31.1.04

E. E. CUMMINGS

41

up into the silence the green
silence with a white earth in it

you will(kiss me)go

out into the morning the young
morning with warm world in it

(kiss me)you will go

on into the sunlight the fine
sunlight with a firm day in it

you will go(kiss me

down into your memory and
a memory and memory

i)kiss me(will go)


(de 50 Poems, 1940)


41

subir ao silêncio o verde
silêncio com uma terra branca

tu(beija-me)vais

sair pela manhã a jovem
manhã com o quente mundo nela

(beija-me)tu vais

entrar na luz do sol a bela
luz do sol com um firme dia nela

tu vais(beija-me

descendo à tua memória e
uma memória e memória

eu)beija-me(irei)

(tradução minha)

29.1.04

NORONHA DA COSTA

O meu trabalho paciente, pior ou melhor, não tem sido senão e só esse: uma tentativa de peneiramento da imagem, um decantamento dentro do meu encanto da imagem, até porventura poder aproximar-me, com maior ou menor felicidade daquilo que João Sousa Monteiro [...] chamará a «solidão absoluta da imagem». Talvez, se isto tiver alguma consistência, e se se entender que o pensar-se da imagem é ainda a forma última do pensar, entendido ocidentalmente como ver (ter à nossa frente), então, talvez a fuga em frente não seja a única possível, e que as fugas laterais, que nos não levam felizmente a nada, também ainda tenham (ou devam ter) o direito de existir.

(excerto de um texto incluído em Noronha da Costa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982 - série catálogos)
A exposição Noronha da Costa Revisitado (1965-1983) está no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, até ao dia 19 de Fevereiro.


JOÃO SOUSA MONTEIRO

Em Noronha da Costa, porém, a estudada indefinição das formas não é obtida por desfocagem, mas por difusão. Noronha da Costa não perturba a visão clara dos objectos recorrendo a um «filtro» que entreponha entre o observador e o objecto representado. Ele torna deliberadamente difusa a própria percepção do representado para poder, à causa da sua destruição, construir aquilo em que inteiramente se concentra: a imagem. Monet pinta os efeitos de luz sobre os objectos. Está fixado num ponto único: a representação visual do tempo, traduzida na linguagem da experiência sensível através da mutação contínua dos efeitos de luz sobre eles. Noronha da Costa, pelo contrário, não pinta o objecto, nem nenhuma sua particularidade representável: pinta a outra vertente, ainda largamente inexplorada, da história da pintura, aquela que se ocupa da força abstracta da imagem. Apesar destas diferenças essenciais quer nos propósitos, quer nos meios, quase toda a pintura de Noronha da Costa continuamente trai - e continuamente esconde - uma profunda cumplicidade com Claude Monet. Em quase todas as suas telas se pressente, com uma clareza por vezes tocante, uma amizade silenciosa e um respeito profundo por esse genial pintor do Tempo.

(excerto de um texto incluído em Noronha da Costa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982 - série catálogos)
Há que perpetuar a normalidade,
abandonar o sinal excêntrico,
o volume da noite.

Os dedos têm nomes vulneráveis, pedras,
restos de poemas e sombras curtas.

28.1.04

VASCO GRAÇA MOURA

giraldomachia


que limites para o conhecimento de si mesmo
e a própria experiência do mundo? é costume
reflectir, usar o espelho, começar elas feições
investigar o seu significado melancólico,

entre a ambição e amargura e alguma vaidade
de chegar ao mundo a partir do nosso olhar
sobre o que somos e não somos. são questões
de profundidade de campo, de abertura objectiva,

de luz dos olhos que, diz o sermão da montanha,
são a candeia da alma, num relance intrigado
ou no relâmpago do flash mental. mental. coisa mental
é o retrato, sempre. nesse momento quem se

representa, fá-lo por vezes como não se vê,
mas se entende mais fundo
e tenta comunicá-lo desesperadamente
a outros que se propõem o mesmo exercício.

voyeurs, voyeurs somos nós todos desde pequenos,
logo a partir das sombras da memória. vejamos: giraldo-
machia
é o combate de gérard consigo mesmo, a procura
do que está para lá da sua cara. no que viveu e viu,

no que aprendeu e ainda não sabe de todo, no que o
vai transformando: a forma, o mundo,
iluminações e raivas, emoções, fantasmas. nunca-se. sempra-se.
quanda-se. assim todo o retrato é o movimento

da sua fixidez, dos seus limites. ondula, desfigura,
transporta e ironiza. vai a banhos e revela-se:
onde há nariz queixo e testa e boca e olhos, tudo se
desloca em tempo e espaço, aquém e além do espelho.

onde a cara se move porque a mão
assim marcou as órbitas,
no silêncio total em que a identidade se perscruta
o eu se desregula.

(de Giraldomachias, onze poemas e um labirinto sobre imagens de Gérard Castello-Lopes, Quetzal e Casa Fernando Pessoa, 1999)
Está no Centro Cultural de Belém, até 25 de Abril, a exposição Oui Non, a primeira retrospectiva da obra de Gérard Castello-Lopes, um fotógrafo.
Gérard Castello-Lopes

Rumor discreto em sais de prata ardidos -
uns mais, outros menos, conforme a luz.

