11.6.11

MANUEL POPPE


O HOMEM QUE PERDEU A FALA


Começou a sentir-se aflito e disse a um amigo:
— Não sei falar.
O amigo respondeu-lhe:
— Estás a falar.
— Isso é o que tu julgas!... Se eu quiser dizer hoje, digo amanhã.
— Estás a dizer hoje!
— E se eu não souber?
Engasgou-se e titubeou, encarnado:
— Sábado... Quinta-feira...Cães... Galinhas!
O amigo riu-se.
— Estás a gozar? Diz lá as coisas como devem ser...
— Palácios...
O amigo condescendeu:
— O.K. Palácios!...
E virou-lhe as costas.
A verdade é que ele deixara de saber falar. As palavras saíam-lhe desgarradas. E foi nesse momento que começou o problema porque gostava de falar com as pessoas. Tentava, mas não podia: já não tinha língua. Esforçava-se e não conseguia.
Foi a um médico que lhe disse:
— O senhor perdeu o uso das cordas vocais.
E repôs os aparelhos no sítio.
— E agora? — acenou.
— Posso operá-lo. Mas não garanto.
— O quê? — acenou ele outra vez.
— Que fale. O senhor perdeu a fala.
Levantou-se da cadeira e agarrou num papel, desenhou um caranguejo.
— Talvez — disse o médico —, uma doença grave.
Fugiu: não queria ser operado.
A vida voltou e custou-lhe muito. Ouvia os outros e não respondia. Eles procuravam-no e ele não era capaz. Tocava-lhes, dançava para que gostassem, mas não conseguia falar. E os outros acabavam por se ir embora. Via os corpos, a afastarem-se, queria-os, mas, sem língua, não chegava ao pé deles, não os prendia, não os abria. Corpos esplêndidos; corpos, pensava, que estavam à espera de quem soubesse oferecer-se-lhes, de quem lhes desse o que queriam. Pensava também que os compreendia melhor do que ninguém. Mas, faltava-lhe a voz.
Um dia meteu uma pedra na boca. Chegou à noite desfeito e na mesma.
"A culpa é minha? O que é que aconteceu? Que mal fiz eu a Deus? Isto não tem remédio?" E veio-lhe vontade de chorar.
Gostava das pessoas. Eram bonitas. Ai!, se não lhe tivessem roubado a voz! Porque ele, dantes, falava! Era um homem interessante! Agora, nem pio. Caretas, gestos. Uma dor, do lado esquerdo. E a troça e a indiferença dos outros. Ou as duas.
— Fala! — gritou-lhe um amigo.
— Não sei... — respondeu-lhe, mudo.
E continuou a passar gente.
— Anda! — disse-lhe uma.
E insistiu:
— Anda!
Não foi... Ficou parado no meio da rua.
— Olha o carro!
Já era tarde.


(de Um Inverno em Marraquexe, Teorema, 20)

8.6.11

A muita gente não terá ocorrido que a escherichia coli tem um papel importante na obra de um dos maiores poetas portugueses do século XX, o que deve ser caso único na literatura europeia.» - Vasco Graça Moura, Diário de Notícias, 8 de Junho de 2011]

VITORINO NEMÉSIO


ESCHERICHIA


Funérea Beatriz de mão gelada
Mas única Beatriz consoladora.
_____________Antero de Quental, SONETOS.
Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de...
______Álvaro de Campos, Soneto já Antigo.

I

Mandei fazer o electrocardiograma
À minha «Beatriz de mão gelada»:
Mas fui eu, fui eu só que fui à cama,
Eu, claro! não Beatriz, nem Dante, eu nada!

«Mas única Beatriz consoladora»
Então não era a Morte reservada
A quem tem coração pela vida fora
E por ele sobe em hélice aminada?

Em gráfico de sismo a sina veio
Nessa foto cardíaca: — «Receio
Que morra, Daisy!» Não: «Que morra, Dolly!»

Pois eu não sou o Fernando Pessoa
Ou Antero, nem em inglês seu nome soa,
Que minha Musa é Escherichia Coli.

II

Escherichia ou Beatriz, que importa o nome
Se ambos me soam igualmente belos?
A prometida morte nos consome
Como flor prometida nos carpelos.

Assim tu, Escherichia, és meu tormento
E nocturno tremor, Beatriz funérea!
Quem nasceu para casto fingimento
Afinal pode amar uma bactéria.

III

Pego em Escherichia ao colo,
Musa micrónica, etérea,
Mas não já de éter sulfúrico
Senão feminil bactéria.
Por ela todo estremeço
Em suor e ácido úrico!


TUBO DE ENSAIO

Árvores do Canadá, uma por uma,
A caminho de Otawa, de autocarro,
Propõem seus galhos hibernais ainda
À minha angústia já primaveril.
Com tão pouca matéria a fotossíntese,
Que oxigénio de amor espero eu delas,
Com que carbono as poderei amar?
Porque, enfim, eu morrendo dou-me aos bosques,
A tal selva de Dante é a dor da espécie,
E o mezzo dei camin aqui passar.
Só é estranho que fracos pensamentos
Eu verta nestes tubos de ensaiar:
Eu, que, por causa de Escherichia Coli,
Quase não sei (como se diz?) — meiar...
A Poesia é um louco laboratório,
E eu dispo a bata para não chorar.

11 de Maio de 1971.


MICRO-MORAL

No Julho sossegado dos charcos
Um anúrio respinga,
Mas outro é o visco elástico:
Uma ideia, um remorso.
O que o poeta pensa ou sente é que arfa em alvo:
E, de Esopo a Galvani,
Como uma ancila a rã se serve à mesa do homem.

Oh, dócil sujeição dos bichos,
Nossos irmãos moleculares,
Imolando nas aras centrifugadas vida,
Dando o pobre corpinho ao manifesto da Certeza
Que, se não consola a alma,
Ao menos explica e previne:
À santa mesa da Preparação
O pombo traz seu músculo,
O cachalote a fibra,
O ratinho o seu fígado,
O cavalo sua heme,
Cada qual como mãe que ao filhinho amamenta.

Quanto a Escherichia, casta musa, a entranha aos vírus coxos
Cede por nosso amor, maternal, e rebenta.

14 de Julho de 1971.


(de Limite de Idade, 1972)