M. ANTÓNIO
(...) Ele que podia ter comprado uma bicicleta, caso tivesse feito economias (o dinheiro dos cigarros, o dinheiro com que ia ver futebol...). Mas, lembra-se, mesmo que as tivesse feito, inútil lhe teria sido o sacrifício, pois nunca conseguira equilibrar-se em duas rodas. Era mesmo um rapaz de pouca sorte... Desde a escola que tinha pouca sorte - e perante o «écran» das pálpebras corridas passam, iluminadas, imagens probatórias da sua pouca sorte...
Deixa-se estar de olhos fechados. Era um processo de pensar sem dificuldade. Assim, não se cansava. Por imagens, apareciam-lhe os pensamentos, desenvolviam-se e apontavam-lhe soluções. Sem ele se esforçar. Agora, aparecem rodas, a principio paradas e pequenas, que aumentam de tamanho e se põem em movimento. São rodas ágeis, elegantes, que se ligam (agora o vê) aos pares. São bicicletas, com rodas brilhantes, e faíscam. Têm pneus largos, vermelhos. Mas andam sozinhas como se tivessem cérebro e olhos, fazem curvas, contra-curvas, empinam-se como cavalos. Depois vão desaparecendo e só fica uma que aumenta de tamanho e - como nos filmes, quando um comboio, ou carro, ou bicicleta, se aproxima da plateia - sobre a qual se destaca um vulto que inicialmente vê inteiro e não reconhece, de que depois vê só meio-corpo, depois só até o rosto, o rosto em que Beto vê a sua cara, segura, radiante, sorrindo um sorriso igual ao que se desfaz quando abre os olhos, confuso, para os ladrilhos do chão. Levanta-se, faz o gesto de quem procura a pasta inexistente e, imóvel, percorre-lhe o espírito, ou o cérebro, ou o coração, ou o corpo, esta ideia, ou vibração, ou desejo, ou estremecimento: «- Se ao menos soubesse andar de bicicleta...»
(excerto de Crónica da Cidade Estranha, Agência-Geral do Ultramar, 1964 - colecção Unidade)
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