22.9.13

GABRIELA MISTRAL


UMA PALAVRA

Eu tenho uma palavra na garganta
e não a solto, não me livro dela
mesmo com todo o empurrão do sangue
Se a libertasse, queimaria pastos,
sangraria cordeiros, cairiam pássaros.

Eu devo desprendê-la desta língua,
encontrar um buraco de castores,
sepultá-la com cal e argamassa
pra que não guarde como a alma o voo.

Não quero dar sinais de que estou viva
enquanto circular pelo meu sangue
e suba e desça no meu louco fôlego.
Embora o meu pai Job, ardendo, a tenha dito,
não quero dar-lhe a minha pobre boca
para que não a encontrem as mulheres
que vão ao rio, se prenda às suas tranças
ou se enrede no pobre matagal.

Violentas sementes vou lançar-lhe,
pra que uma noite a cubram e a afoguem
sem deixar dela o rasto de uma sílaba.
Ou destruí-la assim, tal como a víbora
se parte em dois pedaços entre os dentes.

E regressar a casa, entrar, dormir,
já isolada, separada dela,
e acordar depois de dois mil dias,
recém-nascida em sono e esquecimento.

Sem saber, ah!, que tive uma palavra
feita de iodo e alúmen entre os lábios,
nem poder recordar-me de uma noite,
de uma morada num país alheio,
da cilada ou relâmpago na porta,
a minha carne a andar sem sua alma.


(in Antologia Poética, selecção, tradução e apresentação de Fernando Pinto do Amaral, Teorema, 2002 - original de Lagar, 1954)

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