24.7.16

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


CRIPTOPÓRTICO

Quem pudera viver sempre pelos dias do
verão, quando o mar é a pele que sentimos
e o sol fica a amassar a erva dos caminhos
nas lojas, nos corredores sob o chão de
Aeminium, sob a vaga luz de uma lucerna
— o âmbar do azeite — o pão escuro,
a doce tâmara, uma cesta de sal, as cores
vesperando de tapetes esperam o repouso, a
conversa, notícia do Império — Caracala
manda assassinar Gela, seu irmão — a
um canto o vendedor de cerâmica de verniz
vermelho e figuras
sob outro alvéolo, os que se dispunham a
celebrar sacrifícios, danças, péan por um
deus por um herói. A água corria das
ânforas, pérolas frias, semelhantes ao gelo
e o vinho, uvas esmagadas deixavam nos
lábios um sabor doce, acidulado de sombras
— as essências ardiam nos turíbulos —
eram vagos, então aqueles que passavam na
cripta, entre um e outro piso. Hoje,
quando regresso ao calor ténue dessa luz
coada, a vida, não mais essa outra vida que
não tenho já, mas que terá sido a tristeza e a
alegria com as quais agradei e frustrei o
génio que me foi dado outrora — também
hoje chegará um verão pelo som dos passos
da ligeira sandália e se fundeará na aeternitas
imperii

* Alicerce do fórum romano. C. 40-50 d. C.


E DE REPENTE IRROMPE A RUA

E de repente irrompe a rua da cidade
aquela que se chama do Cabido
a de S. Salvador, com o
pequeno largo — vejo-as do extenso
vidro da janela. Na igreja escreveram
zona antifascista
um pouco mais abaixo, a roxo, praxe
sedativo n.º 1 em Coimbra

duas vizinhas descem para a Rua do Loureiro, se
acaso nestas ruas ainda vive alguém
num andar esconso, no desvão dos cafés manhosos —
nas mesas cai a dama de espadas
a juventude regressa noite fora — entre
uma porta e uma janela cega
passeia-se o desenho de um gato preto
líquenes nos beirais, a culpa venial
de mais um dia que passa, denso, varrido por clareira
de rogos. E

se nos virarmos
o grande teatro da Capela do Tesoureiro
à nossa espera
como se estivéssemos em tribuna eleita
bem em frente a imagem de Fortuna, festão de pedra.

Vai o olhar pela rua que foi dos açougueiros. Estreitos
quintais entre muros, ancoradouro de laranjas
o casario estremece nos versos de António Nobre
transporta carta selada
leva escrita a distinção entre a morte e o acto de viver.
Na outra margem o que resta de olival e de bosque.


(de Mirleos, Relógio d'Água, 2015)