29.11.06

ANA HATHERLY

AS PALAVRAS DIRIGEM-SE UMAS ÀS OUTRAS


As palavras dirigem-se umas às outras:
dormentes nos dias cinzentos
acordam nos sonhos
mas acordam-nos dos sonhos
salvadoras-matadoras
roedoras de raízes

O seu alcance é
a vastidão erma do sentido

À flor do rio do olvido
o seu brilho
flutua fugaz no corpo da grafia

(de O Pavão Negro, Assírio & Alvim, 2003)

28.11.06

JOSÉ AUGUSTO SEABRA

O ECO


Ouves o sulco doutra voz ainda
dentro da voz daquele instante presa
ao só instante de hesitar-te, ainda
perdida a voz pela garganta presa?

Ouves o rasto doutros dedos vindo
sobre os teus dedos tão a medo breves
pousar-se aonde o só receio vinha
pelos teus dedos quase ousar-se breve?

Ouves apenas? Ou da demorada
memória acordas mansamente a cada
bafo do tempo em tuas mãos geladas?

Ouves ainda? Ou da voz gelada
o tempo em teus ouvidos cada
palavra na memória demorada?

(de Tempo Táctil, Portugália editora, 1972 - colecção Poetas de Hoje)

27.11.06

FERNANDO GUERREIRO

Ornitologia


Chegado o Outono, o conhecimento concentra-se nas asas
dos pássaros que pousam lentos sobre a cor dos frutos.
Sem sentimentos, as aves entregam-se ao sabor do vento
e deixam que no cérebro cresça a febre negra das urzes.
Aquieta-os a experiência que conservam do espaço
e que todas as tardes os inibe de partir para continentes
mais prósperos e seguros. Sustém-os um atavismo
apenas explicável pelo saber dos signos e o seu desejo
colectivo de suicídio. Porque não escolhem antes
perder-se na tempestade? Talvez visto do ar,
aos seus olhos o mundo se torne mais pesado
e o pensamento se confunda, na memória,
com uma paisagem festiva de piras fúnebres.
E contudo, apesar do carácter cerrado da atmosfera,
o seu peso parece já ter-se deixado de sentir
sobre o discurso. Virados para dentro,
as imagens em que se reflectem são
as de um mundo banhado pela penumbra.
Afogado na sua razão de ser. Mediúnico.
Imagine-se agora o caçador a entrar
paisagem dentro para abater as peças
de que se compõe o cenário uma a uma:
vista de dentro, o Sol em que se esgota
a paisagem deixa cair as suas penas
sobre a imensidão que a chuva perturba.

(de Gótico, Black Sun editores, 1999)

26.11.06

MÁRIO CESARINY

you are welcome to elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinor

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

(de Pena Capital, 1957)

24.11.06

FÁTIMA MALDONADO

O OUTONO


Cismam os caçadores
junto de estevas,
o pombo reflecte face ao junco,
o grilo ressuscita melopeias,
a tarde cerca a margem
no curral da noite.
O caixilho da arma cede
à luz,
o lago envia em morse.
O vento hiberna
enquanto bandos de patos bravos
envolvem o céu de ligaduras.

(de A Urna no Deserto, 1989)

23.10.06

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Do lado da melancolia com as árvores das estrelas


Em lucidez plana de espaço silencioso
e de tensão repousante estão as árvores do sangue
com as suas aves brancas e seus diademas brancos
Os tendões da atenção sustentam a coluna branca
sob a chuva deslumbrante que as pombas atravessam
com frescor estalidos que vão quebrar a cal

Estão as árvores do sangue em tensão repousante
e dir-se-ia que vêem a lua vacilante sob a chuva
e que respiram o odor da chuva o odor lento
e fresco da terra de humidade vermelha
e um navio sob uma nuvem passa na lentidão da chuva
enquanto um pássaro no parapeito de um terraço
desfere duas notas de fina felicidade

O silêncio das árvores vem de um ouvido azul
e perfuma o espaço de deslumbrante solidão
Há uma plácida harmonia entre as árvores dos campos
e as ténues árvores das ramificadas artérias
Ouve-se o que se esconde o seu pudor vegetal
e os nomes levantam-se como vagas ondas
e pousam lentamente como melancólicas aves
de um Outubro em que brilha um sol cor de laranja

(in Espacio Espaço Escrito 11/12 - Outono/Inverno 1995)

22.10.06

[para uma antologia de bicicletas - 12]

ANTON TCHÉKHOV

(...) Vamos então a andar e, de repente, imagine só, passam de bicicleta o Kovalenko e, atrás dele, a Várenka, toda vermelha, ofegante, mas alegre e feliz.
- Nós - grita -, vamos à frente! O tempo está tão bom, tão bom que é um terror!
E desapareceram ambos. O nosso Bélikov passou da cor verde à branca e como que petrificou. Parado, a olhar para mim...
- Desculpe, mas que é isto? - pergunta. - Estarei a ver bem? Será que é decente professores de liceu e mulheres andarem de bicicleta?
- Mas que indecência há nisso? - digo-lhe eu. - Que pedalem, faz-lhes bem.
- Mas como é possível? - grita ele, espantado com a minha calma. - O que está o senhor a dizer?!
(...)
No dia seguinte (...) arrastou-se para casa dos Kovalenko. Várenka não estava, apanhou só o irmão.
(...)
- Tenho mais umas coisas a dizer-lhe. Há muito que estou ao serviço, e o senhor está ainda no princípio, por isso considero meu dever, como colega mais velho, fazer-lhe esta advertência. O senhor anda de bicicleta, mas esse divertimento é de todo indecoroso para um educador da mocidade.
- Por que razão? - perguntou Kovalenko na sua voz de baixo.
- Será que ainda é preciso explicar, Mikhail Sávvitch, será que não compreende? Se o professor vai de bicicleta, o que resta aos alunos fazer? Resta-lhes andar fazendo o pino! Uma vez que tal não foi autorizado por uma circular, está proibido. Ontem fiquei aterrorizado! Então, quando vi a sua irmã, turvou-se-me a vista. Uma mulher ou uma menina de bicicleta é um horror!
- Diga lá, o que deseja concretamente?
- Uma única coisa: adverti-lo Mikhail Sávvitch. É um homem jovem, tem o futuro pela frente, deve portar-se com muita prudência; ora, o senhor falta sempre à suas obrigações, falta sempre! Anda de camisa bordada, passeia-se constantemente na rua com uns livros quaisquer, e agora, para cúmulo, a bicicleta. Se o director souber que o senhor e a sua mana andam de bicicleta, se isso chegar aos ouvidos do inspector... Acha bem?
- Que eu e a minha irmã andemos de bicicleta, ninguém tem nada a ver com isso! - disse Kovalenko e enrubesceu. - E a quem se mete nos assuntos da minha família e da minha casa só tenho que o mandar para o diabo que o carregue.

(excertos do conto Um Homem na Sua Concha, in Contos de Tchékhov - volume II, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio d'Água, 2001)

5.10.06

[outros melros XLIII]

ANÓNIMO CELTA

O CANTO DO MELRO


Da ponta do bico brilhante e amarelo
Da ave pequena soltou-se um trinado.
De dentro de um ramo de folhas doiradas
O melro lança o seu cantar pelas águas do lago.

(tradução de José Domingos Morais, in Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim, 2001)

4.10.06

[decorreu, entre 24 e 30 de Setembro, no concelho de Cascais, uma Semana Cultural Macedónia. No Sábado, teve lugar um encontro entre poetas macedónios e portugueses, com leitura de poemas nas duas línguas. Ficam aqui alguns dos poemas lidos]


ANA HATHERLY

A história do mundo


A história do mundo
É uma autobiografia inventada
É a história
De um Paraíso desencontrado
De um velho-novo-mundo
Para sempre ultrajado
Pela enorme cintilação do oiro

Ah!
Como é desigual
A viagem da descoberta!

Entre a cópia e a falta
Ante o eterno vexame do despenho
Uma pergunta maléfica nos assalta:
Que fazer?

A alma
Não tem que fazer nada
Dizia um célebre quietista?


MATEJA MATEVSKI

O nascimento da tragédia


Quando Aristóteles estabeleceu o verdadeiro estado
das coisas
e determinou como transformar o claro em obscuro
quando o riso se tornou num esgar
e a palavra numa espada
a dor já existia
Porque havia muito a mão tinha sido modelada como uma mão
e a palavra como uma palavra
para expulsar o mal do mundo
Mas o mal estava presente
mesmo entre as regras mais exactas
e as acções mais inevitáveis
E Dionísio embriagado de vinho e de sol
havia muito que brandia o falo e a espada
forçando ao canto as feras esfoladas
Assim tinha nascido a canção
Enquanto as mulheres se cobriam a si mesmas de negro
enquanto as torres ardiam e os navios eram afundados
e os cavalos calcavam os frutos da terra
e o coração murchava como uma maçã
e o sangue abandonava o corpo
Isso pouco tinha a ver com heroísmo
ou com a dor da solidão ou com as lágrimas em caminhos desertos
contudo mesmo assim o velho filósofo aplicaria
as elegantes regras do jogo
a tais selvajarias
enquanto a audiência continua
aplaudindo a morte


CASIMIRO DE BRITO

Três haiku


Diante do lago,
a beleza. Como se homens
não existissem

Lago de Ohrid -
até no seio da morte
a natureza sorri

Para além do lago
as terras parecem felizes -
os homens em guerra


VERA CHEJKOVSKA

Psycho


é isso um enlace de linhas direitas ortodoxas e de não
ortodoxas linhas curvas?
admito um programa semelhante para os meus desenhos
em miniatura. e.g., deixar que os bichos da seda
sejam engendrados pelos genitais do diabo e pelo sémen de Deus,
que eles mesmos expelem. deixá-los ser verdadeiros
pequenos demiurgos, abraxas omnipresentes na minha
elocução. De modo a apresentar a sua mobilidade
indubitável nas fronteiras do determinismo.
ou: a luz é um múltiplo ferrão de vespa e a escuridão
uma miríade de formigas. como um espécime adicional da
pré-essência, da sabedoria mítica, que deve
continuamente desenvolver até agora. até mim.
Porém, a consciência de alguns saltos inesperados...
imprevisíveis como pétalas de rosa em situações
banais...


