de cenouras
e uma maçã vermelha.
Devolve-lhe o cavalo
a afeição

com um roçagar
leve da garupa.
Todo ele afecto,
a derramar ternura.

(de Os Cavalos a Correr, Trinta por uma linha, 2008 - recolhido no Porosidade Etérea)
Foram lançados recentemente mais dois novos livros de Amadeu Baptista:





















Os Cavalos a Correr,
livro de poemas para crianças ilustrado por Estela Baptista Costa
e editado pela editora Trinta por uma linha

e

Açougue
(XVI Prémio de Poesia Espiral Maior),
editado na Galiza pela Espiral Maior.

(entretanto, há notícia de que mais livros do Amadeu estão para chegar em breve)

16.12.08

EDWARD HOPPER


Empty Room, 1963
óleo sobre tela
Colecção particular



MÁRIO AVELAR

Promenade – Sol num quarto vazio
(Edward Hopper)


Às vezes sento-me na
sala a ouvir Coltrane,
my favorite things… O crepúsculo

da memória esbate-se
em ténues raios de
luz nos ecos desses dias:

Não vás ao mar, Tóin’… O tédio
dos sessenta, procissões,
indolentes romarias…

cheiro a fritos, farturas…
Nostalgia? Toca a
banda no coreto… Que

vontade de uivar, de
correr, de fugir p’ra longe
desse imenso torpor.

(de Pela mão de Mussorgski numa galeria com anjos, Black Sun editores, 2000)

15.12.08

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

A noite abre meus olhos


Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes

A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só.

(de A Estrada Branca, 2005)

14.12.08

SANDRO PENNA

As Portas do mundo não sabem
que lá fora a chuva as procura.
As procura. As procura. Paciente
afasta-se, regressa. A luz
não sabe que há chuva. A chuva
não sabe que há luz. As portas,
as portas do mundo estão fechadas;
fechadas para a chuva,
fechadas para a luz.

(in No brando rumor da vida, tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Assírio & Alvim, 2003 – original de Poemas Inéditos (1927-1955))