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1.1.15

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


EPICÉDICA

Liso é o choro do passado
Concreta a voz que esconde o dia de hoje
(O travo seu agora foge
Escuso na sombra do grito adiado).

Perdeu-se o gesto da tragédia
Liso é o choro do passado...



(de Odes Pedestres, editora Ulisseia, 1965)

9.2.14

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


O que me interessa — o que julgo interessa à poesia — é a realidade total. Por isso me julgo tão científico como metafísico; por isso me sinto, sempre e a cada momento, ao mesmo tempo, em cada um dos três estados da velha e eterna lei positiva de Augusto Comte. Quem não compreender isto não compreenderá nada da minha poesia — o que não terá importância de maior—; mas também pouco entenderá de Poesia, o que é certamente um mal, o terrível mal que poderia implicar a total danação da humanidade: o não poder nunca vir a encarar o total real e o aceitar dessa contemplação e acção como a sua inultrapassável dignidade no plano do criado.


(palavras finais da «Auto-Poética (a pedido)», que precede Odes Pedestres, editora Ulisseia, 1965)

8.6.13


JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


As coisas são para que sejam não para
que as escrevamos As palavras são pa-
ra serem ditas Não para que as escre-
vamos Se escrevemos é para dizer o que
as palavras não são
De aqui a construção de todas as artes
poéticas que se fazem com poemas e não
com palavras Como os tijolos nas casas
Mas as casas não são tijolos, pedras ou
cimento
Os poemas têm dentro vidas — não uma
só vida e as palavras são a caixa, o
frasco, a lata O invólucro que se dei-
ta fora após o consumo do produto Esse
é que é o poema que se consome Ainda
que fiquem registados Como as fotogra-
fias dos mortos O produto é fármaco
feito segundo a arte
Que pode ser apenas a forma de mexer
as mãos Ao lançar palavras no papel Ou
de mover os lábios Ao dizer o poema
que não se escreveu
O resto são coisas secundárias As re-
ceitas baseadas nos poemas só servem
para as imitações
O poema imita o poeta e as suas cria-
ções Imita o que o poeta cria do cria-
do
O resto é ganha-pão de professores e
críticos Que muito divertem o poeta a-
fadigado Quando decide descansar e não
fazer poemas

6.10.70


(in Viola Delta, volume XIX / Maio de 1994)

28.11.11


JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


Alfarrobeira

Parece que é uma alfarrobeira
Esta árvore
— E'inda p'ra mais florida! —
Por onde passo pelo menos cada dia quatro vezes.

Parece, mas não sei!
E, todavia...
Persisto em julgar-me um ser da natureza
Tão ou mais do que essa maravilha de enflorados troncos.

Não sei...
E não há todavias realmente a opor...
A palavra comum,
A mim,
À terra que a sustenta,
Ao ar que a estremece,
A essa, digamos, tal alfarrobeira,
E' o viver por e para tudo isso
                 e para mim também
Que tanto vivo para esse tronco enflorado
Como para em palavras,
Tão como ele cifradas,
Pôr imagens informes do real oculto.

1967


Úlcera crítica

Todos querem ser o que não são
E eu à regra não faço excepção.
           Se acontece que mil vezes mudo
           É só por querer depressa ser tudo.
           Tudo, entendamos, exclui meio milheiro...
           Em especial: académico e banqueiro.
           Um porque sabe a mais o que é de menos;
           O outro sofre muito se os lucros são pequenos. 
Ambos, porque sim e porque não, 
Esses querem bem ser o que são...

Admiro até, porém, as linhas rectas,
Mas a geometria é, realmente, coisa de poetas
           Que eu entorto em letras p'ra fazer um dístico 
           Capaz de fazer passar até por aforístico.
Mas sem sorte alguma:
Puras agulhas de pinheiro, simples caruma, 
           Seca como as rectas da geometria 
           — A grande irmã secreta da poesia
Que faz as úlceras dos críticos
Em seus comentários analíticos...

1967

 
O Tempo e a Liberdade

Fosse meu o tempo e ele, por certo, Não seria assim:
Roubava-o na medida, evidentemente
A favor de mim.