PAULO TEIXEIRA

Taças


Derramadas foram as taças sobre a Terra.

Estremeci do seu murmúrio primeiro,
do seu frémito depois, da sua convulsão.
As palavras que ouvia eram como calhaus
rolados, seixos que dão à praia pela manhã.

Entram na vossa alma secretamente.

Chorei por vós nesse dia. Piedade.

Porque amei vossas pegadas e as cicatrizes
na vossa carne, o tão calado testemunho.
Perguntareis: como amar as pegadas
de quem já não vive?

Amei o que foi vosso um dia. Por isso chorei.


ZORAN ANCEVSKI


Leitura


Eu gaguejo perante
os p-p-portões da Babilónia
quero dizer
não consigo falar

A minha voz quebra-se
multiplica-se
sob a minha língua
as palavras reproduzem-se

E pergunto-me
fui eu que proferi esta palavra
ou foi ela
sempre nos iludiremos mutuamente
pois temos a eternidade
desde que a palavra foge
desde a nossa primeira tagarela-babel

Que esforço para nos reconhecermos
nesta infinidade de espelhos
no ventre deste mun-
do vago, concha de ostra
a p-p-pre-pre-pre-pre-
existência do eco.


VASCO GRAÇA MOURA


o caminho de ohrid


do alto das muralhas de ohrid onde
acorrera aos gritos desvairados dos vigias,
o rei samuel avistou o seu exército desfigurado,
arrastando-se entre as montanhas da macedónia.

aos catorze mil homens tinham sido
arrancados os olhos por ordem do imperador
e a um em cada cem mandara ele, basílio II,
fosse poupado um olho para conduzirem o regresso

dessa manada cega. depois de atravessarem altas neves
vinham-se agora despenhando para o lago,
tropeçando, agarrados uns aos outros,
a tortura espelhada nas contorções das faces,

o sangue a empapar-lhes os andrajos. e o rei,
tomado pela angústia, deu um grito de dor e morreu
no alto da muralha sobre a colina e os seus bosques e pomares
que o lago placidamente reflectia.

nesse instante compreendeu como era ambígua
a força cega do destino e em nenhum mosteiro
podia a iconostase explicar-lhe esse cruel mistério:
os santos, com feições dos retratos do fayoum,

entre as chamas trémulas emudeciam
nos seus frescos e as vozes dos jovens monges,
no seu canto austero e imperturbado,
elevavam uma grave primavera na penumbra.


(os poemas dos autores macedónios foram traduzido por Rute Mota, a partir de versões em inglês)

25.9.06

[para uma antologia de bicicletas - 11]

ERNEST HEMINGWAY

Vestiu-se, ainda húmido da água do mar, enfiou o boné no bolso e subiu o caminho com a bicicleta às costas e depois montou, conduzindo a máquina pela colina acima, sentindo nas pernas a falta de treino enquanto premia as solas dos pés contra os pedais, ganhando uma marcha que o levava estrada acima como se ele e a bicicleta fossem animais de uma carroça. Depois, desceu, as mãos tocando os travões, descrevendo curvas rápidas, passando veloz pelos pinheiros, até às traseiras do hotel, onde o mar brilhava azul para lá das árvores.

(excerto de O Jardim do Éden, tradução de Ana Maria Sampaio)

13.9.06

MARIA DE LOURDES BELCHIOR

PALAVRA


Onde as palavras lisas e límpidas
capazes de transportar
esta quotidiana inquietação
ração diária de gozo e dor?
Onde as palavras purificadas
do lastro do uso das nossas falas mortais?
Não mais na linha do horizonte a Palavra?
Enraizadas no terrunho; carregadas de sonoridade
sujas, enfarinhadas, as palavras senha do nosso falar comum
fabricam o pão alimento, suporte do diálogo impossível.
Só palavras genesíacas, lustrais, abissais,
hão-de revelar e decifrar o verdadeiro nome das coisas?
Que linguagem, miragem do ser e do estar
há-de dizer homem, mundo, amor?
Na linha do horizonte impossível?
a Palavra?
Só no fim dos tempos decifrada?

(de Gramática do Mundo, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985)

12.9.06

[para assinalar a chegada de um blog com nome de livro]

PAULO JOSÉ MIRANDA

A voz que nos trai


Talvez, é aquilo que nos pode servir de desculpa,
que dá sentido a uma espera, ao empenhamento dissimulado,
à mentira mais profunda que se pode erigir.

Não é nem velho nem novo, e a meio caminho da vida e da morte
encontra-se consigo a medir tarefas, dinheiros, tempo.
A beleza é sempre tardia junto ao corpo.

Quem se não reconhece ao virar de si sofre inutilmente,
deita-se para não acordar, levanta-se para muito pouco mais.
Jogamos a mão a um livro como se não temesse a morte

e a voz que se escuta trai-nos de todo a vida.
Talvez, que a beleza é sempre tardia.

Quando a carne se rasgar por dentro numa úlcera,
o hálito denunciar o declínio das suas esperanças,
talvez então aí encontre a verdade que procura,

talvez encontre o que sempre soube com medo,
porque nem sempre escondeu a sua vida.

Uma veia que se entope, a visão perdida,
os talheres e os copos a agitarem-lhe as mãos
e ao espelho cada ano um velho desconhecido,

será este o diagrama do fracasso, de uma vida?

Talvez as culpas fiquem por atribuir,
talvez que de um outro modo pudesse tudo ter sido diferente,
talvez não caminhasse para a miséria, para a morte, um nada sem fim.

Talvez, que a beleza é sempre tardia, junto ao corpo.

(de A voz que nos trai, edições Cotovia, 1997)

11.9.06

GASTÃO CRUZ

DEPOIS DE AGOSTO


A imagem do mármore desfaz-se
no mar que representa

Agosto sobrevive O céu encurva
como uma onda a luz

(de As Leis do Caos, 1990)

30.8.06

CEES NOOTEBOOM

CAUDA


Olha para as coisas, vê-as
na sua inocência metafísica
incertas da sua existência.

Lembra-te da conversa
no caramanchão, um Verão nórdico,
hortênsias, a razão de uma rã,
rosas, mascaras.
Incenso sem igreja.

Uma borboleta a esvoaçar na China
rasga uma tempestade na Finlândia.
Alguém o disse; ficaste calado.
Era o que tu já sabias.

Quando é que as pinturas se desfazem
do pintor, quando é que a mesma matéria
se transforma noutra ideia? A bruma da tarde
passava pela relva, afogada a alameda, a fonte
e a casa.

Música, o chapinhar de remos,
alguém acende a luz, alguém
que não acredita na penumbra.
A pergunta sem resposta erra
pela janela.

(tradução de Arie Pos, in Poesia em Lisboa 2000, Casa Fernando Pessoa e PEN Clube Português, 2000)

28.8.06

[outros melros XLIIa]

Ana Marques Gastão - «Escrever é querer descobrir o próprio vulto». Isso basta-lhe?
Ana Hatherly - Sou obrigada a isso.
AMG - Sempre num caminho de instabilidade?
AH - Como o melro que na minha varanda salta pelo jardim num hotel de cinco estrelas: «(...) Flâneur jovial/seu canto/enche de encanto o meu dia/Preciosa ilusão de alegria/como criança saltando à corda/brinca/com as leis do fim». Tenho uma paixão pelos melros.

(excerto de entrevista, in Agulha, revista de cultura # 35 - agosto de 2003)
[outros melros XLI e XLII]

ANA HATHERLY

Tisana 76


Era uma vez um melro de oiro mas pintado de preto. Do seu bico jorrava uma fonte em que se banhavam as grandes cadeiras de sessenta. Quando as filhas das cadeiras cresceram mandaram plantar árvores onde colocaram águias de prata de cujas axilas saíam cabeças de chumbo. Desde esse dia nunca mais pintaram o melro de preto.

(de 463 Tisanas, Quimera editores, 2006)


NUM HOTEL DE CINCO ESTRELAS - I

Em frente à minha varanda
um melro salta pelo jardim
e quando pára, alça a cauda
evitando o viés da instabilidade

Flâneur jovial
seu canto
enche de encanto o meu dia

Preciosa ilusão de alegria
como a criança saltando à corda
brinca
com as leis do fim

(de Itinerários, edições Quasi, 2003)

27.8.06

[Monumento a Antero de Quental - Jardim Antero de Quental, Ponta Delgada / 16 de Agosto de 2006]

ANTERO DE QUENTAL

SOLEMNIA VERBA

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.