Olhos que repousam abertos ao dia.

27.1.04

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

TRÊS ÍCONES

I.


O custo das casas por incrível que pareça
sugere a possibilidade de uma outra vida
a alma não mora debaixo do seu tempo
traz de tão longe a fragrância
de uma vegetação que cresce

Mais abaixo junto à represa
um trecho de sombra
o pinheiro que a estação tornou amarelo uma última vez
ao rumor dos caçadores, a corrida atrapalhada da perdiz

nas vagas recordações
a orla de uma alegria que ninguém viu

Só os insignificantes flutuam
ao vento contínuo de Deus


II.

E depois quem pode ainda dizer
que a percepção é o saber absoluto?
Ulisses regressa a uma terra misteriosa
do passado traz apenas uma ferida
e o corpo ferido dilata do horizonte
infinitas sugestões

A inocência é uma fonte feroz
minuciosa e lúcida até à impiedade
ninguém disse ainda como ela
imprevistamente nos volta
para as imagens mais remotas
de Deus

Giorgio Armani tinha declarado
a um jornal inglês: «o luxo desagrada-me,
é anti-democrático.
Quero agora homenagear os operários de todo o mundo».
E eu só pensava em São João da Cruz
enquanto ouvia por repetida vez
«a moda substituiu o luxo
pela elegância»

João da Cruz desataria a falar
de coroas, resplendores, casulas
véus de seda, relicários de ouro e
diamantes

Para lá do jogo das nossas defesas
qualquer coisa interior
reivindica a intensa solidão
das tempestades, dos campos alagados,
dos sítios sem resposta

O teu silêncio, ó Deus, altera por completo os espaços


III.

A vastidão avança por aquilo de que falamos
a sua beleza evoca ao de leve (sempre ao de leve)
o que o tempo nos aconselha
com mensagens que parecem sem sentido
um telefone que toca apenas uma vez
os faróis deixados acesos ao entardecer
aquelas falhas de memória que nos perturbam
pois não são falhas apenas

Talvez a completa escuridão nunca tenha existido
Talvez nos momentos decisivos
regresse por alguma passagem o desconhecido

Um milhão de cintilantes lanternas de papel
sobre o rio
mas a alma repete a sua pergunta eterna

(in As Formas do Espírito - Arte Sacra da Diocese de Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2003 - tomo I, estudos e primeira parte do catálogo)
As formas do Espírito é a exposição que está até Abril no Palácio da Ajuda, em Lisboa. É composta por obras de arte sacra vindas da diocese de Beja. Obras que refletem a variedade de manifestações da religiosidade cristã ao longo dos séculos naquela zona do Alentejo: a arte mais popular convive com a mais "erudita"; a simplicidade e o fausto harmonizam-se para o culto religioso; os vestígios de simbologias "estranhas" deixam perceber que as influências do islão, e também do judaísmo, foram (são?) mais do que meros pormenores etnográficos num espaço cultural que soube manter, apesar da dureza dos tempos, muito das suas raízes mais profundas.

*

De salientar, a propósito, o excelente trabalho, desenvolvido ao longo de vários anos, pelo Departamento do Património Histórico-Artístico da Diocese de Beja, de que esta exposição, em colaboração com o IPPAR, e que já passou por Roma, é apenas um bom exemplo.
No Domingo passado visitei várias exposições: a que está no Palácio da Ajuda e as do Centro Cultural de Belém. Hoje e nos próximos dias tentarei dizer alguma coisa sobre elas.
O lugar-comum

Recebi uma mensagem no correio electrónico considerando "despropositada e absurda" a publicação no dia de ontem daquele poema de Alexandre O'Neill.

[Antes de mais, acho estranho que alguém canalize aqueles dois adjectivos para um poema, num dia em que foi dito tanto de despropositado e absurdo.]

Não concordo com o meu visitante. Daquele poema só consigo dizer que é cruel.

E se há coisa que admiro e respeito em Alexandre O'Neill é o seu sentido profundo da crueldade.

26.1.04

tal como a Sandra, também eu

não*
sei
escrever
sobre
a morte
dos
outros.
Questão pertinente de Carlos Vaz Marques:

estaremos, hoje, preparados para não ver[?]
ALEXANDRE O'NEILL

A MORTE, ESSE LUGAR-COMUM...


É trivial a morte e há muito sabe
fazer – e muito a tempo! – o trivial.
Se não fui eu quem veio no jornal,
foi uma tosse a menos na cidade...

A caminho do verme, uma beldade
– não dirias assim, Gomes Leal? –
vai ser coberta pela mesma cal
que tapa a mais imensa fealdade.

Um crocitar de corvo fica bem
neste anúncio de morte para alguém
que não vê n'alheia sorte a própria sorte...

Mas por que não dizer, com maior nojo,
que o menino saiu do imenso bojo
de sua mãe, para esperar a morte?...

(de Abandono Vigiado, 1960)

25.1.04

Na conclusão da semana de oração pela unidade dos cristãos, apenas um pequeno cântico da Comunidade de Taizé:

Na nossa escuridão
acende, Senhor,
a tua luz de amor.