O Tempo disse-me então:
— Por minha culpa não serás ladrão;
Dou-me como me quiseres gastar;
Perde-me à vontade.
Mas escusas de ir gritando empestando o ar:
«E onde fica a minha Liberdade?!»

1967


(in Ocidente - Revista Portuguesa de Cultura, N.º 414 / Outubro, 1972)

8.3.11

[no aniversário do seu nascimento]

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


Teoria da incomunicação


Incomunicável me levaram de menino
De casa em casa na casa de meus pais
De terra em terra às casas do Destino
Onde entrando não saímos mais.
Incomunicável a letra dos jornais
Notícias que não me falavam
Do que eu tinha de dizer a esses tais
Que tão cedo de mim me apartavam.
Incomunicável sem culpa formada
Mas já réu de ignotas faltas
A vida era-me adiada
Num hospital onde não dão altas.
Incomunicável à proposta de espera
Nunca a pude igualar a sorte
Esta é agora, e os logos a passar
Eram-me o primeiro ver da morte.
Incomunicável o mudar instante
Incomunicável a transformação
Incomunicável perto e distante
Incomunicável vida e coração
Incomunicável o chorar ou rir
Porque comunicar, eu o sabia,
Não é o mesmo que reproduzir.

II

Incomunicável a esperança que em mim puseram
Os que me quiseram como eu não sou nem era.
Incomunicável o meu querer que eles pudessem
Ver o que quisessem no que eu ia, sendo.
Incomunicável o eu querer agradecer
A única coisa que eu sei fazer:
A injustiça por excesso que posso devolver
Descontadas as custas do processo
Mesmo sem o querer.
Incomunicável o meu amor por tudo
Como podem sequer pensar que ele existe?
Eis-me, cristal impuro e mudo,
Incomunicável, inutilmente triste.

III

Incomunicável... Como? E se o não fosse:
Para quê falar comigo ou com alguém
Se a resposta é sempre a demonstrar
Que me falta toda e qualquer razão
Seja o que pretendo mal ou bem?
Fale de fogo, água, terra ou mar,
Todos me dizem que o meu sim é não,
Todos me falam em pedir sem dar,
Todos propõem sem nada aceitar,
Todos pretendem a si igualar
O que por ser alheio a quem nos escuta
Nem sequer se pode misturar...?
Porquê falar?
Para quê esta aparente luta
Em que o desafio é sempre do vencido
E a vitória do protector
Que julga bem merecido
Tudo que lhe diz seu interlocutor
E nunca sente como própria dor
O que por si não pode ser sentido
E dele faz o justo vencedor
Que nem sequer tenta pesar
Quanto mais comprar o oferecido...?
Para quê falar?
Para quê, ainda, confessar a este papel
O que não é entendido por ninguém?
Para quê, se todo o mal ou bem
É de um só,
De alguém que nada de amável
Tem para ceder do que sentiu
E nem sequer pediu por estar no mundo e vê-lo,
Mas
____sempre
__________inadiàvelmente
______________________incomunicável.


(in Colóquio Letras, número 9 / Setembro de 1972)

21.11.10

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


TEMPO DE NÃO


Exausta fujo as arenas do puro intolerável
Os deuses da destruição sentaram-se ao meu lado
A cidade onde habito é rica de desastres
Embora exista a praia lisa que sonhei


(de Ilhas, 1989)


JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


VI. 5
«TEMPO DA HISTÓRIA»*
TEM PODA? HISTÓRIA...

Claro que tem poda...
A poesia é arborícola
O poeta um silvícola
E tem que andar na moda...
Mas quanto à glória...
História...

11.2.66


*Título de Exercícios Temporais de Tomaz Kim


(de Enéadas / 9 novenas, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989 - Biblioteca de Autores Portugueses)


ADÍLIA LOPES


Tempo de não
tem pó de não?*


*Sophia e José Blanc de Portugal


(de Apanhar Ar, Assírio& Alvim, 2010 - poesia inédita portuguesa)

14.5.10

[poemas com o Papa por cá - IV]

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL



DE «AS OBRAS DE MISERICÓRDIA»

DAR BOM CONSELHO


O conselho é tocar, provar,
Aspirar todos os cheiros do inundo,
Ouvir sempre e ver eternamente,
Abrir as cinco portas; por mais só que estejas
O que entra chega bem para mil vidas.
Depois... é tê-las escancaradas
Pois nada foge e, embora
Saia e entre a cada instante tudo,
É só assim que é possível
Ter e não ter pra sempre tudo.