CONTEMPLAÇÃO

Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando...

Que é o mundo ante mim? fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existências...
Uma névoa de enganos e impotências
Sobre vácuo insondável rastejando...

E d'entre a névoa e a sombra universais
Só me chega um murmúrio, feito de ais...
É a queixa, o profundíssimo gemido

Das cousas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só pressentido...

(de Sonetos Completos, 1886)

15.8.06

[outros melros XL]

JOÃO MAIA


O Melro


Falaremos só do de bico amarelo? E a mélroa? Ora falemos de todos sem discriminação. Quando os homens, referindo-se ao parceiro, dizem «Que melro!», referem-se a algum desconfiadão que em primeiro termo trata de si e não dá passo em falso. Persuadiram-se de que o melro - lá porque de manhã, ao ir tomar o desenjoadouro, vistoria primeiro, com olho sagaz, se a gataria por ali espreita - era a fina flor da finura.
O que ele é, é um cantor que só canta com a barriga cheia. Logo de manhã vai aos pomares, para debaixo dos arbustos húmidos, e põe-se a esgaravatar. Envia para o estreito meia dúzia de bifes ingleses - ou seja, minhocas gordíssimas - e sobe de seguida para um ramo alto, onde se põe a assobiar como se a vida fosse uma festa preparativa de capitoso jantar.
Assobia, fechando os olhos e repetindo o trinado e virando-se à direita e à esquerda.
No tempo dos ninhos, escolhe a pernada a jeito; e não mostra subtileza a esconder-se. Em linha recta, transporta raízes e matana até que bonda. Em seguida, a mélroa vai buscar uns fios de penugem, e não tarda que cinco ovos a céu aberto garantam a continuidade da família. Nos silvedos próceres ou nas árvores de pomar mais copadas é que instauram a camarata.
Durante a criação, cinco bicos vorazes dão um trabalho que não pode afroixar. Carretos pesados de toda a bicharia, esgaravatada com consciência, cruzam os ares indiscretos. O bichano, cá em baixo assiste ao transporte, cofia os bigodes e programa uma caçada. Se lhe passa da ideia, em poucos dias os cinco comilões, crescendo em galão, vestem-se - e ala! De gorra com os pais, desabam nas hortas das cercanias e, com breves lições de cozinha, pegam a engordar e a ensaiar a solfa.
O pior é se o gato trepa pela árvore e dá com o berço a transbordar. Saúda-os, mesureiro, pega no mais gordo, e desce de novo todo contente. Um almoço que nem o rei da Inglaterra abicha em toda a roda do ano! No outro dia, ligeiro e sorrindo, volta a trepar e volta a descer. Alarmados, os melros induzem os restantes a tentarem o voo. Ao terceiro dia o bichano embatuca - e chama-se nomes por não ter sido mais previdente.
Melros com arroz é iguaria de deitar o santo a perder. Daí armarem-lhes laços e granizarem-nos de chumbo, não falando já na decapitação dos ninhos. Sabem-no eles muito bem; por isso ralham e fogem com voos em flecha, mal se sentem espiados. À noite, antes da deita, vê-los-eis queixumentos de ramo para ramo, pois todas as sombras se lhes afiguram malteses emboscados de clavina pronta.
Os homens, em geral, metem-nos na panela, não os metem nos livros. Mas em Portugal, além de Junqueiro, foi Ramalho Ortigão quem melhor deu guarida, na sua prosa cheia de boscagens e balseiros, a este vivaz passarolo, não obstante a pretidão da jaleca. O assobio são, viril, descontraído de todo, coadunava-se com a escrita lavada, matinal e rija. Um melro de Peso da Régua meteu-se-lhe numa página de prosa soberba - e ainda hoje lá está a assobiar e a infundir-nos o júbilo das coisas naturais.
O melro é, de facto, uma ave salubre. Gosta de comer bem e de subir ao coreto, disposto a partituras que não tenham de ser interrompidas por ventre a dar horas. A sua hora favorita é ao quebrar da manhã, na luz e na frescura. Perde a inspiração com os calores e gosta de se acompanhar sempre com a sombra de ramada, com o docel arbustivo onde, enquanto muda a página, possa retemperar-se com alguma sanduíche de boa fêvera.
As suas manhas não são escuras. Todos as sabem, só que nem todos as põem em acção. Da mesma forma, os homens, quando apodam o vizinho de «melro de bico amarelo», não lhe atribuem vigarices singulares: sublinham apenas que esse tal vela por si, não dá ponto sem nó, nunca escorrega a um puro desprendimento, e é firma para dar ouvidos às paredes e olhos às trevas da meia-noite. Por isso, embora seja apodo um nadinha depreciativo, vai adubado de certa simpatia sorridente - e até a amigos nossos muito conhecidos o damos de quando em vez.
É que o egoísmo dos melros não é agressivo. O que eles não querem é sacrificar um bom almoço a idealismos desmiolados. Tocar música em jejum não lhes quadra, por mais amor que tenham à arte. Psicologia um tanto epicurista, mas não destoa muito da alma humana, porque isenta de crueldade. E até nos arrebata involuntária complacência.

(de O Livro dos Animais, Apostolado da Imprensa, 1982)

14.8.06

[para uma antologia de bicicletas - 10]

FERNANDO PINTO DO AMARAL


Onde estás, minha vida em câmara lenta,
janela toda aberta onde procuro
o vento, a luz da noite? Onde estarás,
melodia cantada a soluçar
numa cama de grades? Onde estás,
olhar dessas visões em sobressalto,
Casal da Bela Vista, velho pátio
ao som da bicicleta? Onde ficaste,
infinito terraço da Alameda,
varanda cor-de-rosa da Parede
com o sol a morrer sobre Cascais?
Onde estás, corredor de São FIlipe
praia do Monte Branco onde outro eu
se lançava da prancha? Onde estarão
os risos desses primos transparentes,
as lágrimas acesas transparentes,
as lágrimas acesas que brilhavam
como arco-íris de seda no meu rosto?
Onde ficou a última pergunta
em véspera de viagem? Onde estás
o mapa dessa alma que foi espuma,
o nó dessa garganta submersa?

(de Pena Suspensa, Dom Quixote, 2004)

10.8.06

ROSA ALICE BRANCO

DISSONÂNCIAS


O olhar não vê, se visse
da folha o mínimo detalhe era seiva e mão que acaricia
entre inúmeros corpos invisíveis
como dentes de água

o olhar não vê
por isso sou nome de árvore ou nome vegetal
na violência com que me olhas
de um centro vazio
ou do rubor imaculado da sombra
mas é com essa distância
que me aproximo das coisas
envoltas numa respiração verde

se visse, o olhar seria a perfeição
do imperfeito e doce
como vir do extremo de mim mesma
ou de uma linha que se estenda perto
e a harmonia fosse esse desajuste
que só se vê por dentro
olhos que se cerram contra os olhos
sem exterior.

(de Monadologia Breve, 1991)

9.8.06

JOSÉ JORGE LETRIA

COISAS DESMEDIDAS

De coisas desmedidas falo,
não de apocalipses nem de estrelas,
tão pouco do seu jogo mágico e incontrolável,
porque para tanto me não chega
o engenho das mãos nem a enganadora
sabedoria do olhar; estou como se estivesse
em estado precário perante as luzes
e a ilusão de espuma das marés

Os cânticos que me cercam
são os da água e do delírio das algas
rente aos segredos mansos da profundidade

Desmedido me torno a falar disto
e é assim que quero ficar

(de Corso e Partilha, Centro Cultural do Alto Minho, 1989)

8.8.06

Ah, e não esquecer também os poemas de Leopoldo Maria Panero que têm aparecido nos Dias Felizes, aparentemente também com tradução local da Cristina.
A ler (em tradução que calculo seja do próprio Luís) os poemas de Amalia Bautista, que estão a aparecer na Natureza do Mal (além de tudo o mais que por lá surge).

PEDRO SENA-LINO

[arte poética]

I.
o fundo avesso da pele
ritmo disperso das visões bebidas

o ponto inexpressivo do mistério
antes de sulcadas as costas da palavra
prosódia do cais ante o naufrágio

(há cordas que matam ao longo do corpo
e podem tanger os sortilégios brancos)


II.
as coisas pesam altura


III.
percorrer demais o ciclo quadrangular
e ver a encarnação do improvável


o espaço teclado de Deus

(tarde revelada além
Quando os lagos alunem)


Paço de Arcos, 6 de Junho de 1999


(de constelação dos antípodas, Litera Pura, 2000)

7.8.06

JOSÉ MATTOSO

(...)
Há quem pense que a investigação científica exclui a devoção e a piedade. Pela minha parte, nada me entusiasma mais do que descobrir alguém capaz de aliar a investigação objectiva, competente e metódica com a sensibilidade poética, o sentido do gratuito e do calor humano, o uso da intuição ou o encantamento pelas manifestações irracionais do homem. Custa-me admitir que tenha de se renunciar a uma coisa para ceder à outra. Não acredito numa efectiva descoberta do sentido do mundo e da vida, senão numa perspectiva de apreensão da totalidade, isto é, do dizível e do indizível, da claridade e das trevas, do crer e do saber, do ser e do estar, do viver e do morrer. Portanto, também do masculino e do feminino, do humano e do divino, do compreender e do rezar.
(...)

