ANTÓNIO RAMOS ROSA
Exigir que a obra de arte tenha uma regulação perfeitamente lógica, resulta do equívoco de confundir dois níveis sucessivos, mas diferentes, do intelecto, o qual não pode ser apenas limitado à sua actividade porventura mais pura, mas também mais convencional: a do discurso lógico e racional. Na poesia e na arte clássicas, a intuição criadora submetia-se a uma organização lógica que não as impedia, efectivamente, de atingir a realidade poética através da combinação das qualidades sensíveis que, quer a poesia, quer qualquer forma de arte, põem em jogo. Todavia, essa superestrutura lógica interpunha-se como um obstáculo ao livre desenvolvimento da imaginação e da emoção criadoras. Na poesia e na arte modernas, o processus criador liberta-se completamente da regulação lógica, desenrolando-se através de estruturas próprias, que se organizam não-racionalmente em ordem a uma nova realidade que se torna, assim, fruto mais directo e mais fiel da inicial intuição criadora. O facto de não haver regulação lógica não destitui a obra de uma estrutura coerente, nem de uma significação própria: pelo contrário, a sua estrutura e significação ganharam um grau de pureza e densidade específicas, que são a resultante inevitável da evolução histórica dos processos artísticos.
De tudo isto se conclui a necessidade de revisão do conceito de poesia e de obra de arte, que já não podam aferir-se pelos critérios do passado. As relações entre obra de arte e espectador sofreram já uma alteração substancial. O conceito de obra «aberta» implica uma nova comparticipação do consumidor estético. A uma poética do unívoco, que corresponde a um mundo estático, sucede-se uma poética de polivalência e ambiguidade, onde tudo é movimento. Mas tal processo não se iniciou sequer no século passado: é um processo que remonta à perspectiva dinâmica que nos oferece a arte barroca, como acentua Umberto Eco. É a partir daí que as poéticas «tendem a promover estas atitudes de invenção criadora do homem novo, que já não vê na obra de arte um objecto de pura dilecção estética, fundado em relações explícitas, mas um mistério a penetrar, um fim a atingir, um apelo permanente à imaginação». Através de uma criação livre, o artista continua a procurar e a descobrir a sua unidade com o universo, de que comparticipa numa aventura sem fim.»
(excerto de «O Poema, sua Génese e Significação», in Poesia Liberdade Livre, 2ª edição: Ulmeiro, 1986 - artigo publicado originalmente em 1960)