Casar a pobreza e a riqueza
Viver e morrer mil vezes por segundo
Mudar e ser igual no tempo todo
Cada presente ser
Passado e futuro.

Recusar é deixar;
Conceder tirar;
Tirar é pôr num outro lado;
Pôr é mover;
Mover é fixar num móvel;
Fixar seria
Mudar o futuro.
Esperar é caminhar pra ele.


(de O Espaço Prometido, livraria Moraes editores, 1960 - Círculo de Poesia)

9.9.09

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

IX.9
FILIORUMQUE


Eles cantam e tocam nas suas violas
Eles rasgam os seus corações
Não os seus vestidos
Como disse o Senhor ao seu Profeta
Que fizessem e o lembram
Aos cristãos na Quarta de Cinzas...

Nós seguimos inanes caranguejolas
Disfarçando muito bem os tropeções
Com o falso cismar dos distraídos
E fumaça de falsas mofetas
E falso lembrar de se quebrarem
P'ra sempre as urnas doutras cinzas
Pó dos tempos a esconder-me o tempo.

Eles cantam e tocam as suas violas...
Rasgai os corações e não vossos vestidos
Disse o Profeta do Senhor. . .
Eles não tocam para os já vencidos
Eles não cantam para os sem-amor.

Tanto quanto os há na terra, deuses é que eles são…
Tocam e cantam e assim vão criando
Mundos que não são nada ilusões
Mundos em que o som outros sons cria
Em que essa união constante
É a ponte única que liga
Aqui e o lugar distante
Onde pode ser que ainda exista

O que me fez escrever sem que razão
Aparente p'ra fazê-lo subsista...
Bem sei que não são versos para ouvidos finos
Bem sei; mas eu, sinceramente, meus meninos,
Não creio que o sejam — finos os ouvidos, quero eu dizer… –
Pois se o fossem
Era p'ra eles que serviam estes versos. . .

8/9.2.67

(de Enéadas – 9 Novenas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989 – Biblioteca de Autores Portugueses)

19.4.08

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

TELEFONIA III


Esta música leve e valsitante
Ondula-me a monotonia
Como vejo passar aos sábados
As raparigas da fábrica para o baile.
É doce esta melodia fácil
Simplifica a minha incerteza
E na resolução prevista pela teoria
Deixa-me a poesia simples
Das quadraturas, sete sílabas,
Em que dor se salva rimando com amor.
Esta música leve e valsitante
Leva ao baile fim de semana
Os meus desejos duma vida burguesa
E areja, ou procura fazê-lo,
A minha ciência inútil.
1939

(in Cadernos de Poesia 1, 1940 – edição fac-similada, Campo das Letras, 2004)

5.6.07

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

As coisas são para que sejam não para
que as escrevamos As palavras são pa-
ra serem ditas Não para que as escre-
vamos Se escrevemos é para dizer o que
as palavras não são
De aqui a construção de todas as artes
poéticas que se fazem com poemas e não
com palavras Como os tijolos nas casas
Mas as casas não são tijolos, pedras ou
cimento
Os poemas têm dentro vidas - não uma
só vida e as palavras são a caixa, o
frasco, a lata O invólucro que se dei-
ta fora após o consumo do produto Esse
é que é o poema que se consome Ainda
que fiquem registados Como as fotogra-
fias dos mortos O produto é fármaco
feito segundo a arte
Que pode ser apenas a forma de mexer
as mãos Ao lançar palavras no papel Ou
de mover os lábios Ao dizer o poema
que não se escreveu
O resto são coisas secundarias As re-
ceitas baseadas nos poemas só servem
para as imitações
O poema imita o poeta e as suas cria-
ções Imita o que o poeta cria do cria-
do
O resto é ganha-pão de professores e
críticos Que muito divertem o poeta a-
fadigado Quando decide descansar e não
fazer poemas

6.10.70

(in Viola Delta volume XIX, coordenação de Fernando Grade, edições Mic, 1994)

27.5.04

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

EPICÉDICA


Liso é o choro do passado
Concreta a voz que esconde o dia de hoje
(O travo seu agora foge
Escuso na sombra do grito adiado).