(excerto do texto Apresentação de uma Exposição, in Exposição Imagens de Nossa Senhora no Mosteiro dos Jerónimos, 1988)

4.8.06

MANUEL TEIXEIRA-GOMES

(...) De resto o estilo não é e talvez nunca fosse mais do que a tendência constante para a perfeição pessoal, a exclusiva maneira, rude ou elegante, de exprimir que satisfaça o escritor...; e quem nada tem que dizer também não tem estilo algum... Por isso eu nunca pregaria revoluções artísticas - tão conforme estou com todos os géneros, ainda os mais contraditórios ou heterodoxos, quando me sensibilizem, como se diz no já ferrugento chavão -, além de me parecer que pregar «estética» será pregar desesperadamente em deserto inóspito...; mas o assunto é encantador para íntimas palestras! E muito à puridade lhe direi quanto se me afigura condenável que as regras ponham estorvo ou apreço de qualquer talento... Cuido até que um talento pouco literário pode ser mais proveitoso à riqueza da língua do que o mais ponderoso e versado humanista. Não faltam exemplos históricos de línguas empobrecidas por excesso de claridade e ressecadas à inclemência dos preceitos infrangíveis, que necessitaram de muita «corrupção» para desferir na íntegra a gama dos meios-tons, onde a cor se conjuga ao sentimento, e, despegada a ideia da rigorosa propriedade dos termos, fermentaram em frases iriadas que, alargando a vida, sugerem sensações inefáveis... Em geral a «corrupção» não vai além dos alisados rebocos, e severas escaiolas mercê das quais os espíritos gregários sequiosos da disciplina grata à pânria ousaram mascarar as formas libérrimas, ou tentaram empecer os movimentos do organismo activíssimo que uma língua viva constitui...
(...)

(excerto de uma das cartas que servem de introdução a Agosto Azul, 1904)

3.8.06

MARTIM DE CASTRO DO RIO

Perdi-me dentro de mim como um deserto
Minha alma está metida em labirinto,
E posto em tal perigo, já me sinto
Cair noutro maior, nele encoberto.

Tenho o socorro longe, a morte perto,
Pois vivo do que temo e do que sinto,
Se alguém me quer valer não lho consinto
Por vir o que receio a ser mais certo.

Nova invenção do mal, novo tormento,
Ser cutelo da Vida a própria Vida
Ser desatino usar do pensamento:

Vingai-vos dor cruel, dor conhecida
Que o vosso pesar sei do entendimento
Que em grande dor, não há vida comprida.

(do Cancioneiro Fernandes Tomás, séc XVI, transcrito por Francisco de Sousa Neves, in Revista da Biblioteca Nacional, Julho - Dezembro de 1989)


MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim

(...)

(início do poema Dispersão, in Dispersão, 1914)

23.7.06

[em face dos últimos acontecimentos]

TROVANTE

Beirute


Quem recordará como foi
Duvido que ainda haja alguém de pé
Que tenha dançado ao som das noites quentes
De Beirute

Será que alguém chora um ausente
Já não há ninguém para ausentar
Já não há ninguém para soluçar
Em Beirute

Em Beirute
Nem o sol nasce
Em Beirute
Como merece
É mais quente que o ar do deserto
É mais escuro que um buraco aberto
Na memória de uma terra ainda morna
Que já não torna
A ser Beirute

Em Beirute há bares fantasma
Onde outrora o amor se acoitou
E a alegria andava lado a lado
Com Beirute

Na terra onde o calor é quem manda
Havia uma cidade que era assim
Dizia nessa altura mais para mim
Do que Beirute

Quando enfim a história virar
Num tempo de arqueólogos errantes
Veremos corpos e ruínas militantes
Por Beirute

Encontraremos gente tão velha
Que nem parece ser da nossa era
Beijaremos os filhos da guerra
E choraremos
Por Beirute

(do álbum Um destes dias, 1990 - Letra de Luís Represas / Música de João Gil)

20.7.06

[em face dos últimos acontecimentos]

ISRAEL ELIRAZ

A ALDEIA

2


Amontoa-se o meio-dia
sobre as folhas carnudas

uma abelha selvagem indica-te a estrada pulverosa.

Demoras-te, examinas as costuras
que estalam sob o impulso.

O verão devasta
o outro lado do verão.

O gavião leva um rato
para o minarete da mesquita

vai uma vaca
para o seu macho.

Passa um homem a vender histórias
que não vos fazem mais novos

(tradução de Pedro Tamen, a partir da versão francesa de Colette Salem, in Poesia no Porto Santo, DRAC, 2002)

18.7.06

[outros melros XXXIX]

EUGENIO MONTALE

AO MEU GRILO


Que diria o meu grilo
disse Gina observando o melro
que debica larvas e lagartas nos vasos
de flores da varanda e suja tudo.
Mas o mais engraçado é que o grilo eras tu
enquanto foste viva e poucos o sabiam.
Tu sem olhinhos de alfinete de que tenho
um duplo, um verdadeiro insecto de celulóide
com duas bolinhas que seriam os olhos,
dois pistilos e nos olha de uma cómoda.
Que diria o grilo de então do seu sósia
e do melro? É por causa dela que aqui estou
diz Gina e enxota com a vassoura o maroto do melro.
Depois sobem-se os primeiros taipais. E é dia.

(tradução de José Manuel de Vasconcelos, in Poesia, Assírio & Alvim, 2004 - original de Diário de 71 e 72, 1973)

15.7.06

PEDRO DA SILVEIRA

PEQUENO POEMA INFINITO


A mão sobre o mapa
não viaja,
interroga.
Mas chegar à luz dos teus olhos
é entrar no porto
o navio que deram por perdido.

(de Poemas Ausentes, edição O Mirante, 1999 - colecção Alma Nova)

12.7.06

[Quarta-feira, dia da Alegria]

JOÃO CANDEIAS


2


volvamos o olhar sobre a terra
onde se afaga a tepidez da carne e as lavras
se pede a alma do húmus em seu seio.
porque eu sei que de profundos sulcos
fica o rosto quando percorre arados na paisagem
e céus no infinito, pontos que arrastam
zodíacos de lama, rios de prata morta
peixes que passaram e forma vivos.
transcorrido o alcatrão onde morrem cães
pela madrugada da surpresa chegamos
ao lar de granito. séculos, séculos ternos
de água cultivando a sede

(de Voltei à casa pequena, editorial Diferença, 1999)

11.7.06

[depois de ver A Lula e a Baleia e pela memória de Syd Barret]

PINK FLOYD

Hey You


Hey you, out there in the cold
Getting lonely, getting old
Can you feel me
Hey you, standing in the aisle
With itchy feet and fading smile
Can you feel me
Hey you, don't help them to bury the light
Don't give in without a fight

Hey you, out there on your own
Sitting naked by the phone
Would you touch me
Hey you, with your ear against the wall
Waiting for someone to call out
Would you touch me
Hey you, would you help me to carry the stone
Open your heart, I'm coming home

But it was only fantasy
The wall was too high, as you can see
No matter how he tried he could not break free
And the worms ate into his brain

Hey you, out there on the road
Always doing what you're told
Can you help me
Hey you, out there beyond the wall
Breaking bottles in the hall
Can you help me
Hey you, don't tell me there's no hope at all
Together we stand, divided we fall

(do álbum The Wall, 1979)
GASTÃO CRUZ

METÁFORA


Escolho o silêncio assunto antigo para
falar deste domingo: descrevê-los
o silêncio o domingo será como
falar da escuridão e que metáfora
mais certa se as há certas, para a ínfima
luz própria metafórica do dia

A tua voz então vem como nave
a si mesma sulcar-se, na penumbra
tornando-se, não sei se mais igual
ou mais diversa do escuro sentido
do sentido, o tema interrompendo
do poema: o silêncio o domingo

(in Diversos 9 - Primavera de 2006)

10.7.06

retomada A Grolha
[para uma antologia de bicicletas - 9]

M. ANTÓNIO

(...) Ele que podia ter comprado uma bicicleta, caso tivesse feito economias (o dinheiro dos cigarros, o dinheiro com que ia ver futebol...). Mas, lembra-se, mesmo que as tivesse feito, inútil lhe teria sido o sacrifício, pois nunca conseguira equilibrar-se em duas rodas. Era mesmo um rapaz de pouca sorte... Desde a escola que tinha pouca sorte - e perante o «écran» das pálpebras corridas passam, iluminadas, imagens probatórias da sua pouca sorte...
Deixa-se estar de olhos fechados. Era um processo de pensar sem dificuldade. Assim, não se cansava. Por imagens, apareciam-lhe os pensamentos, desenvolviam-se e apontavam-lhe soluções. Sem ele se esforçar. Agora, aparecem rodas, a principio paradas e pequenas, que aumentam de tamanho e se põem em movimento. São rodas ágeis, elegantes, que se ligam (agora o vê) aos pares. São bicicletas, com rodas brilhantes, e faíscam. Têm pneus largos, vermelhos. Mas andam sozinhas como se tivessem cérebro e olhos, fazem curvas, contra-curvas, empinam-se como cavalos. Depois vão desaparecendo e só fica uma que aumenta de tamanho e - como nos filmes, quando um comboio, ou carro, ou bicicleta, se aproxima da plateia - sobre a qual se destaca um vulto que inicialmente vê inteiro e não reconhece, de que depois vê só meio-corpo, depois só até o rosto, o rosto em que Beto vê a sua cara, segura, radiante, sorrindo um sorriso igual ao que se desfaz quando abre os olhos, confuso, para os ladrilhos do chão. Levanta-se, faz o gesto de quem procura a pasta inexistente e, imóvel, percorre-lhe o espírito, ou o cérebro, ou o coração, ou o corpo, esta ideia, ou vibração, ou desejo, ou estremecimento: «- Se ao menos soubesse andar de bicicleta...»

(excerto de Crónica da Cidade Estranha, Agência-Geral do Ultramar, 1964 - colecção Unidade)

9.7.06

JOÃO CANDEIAS

este hemisfério

I


quando o homem se senta na sua
cadeira de para quê e escreve
uma labareda inunda de chamas
o apenas lume que parece.
e dentro delas há um corpo eros
que se derrama na efabulação do mito
de tanto ser e da verdade que parece.
pouco a pouco como as orbitas do tempo
se vão construindo os pesadelos sonoros:
algumas falas que de dia se insinuam
de noite fingem dormir atormentadas.
por isso minha avó não teve úlceras
duodenais nem flatos coronários.
ela não tinha a moral inventada
dos párias que agora a têm.
e eros dormia um sono de aguadas
azuis e telas francas.
no ventre um báratro mistério
esguio azougue e invasões de mel.
telhas que se desmoronavam e medravam
quando a ressurreição da fé perdida
gerou um pai que foi o meu


II

retomo o labirinto das adagas
de seu fio uma distância inerme;
como espelhos medem a errância
do gesto, enquanto a certeza divaga
se silaba numa fractura de segundos
destruídos.
passam à janela algumas hordas
límpidas de flâmulas coruscantes
e gritam o sangue cardeal das artérias
que dão o ponto norte e o pólo oposto

(de Ignição Ozone, espiral, 1984)

7.7.06

[outros melros XXXVIII]

JOSÉ CARDOSO PIRES

Alexandra tinha que ir. Regressar a Lisboa, ao seu gabinete, ao novo pessoal, novas reuniões. A mãe ouvia-a, recostada na cadeira, o braço estendido sobre a mesa. Nem uma palavra. Juntava migalhas, juntava-as como quem fazia paciências, e algures no pátio, no freixo certamente, cantava um melro. Alexandra lembrou-se de que os melros tinham uma fidelidade muito especial aos lugares, como lhe explicara em menina o tio Berlengas. Todos os anos havia um melro naquele freixo.

(excerto de Alexandra Alpha, 1987)

4.6.06

JORGE DE SENA

(...) cada vez mais acho a poesia uma coisa de especialistas... - nós não lemos tratados de medicina, vamos ao médico, quando precisamos. É esta exactamente uma das minhas angustiosas perplexidades, que, aliás, se resolve reconhecendo a legitimidade da poesia social, para "todos" (que a não lêem), e escrevendo uma outra que, teoricamente, diz mais profundamente respeito a todos (que igualmente a não lêem). Mas isto são contos largos.

(excerto da entrada relativa a 15 de Março de 1946, in Diários, edição de Mécia de Sena, Caixotim edições, 2004 - Obras Clássicas da Literatura Portuguesa / Século XX)

2.6.06

[para uma antologia de bicicletas - 8]

PAPINIANO CARLOS

OS CICLISTAS


A Vasco de Magalhães-Vilhena

Com um surdo rumor de escavadora
ressoa no subsolo a tua voz.
Muitos tapam os ouvidos delicados.
Outros escondem-se para não ouvir.
E outros estremecem de pavor.
Mas, rápidos, os ciclistas pedalam
na bruma dos subúrbios ao teu encontro.
Rosto baixo, mãos no guiador, pés
bem firmes nos pedais, geram
o movimento, o ritmo alado
das máquinas frágeis que cavalgam
ao amanhecer. Perpassam como espectros
sob a bruma e juntam-se, confluem,
avançam como um rio poderoso
sobre a cidade adormecida.
Os ciclistas. Os que erguem os andaimes
e fazem girar os fusos dos teares.
Os que movem as gruas. Os que transportam
o dinamite nas mãos calosas.
Os que não sabem envelhecer de tédio
à mesa do café nem vivem de mercadejar
preservativos, palavras, casas pré-fabricadas.
Os que não sonham morrer em glória
como jovens deuses trespassados na batalha.
Os que não hão-de apodrecer, como muitos
de nós, roídos de lepra e desespero.

Esses merecem bem a tua voz, Orfeu.

(de Os Ciclistas, in A Ave Sobre a Cidade, livraria Paisagem, 1973)

1.6.06

[poesia de crianças]

"A minha vida é uma memória"
(João Pedro Vitorino, 3 anos)

"A poesia é uma coisa que não é a mesma coisa mas é igual"
(Beatriz Antunes, 4 anos)

"O coração é uma bolinha pequenina que faz barulho"
(Ana Carolina Gargalo, 3 anos)

"Eu tenho letras
Que andam no meu nome"

(Jorge Nunes, 4 anos)

"O silêncio é um bocadinho de boca"
(Silvana Cravide, 2 anos)

"O amor é o dobro"
(João Cassola, 5 anos)

"Onde foi a luz quando apaga-se?"
(Mariana Dionísio, 2 anos)

"Os adultos, mal ouvem uma coisa que não gostam
ficam logo com a coisa que estava combinada
que já não é"

(Cláudia Inês Guerra, 4 anos)


(poemas citados por Miguel Somsen, no seu artigo de hoje na edição de Lisboa do jornal Metro)

31.5.06

[no dia do "não-fumador" adquiri os Papéis de Fumar, volume da poesia completa de um grande Autor]

VERGÍLIO ALBERTO VIEIRA

NAU PRETA

6


Porque nada parece querer dizer
O nada que alguma coisa sempre diz,
É que, chegada a hora de morrer,
Muito pouco foi tudo o que se quis.

Muito, não digo, o que havia a fazer,
Disse-o ele, aliás, com ar quase feliz,
E, acrescentou, enfim, pra se saber:
Fumar a vida eis o que, na vida, fiz!

Fumador, fumador por profissão
De tabaco d'enrolar, assim, sem pressa,
Comprado em quiosque de estação,

À mesa do café, antes que esqueça,
Tabaco louro que, por qualquer razão,
Fica em cinza nos dedos, isso qu'interessa!

(de A Arte de Perder, in Papéis de Fumar, editora Campo das Letras, 2006)
[quarta-feira, da Alegria]

NATÉRCIA FREIRE

TERRA


Da Verde rua parada
Ao verde campo das sombras
Vai pouco mais do que nada.

Vai uma lua redonda
Vai o silêncio da estrada.

Vai um perfume sem nome
De raízes e de terra
Da terra que é fome e come.

Do meu corpo sob a lua
Ao teu leito sob o vento
Vai um quadrante de amor
Sonolento...

Terra, terra que me queres...
Como os homens à mulheres...

(de A Segunda Imagem, 1969)

27.5.06

[para uma antologia de bicicletas - 7]

JORGE LISTOPAD

Teatro e bicicletas


Já se sabe o que vou dizer: os teatros em Praga estão cheios. Porém, alguma coisa nova. A maioria dos espectadores são jovens - excepto nos teatros nacionais e afins, e chegam de mochila às costas. E mais do que isso: de bicicleta. Nos pequenos teatros encontramos um espaço onde as bicicletas se repousam durante o espectáculo.
Aliás, a febre da bicicleta apanhou a cidade. Os meus amigos professores universitários vão de bicicleta para as aulas, e um querido amigo de literatura comparada fez-me um estudo comparado sobre andar de bicicleta em Roma, Paris e Praga.

(Segundo capítulo de Algumas vezes sobre qualquer coisa, in Jornal de Letras n.º 930, de 24 de Maio a 6 de Junho de 2006)

26.5.06

[mais um prémio para a poesia]

A. M. PIRES CABRAL

Não há poema


Não há poema que valha o oboé
oculto na voz desta cautelosa
ave ribeirinha
que vai monologando numa língua
que os poetas desconhecem

- mas se obstinam em arremedar.

(de Douro: Pizzicato e Chula, livros Cotovia, 2004)

25.5.06

[os animais que acompanham o melro de Stevens (aqui e aqui) no poema da entrada anterior]

HOMERO

(...)
E um cão, que ali jazia, arrebitou as orelhas.
Era Argos, o cão do infeliz Ulisses; o cão que ele próprio
criara, mas nunca dele tirou proveito, pois antes disso partiu
para a sagrada Ílion. Em dias passados, os mancebos tinham levado
o cão à caça, para perseguir cabras selvagens, veados e lebres.
Mas agora jazia e ninguém lhe ligava, pois o dono estava ausente:
jazia no esterco de mulas e bois, que se amontoava junto às portas,
até que o os servos de Ulisses o levassem como estrume para o campo.
Aí jazia o cão Argos, coberto das carraças dos cães.
Mas quando se apercebeu que Ulisses estava perto,
começou a abanar a cauda e baixou ambas as orelhas;
só que não tinha força para se aproximar do dono.
Então Ulisses olhou para o lado e limpou uma lágrima.
Escondendo-a discretamente de Eumeu, assim lhe disse:

"Eumeu, que coisa estranha que esse cão esteja aqui no esterco.
Pois é um lindo cão, embora eu não consiga perceber ao certo
se tem rapidez que condiga com o seu belo aspecto,
ou se será apenas um daqueles cães que aparecem às mesas,
que os príncipes alimentam somente pela sua figura."