Perdeu-se o gesto da tragédia
Liso é o choro do passado...

(de Odes Pedestres, editora Ulisseia, 1965)

17.5.04

[outros melros XVIII]

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

Lírica


Rubianista Pianstein
No seu Bechstein
Vivo teclava
A famosa "Java
Do Embaixador".
Em frente,
No arvoredo,
Embasbacado,
O melro Alfredo,
Deferente,
Pensa no fado
Do tal pintor.

(de Odes Pedestres, Ulisseia, 1965)

6.4.04

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

O deserto é imenso e errado
mas sua desolada vastidão
não chega para contar as penas todas
não as minhas queixas mesquinhas
de que um oásis saciaria o acre ardor
mas as dos que me rodeiam e a quem
apenas posso dar o meu querer bem.

11.IV.90

(de Quaresma Abreviada, Black Sun editores, 1997 - the impossible papers)

14.3.04

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

O vento leste soprou desabrido
sob o nítido Sol em céu imaculado.

Sobre pedras duras, entre casas altas
mosqueadas pelas injúrias de acrescentados anos,
o Caminhante faz por esquecer as próprias dores
com a esperança de um feliz encontro e,
estranhamente,
quanto mais intensa a dor
mais eficazmente lha mitiga
a esperança.

29.III.90

(de Quaresma Abreviada, Black Sun editores, 1997)
José Blanc de Portugal (1914-2000) e Ruy Cinatti (1915-1986), fundadores dos Cadernos de Poesia, nasceram ambos a 8 de Março. Ambos escreveram poemas como quem tira as sandálias no deserto.

6.10.03

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

Nasceu em Lisboa, em 1914.
Foi meteorologista, adido cultural no Rio de Janeiro, vice-presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
Escreveu regularmente e para várias publicações, sobre música, literatura e arte.
Morreu em 2000.


Invocação

Espírito nocturno que um dia me tocaste
E em alto trono transformaste a flébil haste
Num simples gesto mágico pressabido
Que me erguia dos outros no olvido -
Ó nume - trasgo que teus dedos agitaste
E deles fizeste luminosos astros como fundo
Novo céu de nascimento que formaste
Máquinas simulando de um novo mundo

Musa-deus enganador esquecido:
Voltai de novo aos orcos que deixaste
Deixai-me só como me encontraste
- O tempo chega pra lembrança vossa:
O mal de criar de que fui f?rido
Bastará na obra secreta que eu possa.


Soneto Martelado

A tarde, e por de mais calma,
Afogou-me o que ficara da partida
Tudo me inventara, essa mentira querida
Que ficara fazendo as vezes da alma.
Passa e segue a triste gente calada
E o correio e a luz quebrada no muro
Trazem a tarde, recortando duro
O perfil triste e morno desta minha estrada
E choca e vem de mim até ao céu polido
Sobre mim e a rua desolada,
Uma ilusão que nada tem de alada
E é feita de aço puro e diamantes:
Não querer tornar-me no que era dantes.

(de Parva Naturalia, 1960)


Sapiência

Saber diéreses, ictos, anacruzas,
E os segredos
Dum cólon trocaico dímetro coluro
E as imanentes transcendências
Do hipercatalético anapéstico monómetro,
Saber que pseudo-sáfico é afinal jâmbico,
Não me fizeram o verso brando ou duro
Nem sequer, por sabê-lo, mais abstrusas
Ficaram as ideias destes versos estranhos
Quando saem de mim sem que os domine
Mais que no guiar da mão dormente.

Siabul, Librabis e Jazer
A meu serviço fossem por saber
A palavra, o sinal que os encadeiam,
Nenhum me daria o poder de escrever isto,
De me rasgar, abrir, horrorizar-me
E atirar ao mundo outra ciência:
Estes versos de que fui um molde apenas
Que são livres já pois neles habita
A sombra da verdade que me basta
Gerada pela Luz que não posso ver toda.