Foi então, ó porqueiro Eumeu, que lhe deste esta resposta:
"É na verdade o cão de um homem que morreu.
Se ele tivesse o aspecto e as capacidades que tinha
quando deixou Ulisses, ao partir para Tróia,
admirar-te-ias logo com a sua rapidez e a sua força.
Não havia animal no bosque, que ele perseguisse,
que dele conseguisse fugir: e de faro era também excelente.
Mas está agora nesta desgraça: o dono morreu longe,
e as mulheres indiferentes não lhe dão quaisquer cuidados.
Pois os servos, quando os amos não lhes dão ordens,
não querem fazer o trabalho como deve ser:
Zeus que vê ao longe retira ao homem metade do seu valor
quando chega para ele o dia da sua escravização."

Assim dizendo, entrou no palácio bem construído
e foi logo juntar-se na sala aos orgulhosos pretendentes.
Mas Argos foi tomado pelo negro destino da morte,
depois que viu Ulisses, ao fim de vinte anos.

(excerto do canto XVII da Odisseia, tradução de Frederico Lourenço, livros Cotovia, 2003)


WILLIAM BLAKE

The Tiger


TIGER, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare seize the fire?

And what shoulder and what art
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand and what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? What dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spears,
And water'd heaven with their tears,
Did He smile His work to see?
Did He who made the lamb make thee?

Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?

[a propósito deste poema, aconselho o mais recente número (o 17, relativo a Outubro de 2005) da revista Relâmpago, da Fundação Luís Miguel Nava, onde se podem encontrar oito versões em português, devidamente comentadas por Manuel Portela]


D. H. LAWRENCE

Snake


A snake came to my water-trough
On a hot, hot day, and I in pyjamas for the heat,
To drink there.

In the deep, strange-scented shade of the great dark carob-tree
I came down the steps with my pitcher
And must wait, must stand and wait, for there he was at the trough before
me.

He reached down from a fissure in the earth-wall in the gloom
And trailed his yellow-brown slackness soft-bellied down, over the edge of
the stone trough
And rested his throat upon the stone bottom,
i o And where the water had dripped from the tap, in a small clearness,
He sipped with his straight mouth,
Softly drank through his straight gums, into his slack long body,
Silently.

Someone was before me at my water-trough,
And I, like a second comer, waiting.

He lifted his head from his drinking, as cattle do,
And looked at me vaguely, as drinking cattle do,
And flickered his two-forked tongue from his lips, and mused a moment,
And stooped and drank a little more,
Being earth-brown, earth-golden from the burning bowels of the earth
On the day of Sicilian July, with Etna smoking.
The voice of my education said to me
He must be killed,
For in Sicily the black, black snakes are innocent, the gold are venomous.

And voices in me said, If you were a man
You would take a stick and break him now, and finish him off.

But must I confess how I liked him,
How glad I was he had come like a guest in quiet, to drink at my water-trough
And depart peaceful, pacified, and thankless,
Into the burning bowels of this earth?

Was it cowardice, that I dared not kill him? Was it perversity, that I longed to talk to him? Was it humility, to feel so honoured?
I felt so honoured.

And yet those voices:
If you were not afraid, you would kill him!
And truly I was afraid, I was most afraid, But even so, honoured still more
That he should seek my hospitality
From out the dark door of the secret earth.

He drank enough
And lifted his head, dreamily, as one who has drunken,
And flickered his tongue like a forked night on the air, so black,
Seeming to lick his lips,
And looked around like a god, unseeing, into the air,
And slowly turned his head,
And slowly, very slowly, as if thrice adream,
Proceeded to draw his slow length curving round
And climb again the broken bank of my wall-face.

And as he put his head into that dreadful hole,
And as he slowly drew up, snake-easing his shoulders, and entered farther,
A sort of horror, a sort of protest against his withdrawing into that horrid black hole,
Deliberately going into the blackness, and slowly drawing himself after,
Overcame me now his back was turned.

I looked round, I put down my pitcher,
I picked up a clumsy log
And threw it at the water-trough with a clatter.

I think it did not hit him,
But suddenly that part of him that was left behind convulsed in undignified haste.
Writhed like lightning, and was gone
Into the black hole, the earth-lipped fissure in the wall-front,
At which, in the intense still noon, I stared with fascination.

And immediately I regretted it.
I thought how paltry, how vulgar, what a mean act!
I despised myself and the voices of my accursed human education.

And I thought of the albatross
And I wished he would come back, my snake.

For he seemed to me again like a king,
Like a king in exile, uncrowned in the underworld,
Now due to be crowned again.

And so, I missed my chance with one of the lords
Of life.
And I have something to expiate:
A pettiness.

Taormina, 1923


RAINER MARIA RILKE

A pantera


De percorrer as grades o seu olhar cansou-se
e não retém mais nada lá no fundo,
como se a jaula de mil barras fosse
e além das barras não houvesse mundo.

O andar elástico dos passos fortes dentro
da ínfima espiral assim traçada
é uma dança da força em torno ao centro
de uma grande vontade atordoada.

Mas por vezes a cortina da pupila
ergue-se sem ruído - e uma imagem então
vai pelos membros em tensão tranquila
até desvanecer no coração.

(tradução de Vasco Graça Moura, em apêndice a Os Sonetos a Orfeu, Quetzal editores, 1994)


ANTÓNIO OSÓRIO

CAVALO


Um dia chegará
que alguém se mostre
agradecido e diga:
- Entre
e coma à nossa mesa.

(de A Raiz Afectuosa, 1972)


JORGE DE SENA

(...) mas creio firmemente que, se há anjos-da-guarda, o meu tem asas verdes, e sabe, para consolar-me, nas horas mais amargas, os mais rudes palavrões dos sete mares.

(últimas palavras de Homenagem ao Papagaio Verde, in Os Grão-Capitães (contos), 1976)


[O Elogio da Calvície é uma obra do bispo Sinésio de Cirene, traduzido por Manuel João Gomes, Autor do Almanaque dos Espelhos, ambos editados pela & etc]
[outros melros XXXVII]

JORGE GOMES MIRANDA

OS SOLITÁRIOS

O primeiro que encontrei era rafeiro e amoral.
Cão, de belo corpo, tal o de Ulisses.

Um melro
íamos aos ninhos...
aguazil com o lusco-fusco
e amigo de Stevens.

O tigre de Blake, a cobra de Lawrence,
a pantera de Rilke, o cavalo indomável da banda desenhada
que não vinha ó António Osório
comer à nossa mesa.

O papagaio verde
de Sena cujas últimas palavras são oraculares.

Esse homem
(que já tem em cima da mesa-de-cabeceira O Elogio da Calvície)
fitando-me ao espelho
inquirindo sobre sonhos e desilusões.

(de Este Mundo, Sem Abrigo, Relógio d'Água editores, 2003)

24.5.06

[o Tim vai permitindo que seja dia da Terra da Alegria]

MARIA DE LOURDES BELCHIOR

ALEGRIA


Era à tarde... À flor da pele um arrepio
brisa suave na tarde distante
coalhadas sombras entre pinheirais,
perdidos, isolados, brancos os casais
alvejavam teimosos por entre as sombras
Iguais a quantos mais estes finais de
tarde virgilianamente evocados?
E no entanto, em cada fim de dia, ao cair da
tarde, cresce serena a morte, esgota o tempo:
sorve-o na noite e retoma-o no dia
Donde a melancolia do fim do dia?
Donde o medo obscuro do escuro da noite?
Terra, vento, lamento de quem? Imitação
ritual de ancestrais pesadelos. Agonia
de fim do dia. Donde a alegria?
Tudo sombra na noite? Do ventre na noite
nasce outra vez o dia. Donde a alegria?

(de Gramática do Mundo, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985 - Biblioteca de Autores Portugueses)

23.5.06

JORGE DE SENA

15/3/1946

Apressada é hoje a cultura de toda a gente, feita por intuições, saltos, curiosidades, e até necessidades de trabalho.

(in Diários, edição de Mécia de Sena, Caixotim edições, 2004)

22.5.06

Fascinados por algo muito mais profundo

Duas pessoas que muito admiro e que leio com gosto e atenção, António Marujo e José Agostinho Baptista, ganharam hoje prémios.
Dois casos, em áreas e modos distintos, de grande rigor na escrita.
[outros melros XXXVI]

FRANCISCO DUARTE MANGAS

O melro bico amarelo
na primavera subia ao alto
da cerejeira
e deixava escorrer um assobio
longínquo: uma bátega tépida
esborratava os campos lavrados

a meteorologia natural
está a chegar ao fim

(de Espécies cinegéticas, 1987)

21.5.06

RUI KNOPFLI

METODOLOGIA


Convoco os duendes da inquietação
e da alegria, urdindo um laborioso
rito circular, delicada teia iridiscente
de que, relutante, a luz se vá
pouco a pouco enamorando.

Palavras não as profiro
sem que antes as tenha encantado
de vagarosa ternura; mal esboçados,
gestos ou afagos, apenas me afloram
a hesitante extremidade dos dedos

que, aquáticos e transidos, estacam
no limiar surpreso do seu rosto.
Movimentos longos da tarde
e sussurros graves da noite
que tendessem para a imobilidade

e o silêncio, não seriam mais cautos
e aéreos. Quietas estátuas de cristal,
intensamente nos fitamos, enquanto
trémula, lenta e comburente,
a luz mais pura nos atravessa.

(de O Corpo de Atena, 1984)

20.5.06

RUI CARLOS SOUTO

DIFÍCIL REALIDADE


Sair ao encontro das árvores
É produzir refúgio
É reduzir tudo a encontrar
Coisas

Depois vemo-nos rodeados
Por janelas
Que não alcançam
Depois as ruas
Misturam-se com as palavras
E falam em monólogo
Com as folhas

É o fumo do tabaco
Perto ao sol
As bailarinas
Junto aos olhos
O movimento lento
Do tempo

Esgota-se o sonho
Até ao limite
Num equilíbrio mascarado
Ou na ilusão

É o cansaço que se bebe
Num certo fechar
De olhos
Certa forma inquieta
De despertar

(de Maneiras de Andar, Black Sun editores, 2001)

19.5.06

[para uma antologia de bicicletas - 5 e 6]

ALEXANDRE O'NEILL


Os outros pedais da bicicleta


Ninguém toma a sério a bicicleta como eventual substituto do automóvel na crise de energia que atravessamos, que nos atravessa. A bicicleta é resignação, fleuma, ginástica, infância revisitada, revivida (mais como sonho do que como prática), humor, euforia dominical de carolas que vão «pescar» a sua caldeirada a vinte ou trinta quilómetros da cidade. A bicicleta poderá ser a pedalada contestação dos amigos da Natureza. Para nós, os escravos do volante, ela não passa de mais uma ideia que nos faz sorrir. Nada substituirá, no nosso apreço, o automóvel. Nem no trabalho, nem no lazer. Por enquanto...
Mas a bicicleta tem outros pedais que não podemos ver. Movido pela necessidade, esse «tubular engonço», como em jeito barroco uma vez lhe chamei, desenrola quilómetros bem menos alegres do que as tiradas que nele sonhamos fazer.
A bicicleta pode ser o mundo às costas: serra de carpinteiro, caixa de ferramentas, cesto de padeiro. A bicicleta pode ser a cruz às costas. Para um renovado olhar sobre a bicicleta, aqui transcrevo, sem mais oitos, o «Apelo Angustiantes» que há anos, por ocasião das grandes cheias na região de Lisboa, apareceu nos jornais:
«O meu marido saiu de casa no dia 25 de Novembro para procurar trabalho no Carregado ou no Barreiro, levava: uma bicicleta a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro, vestia calças azuis de zuarte, camisa verde, blusão cinzento, tipo militar, e calçava botas de borracha e tinha chapéu cinzento e levava na bicicleta um saco com uma manta e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo e uma panela de esmalte azul. Como houve as inundações e não tive mais notícias, já estou alarmada e já espero o pior. Estou aflita, eu e os meus dois filhos.»

(in A Capital, 5 de Fevereiro 1974, compilado em Coração Acordeão, O Independente, 2004 - série Inéditos de Imprensa)


ELOGIO BARROCO DA BICICLETA

Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho que a seu tempo se desdobra,
reolhando os beirais - eu que era um teórico
do ar livre - e revendo o passarame à obra.

Avivento, contigo, o coração, já lânguido
das quatro soníferas redondas almofadas
sobre as quais me estangui e bocejei, num trânsito
de corpos em corrida, mas de almas paradas.

Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,
ó tubular engonço, ó vaca e andorinha,
ó menina travessa da escola fugida,
ó possuída brincadeira, ó querida filha,

dá-me as asas - trrrim! trrrim! - pra que eu possa traçar
no quotidiano asfalto um oito exemplar!

(de A Saca de Orelhas, 1979)

18.5.06

[outros melros XXXV]

TEOPHILE GAUTHIER

(...)
Se algum poeta madrugador tivesse passado pela Avenida Gabriel com os primeiros rubores da madrugada, teria escutado o rouxinol terminar os últimos trinados do seu canto nocturno, e visto o melro passear nas suas pantufas amarelas pelo jardim, como faria um pássaro que se sentisse em sua casa; mas, se tivesse passado à noite, depois de abafado o último rumor provocado pelas viaturas que regressavam da ópera, esse mesmo poeta teria podido vislumbrar uma sombra branca que dava o braço a um belo jovem; e o poeta teria regressado à sua mansarda, a alma mortalmente triste.
(...)

(excerto de Avatar, in Avatar e outros contos fantásticos, editorial Estampa, 1973)

15.5.06

ROBERTO JUARROZ

Toda a palavra chama outra palavra.
Toda a palavra é um íman verbal,
um pólo de atracção variável
que inaugura sempre novas constelações.

Uma palavra é toda a linguagem,
mas é também a fundação
de todas as transgressões da linguagem,
a base onde se afirma sempre uma antilinguagem.

Uma palavra é ainda o homem.
Duas palavras são já o abismo.
Uma palavra pode abrir uma porta.
Duas palavras fazem-na desaparecer.

(de Poesia Vertical, antologia e tradução de Arnaldo Saraiva, Campo das Letras editores, 1998 - Campo da Poesia)

14.5.06

JOSÉ TERRA

As palavras ferem-se no vento,
retraem-se no íntimo da concha.

As palavras, em hélice, padecem
a tortura do indeciso tempo.

Saltam da alma como peixes. Ficam
asfixiantes na aridez da praia.

As palavras batem contra o espelho
e evitam o rosto reflectido.

A etimologia emigra no silêncio.
As palavras resignam. É o reino

da esfinge, frio, imperturbável.
As palavras espantam-se no vento

do claro sol, da limpidez da água.
Os archeiros d'El-Rei pisam a noite

e exigem-lhe à entrada o passaporte.
O frio gládio alveja o peito

e as puríssimas vestes poisam, lentas.
Revistam-lhes as tranças e o sorriso

e, mesmo assim, a sentinela embarga
o limiar da linha alfandegária.

As palavras vestem o cilício
da conturbada hora em que nasceram

palpitantes, vívidas, certeiras.
As palavras à esquina do silêncio,

rastejam ao luar, sob a fronteira.

(de Canto Submerso, Portugália editora, 1956)

13.5.06

RUY CINATTI

A NOSSA SENHORA


Então, vida e tecla do visível
amparo dos mortais, ei-la, senhora
dos espaços siderais
e mãe na terra.

Cruzada pelas espadas
no coração - fruto sensível
que se mastiga com amor, com nojo -
adormece no sonho.

Gera mitos e lendas.
Conhece devaneios e surpresas:
mãos estendidas, joelhos
na pedra rija.

Vómitos de cera
honram-na em lágrimas
humedecendo faces
ou repentes de alegria.

Ei-la, portanto, senhora
nos espaços siderais
e na terra mãe
desamparada.

Seu olhar magoado
fere um intranquilo
raio de luz.

E entro no templo
onde milhares de mãos compadecidas
acendem círios.

Digo: Maria!
Ouço: Meu filho!

(de Corpo - Alma, editorial Presença, 1994 - colecção forma)

11.5.06

[os argumentos economicistas com que Raul Brandão responde a Francisco José Viegas]

RAUL BRANDÃO

Tive sempre a ideia que quem manda em todo o país é a mulher. Na lavoura, às vezes o bruto bate-lhe, mas é ela que o guia e lhe dá os mais atilados conselhos. E é ela em toda a parte que nos salva, parindo filhos sobre filhos para a emigração, para a desgraça e para a dor. Creio que só assim parindo e gemendo, tecendo e lavrando, mas principalmente parindo, é que se equilibra a nossa balança comercial, o que nos tem permitido viver como nação independente. Diz um amigo meu: - Portugal enquanto tiver a mulher e a sardinha, não morre. (...)

(excerto do capítulo Nazaré, de Os Pescadores, "edição definitiva", com texto fixado "a partir do exemplar de trabalho da 2ª edição (1924) que pertenceu a Raul Brandão", editorial Comunicação,1986)

27.4.06

SAMUEL BECKETT

CASCANDO


1

fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado

perguntando se não será melhor abortar que ser estéril

as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do que nunca

com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas


2

a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

palavras rançosas a resolver outra vez no coração
amor amor amor pancada de velha batedeira
pilando o sono inalterável
das palavras

aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir

eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem


3

a não ser que te amem

(tradução de Miguel Esteves Cardoso in As Escadas não têm Degraus 3, livros Cotovia - Março de 1990)
JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

19


vamos então falar de arvores antigas abrigos e
outros ventos. olá: diz-me o teu nome (se quiseres)
tenho dois ou três pensamentos (nunca mais que)
penso já em escrever o romance das brisas húmidas.

uma vez li um poeta que dava vida aos castelos
ensinou-me: pequenos cheiros à margem dos
sentidos não te prendas à noite (a visão mais
perfeita do mar é tomada do cimo das falésias).

queria agora acrescentar-me a ti mas (sabes?:)
faço destas linhas a eternidade algo assim
como o diálogo (nosso) entre o corpo e o riso

resta ficar dentro dos dias. é verdade: de que
me querias falar? perdoa mas a manhã está-se
a esgotar (não tenho tempo: a perder)

(de Há Violinos na Tribo, 1989)

25.4.06

NIKIAS SKAPINAKIS


Declacroix no 25 de Abril em Atenas, 1975
óleo Sobre Tela
235 cm x 145 cm
Galeria Fernando Santos

JOSÉ GOMES FERREIRA

XXVIII

(Comício.)

Tudo começa na boca
- ao princípio era o verbo -
combinação de palavras com o sangue.

Discursos, discursos, discursos...

Palavras com fogo ritual.

Palavras com mãos que empurram os homens,
abrem abismos,
estrangulam,
deitam chumbo derretido nas chagas,
magoam de existir.

Dêem-e palavras. Tomem palavras...
Palavras não faltam, já tão velhas que parecem novas,
recém-nascidas com as mesmas raízes
ignoradas.

É esse o milagre:
nascer todos os dias
nas bocas esquecidas
dos fios de prumo.

Palavras
- silêncio que agride,
os passos do fumo.

XXIX
(Grito «NÃO!» à revolução de flores de retórica.)

Revolução das flores?

Sim.
Mas não apenas para disfarçarmos com bandeiras de cravos
o pólen das Áfricas dos nossos lutos.

Queremos flores
que já tragam no ventre
o sabor dos frutos.

(de Maio-Abril / 1968-1975, in Poeta Militante, Viagem do Século Vinte em mim - III, 1978)

23.4.06

MIGUEL DE CERVANTES

[NA SEPULTURA DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA: EPITÁFIO COMPOSTO POR SANSÓN CARRASCO]


Jaz aqui o fidalgo forte
que a tal denodo chegou
que se descubra e se exorte
que a morte não triunfou
de sua vida com sua morte.

Teve o mundo inteiro em pouco;
foi o espantalho e o coco
do mundo, em tal conjuntura,
que abonou sua aventura
morrer cordo e viver louco.

(de Don Quijote, tradução de José Bento)


WILLIAM SHAKESPEARE

SONETO XV


Se considero quanto cresce vivo,
e atinge a perfeição só por instantes;
e que este imenso palco está cativo
de ocultos astros fortes e inconstantes;

se atento que Homem como planta aumenta,
do mesmo céu domado e guarnecido,
e que da seiva juvenil que o tenta
quando é mais forte é que será esvaído;

então o conceito deste incerto estado
mais rico em juventude em mim te cria,
ao ver que o Tempo a te mudar se há dado
em noite escura esse tão claro dia.

Com o Tempo em guerra por amor de ti,
o que el' te rouba, eu te reponho aqui

(tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 seculos)

22.4.06

[outros melros XXXIV - creio ser a este poema que se refere Mário de Carvalho no texto antes aqui publicado]

JEAN-BAPTISTE CLÉMENT

Le temps des cerises


Quand nous chanterons le temps des cerises,
Et gai rossignol, et merle moqueur
Seront tous en fête.
Les belles auront la folie en tête
Et les amoureux du soleil au coeur...
Quand nous chanterons le temps des cerises,
Sifflera bien mieux le merle moqueur

Mais il est bien court, le temps des cerises,
Où l'on s'en va deux cueillir en rêvant
Des pendants d'oreille !
Cerises d'amour aux robes pareilles,
Tombant sur la feuille en gouttes de sang.
Mais il est bien court le temps des cerises,
Pendants de corail qu'on cueille en rêvant!

Quand vous en serez au temps des cerises,
Si vous avez peur des chagrins d'amour,
Evitez les belles.
Moi qui ne crains pas les peines cruelles,
Je ne vivrai point sans souffrir un jour...
Quand vous en serez au temps des cerises,
Vous aurez aussi vos peines d'amour.

J'aimerai toujours le temps des cerises :
C'est de ce temps là que je garde au coeur
Une plaie ouverte.
Et dame Fortune, en m'étant offerte,
Ne pourra jamais fermer ma douleur...
J'aimerai toujours le temps des cerises
Et le souvenir que je garde au coeur.


O tempo das cerejas

Quando cantarmos no tempo das cerejas,
E o feliz rouxinol mais o melro gozão
Andarem em festa.
As formosas terão tolice na testa
E os namorados sol no coração...
Quando cantarmos no tempo das cerejas,
Assobiará melhor o melro gozão

Mas passa depressa, o tempo das cerejas,
Quando os namorados colhem, a sonhar,
Brincos de princesa!
Cerejas de amor de igual beleza,
Caem sobre as folhas, qual sangue a pingar.
Mas passa depressa, o tempo das cerejas,
Brincos de coral colhidos a sonhar!

Quando vos chegar o tempo das cerejas,
Se tiverdes medo das coitas d'amor,
Evitai formosas.
Mas eu que não temo penas dolorosas,
Não hei de perder um só dia de dor...
Quando vos chegar o tempo das cerejas,
Haveis de ter também vossas coitas d'amor.

Sempre adorarei o tempo das cerejas:
Guardo desse tempo no meu coração
Uma chaga aberta.
E mesmo a Fortuna, posta como oferta,
Jamais poderá tirar-me esta aflição...
Sempre adorarei o tempo das cerejas
E esta memória no meu coração.

(tradução minha)
MIGUEL DE UNAMUNO

VII


Cerré el libro que hablaba
de esencias, de existencias, de sustancias,
de accidentes y modos,
de causas y efectos,
de materia y de forma,
de conceptos e ideas,
de nóumeros, fenómenos,
cosas en sí y en otras, opiniones,
hipótesis, teorías...
Cerré el libro y abrióse
a mis ojos el mundo.
Transpuesto había el sol ya la colina;
en el cielo esmaltábanse los álamos
y nacían entre ellos las estrellas;
la luna enjalmaba el firmamento,
cuyo fulgor difuso
en las aguas del río se bañaba.
Y mirando a la luna, a la colina,
las estrellas, los álamos,
el río y el fulgor del firmamento
sentí la gran mentira
de esencias, de existencias, de sustancias,
de accidentes y modos,
de causas y de efectos,
de materia y de forma,
de conceptos e ideas,
de nóumenos, fenómenos,
cosas en sí y en otras, opiniones,
hipótesis, teorías;
esto es, palabras.

Sobre el libro cerrado
que yacía en la hierba
por la luna su pasta iluminada,
mas su interior a oscuras,
descansaba una rana
que iba rondando su nocturna ronda.
¡Oh, Kant, cuánto te admiro!

(de Rimas de dentro, 1923)


VII

Fechei o livro que falava
de essências, de existências, de substâncias
de acidentes e modos,
de causas e efeitos,
de matéria e de forma,
de conceitos e ideias
de númenos, fenómenos,
coisas em si e noutras, opiniões,
hipóteses, teorias...
Fechei o livro e abriu-se
a meus olhos o mundo.
Transposto tinha o sol já a colina;
no céu esmaltavam-se os álamos
e nasciam entre eles as estrelas;
a lua branqueava o firmamento,
cujo fulgor difuso
nas águas do rio se banhava.
E observando a lua, a colina,
as estrelas, os álamos,
o rio e o fulgor do firmamento
senti a grande mentira
de essências, de existências, de substâncias,
de acidentes e modos,
de causas e efeitos,
de matéria e de forma,
de conceitos e ideias
de númenos, fenómenos,
coisas em si e noutras, opiniões,
hipóteses, teorias;
isto é: palavras.

Sobre o livro fechado
que jazia sobre a erva
pela lua a sua capa iluminada,
mas seu interior às escuras,
descansava uma rã
que ia rondando na sua nocturna ronda.
Oh, Kant, quanto te admiro!

(tradução minha)

21.4.06

[500 anos depois - 6]

A propósito dos 500 anos do massacre de Lisboa, o meu amigo Ruy Ventura, "católico praticante", publicou no seu blogue, Estrada do Alicerce, um belíssimo poema dedicado a uma sua antepassada, condenada pela Inquisição ao uso do "odioso 'sambenito'", de seu nome Catarina Dias.
Agradeço ao Ruy a beleza do poema e a beleza do testemunho de, sem deixar de afirmar o que é, não renega a árvore genealógica, que para outros seria motivo de humilhação.
[500 anos depois - 5]

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

CEMITÉRIOS JUDEUS


Também eu tenho mortos sob
a praça e a rua da cidade
e quando me sento, pelo fim de
uma tarde, no conforto dos pesados
bancos de madeira
das igrejas mais antigas
repouso sobre os corpos mortos que
talvez tenham sido lugar de vida. Então
eles também me pertencem e os lábios
como podem dizer palavra de
oração?

E estando vivo o meu pai já não o tenho
porque perdeu o meu nome.

O amarelo, a cor da alegria, junto a
um rosto que se vai esquecer.

Nem os meus sonhos são de um amante
forte. (Resposta a Yehuda Amikai.)

(de Bellis Azorica, Relógio d'Água, 1999)

20.4.06

[500 anos depois - 4]

MÁRIO RUI DE OLIVEIRA

JERUSALÉM


Também assim os versos
caem perto do que esquecemos e arrastam
a mil anos de distância
esta espécie de uivo
este grito de veludo escondido em nós
desde que os glaciares derreteram

nossas mãos
assemelham-se tanto a cidades destruídas

Jerusalém, meu coração

(de Bairro Judaico, Assírio & Alvim, 2003)