(de O Espaço Prometido, 1960 - este poema pertence à sequência Os Dons do Espírito Santo)


Prosaica

Se um dia vier a ser
- Tudo é bem possível,
Ou, melhor, o que é provável
Muito mais do que possível,
Entendamo-nos noèticamente -
Se um dia vier a ser - ia dizendo -
A besta apropriada para ter assento
Em um (ou mais) Conselhos de Administração,
Faço o propósito solene de assinar
Toda e qualquer lista de subscrição
Mesmo que caridosamente apenas
Político-literárias, de candidaturas...

O intuito óbvio podia ser;
Mas não é:
Quererei mostrar apenas que, por cá,
Ser uma besta é menos que insultuoso:
Taxonomiza apenas, cientificamente,
O que ainda não é só mineral,
O calhau, do qual e aliás
Se aproxima insensilvelmente.

(Que possua real vida ou não
è objecto de outra dissertação
mas, para a besta, que isso seja vida
é a consabida incerta sensação.)

(de Odes Pedestres, 1965)

5.10.03

JOÃO MANUEL BRETES

No dia da morte de J. B. P. (1914-2000)


Nem hoje ninguém ainda se assombra
ou quase ninguém se assombra
com essa voz volátil e com o vocábulo
escasso, indizível quase de tão singular
e cingido no meio de um largo campo
de palavras ou com uma só palavra
que de tanto significar fosse melodia só,
fôlego sereno para lá do Tempo
e depois caminho aberto para um bosque
afável de palavras sem pressa de serem lidas,
escutadas. Mas nesse tempo eu andava
em busca da Poesia, lendo e relendo os nomes
todos e tudo o que chamavam poesia ou poema,
o que aí cabia, e então esbarrei com o teu nome
a descompasso, José Blanc de Portugal,
e li ou ouvi algumas das palavras,
e achei que por mais que lesse outras ou outrém
ali estaria para sempre a imanência de tudo,
naquelas discretíssimas palavras.

(de Poeira, editorial Caminho, 2001)
ADÍLIA LOPES

Meteorológica


para o José Bernardino

Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ver

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico

(de Clube da Poetisa Morta, 1997)
ANTÓNIO RAMOS ROSA

NOVA ESTAÇÃO


Toda a gente passou a cumprimentar-nos
O sol é novo através da chuva.
Abrem-se as janelas com cuidado.
Uma frescura sobe ao compasso da terra.
Fomos crianças. As árvores tilintam.

É tempo de trabalhar
inquietamente.
Tempo de caminhar com presteza
pelas calçadas húmidas.
Tempo de ser vergastado pelo vento.
Tempo sério.

A cidade é grande, cinzenta verde.
Paremos.
Os troncos negros brilham.

Há um fervor no ar.
Mil centelhas pululam.
As fachadas são largas, lisas.
Respiremos.
Vamos continuar o dia.

O sol tão disseminado,
vibrante além nas pedras.
E sombra deste lado e quase azul.
Um animal lentamente passa
entre caminhantes apressados.
No tumulto dos metais entre os brilhos,
nós, sossegados, vemos.

(de Estou Vivo e Escrevo Sol, 1966 - este poema pertence à sequência Caminhar Habitar, dedicada "a Sophia de Mello Breyner Andresen e a José Blanc de Portugal")
JORGE DE SENA

CAVERNA


Ao José Blanc de Portugal

Tanta coragem, meu Deus, em perguntar por dúvida,
não vão os meus actos, amanhã pensados,
ser resposta,
vertigem à beira de um poço mais estreito que largo,
de Te querer tão puro e longe
isento do meu mundo.

Este pavor, meu Deus, de Te purificar em excesso,
de me afastar demais
para que não me compreendas ao dizer-Te o Nome...
Eu tiro-Te tudo, tudo, se principio a odiar-me!

Este pavor, meu Deus,
de Te reduzir ao som, à música das quatro letras;
e anda no tremer do ar,
quando o Teu Nome circula
e o ar não treme para as coisas,
fica afastamento
que não a força da Entrada em nós.

Chega o silêncio
passa uma aragem,
as árvores enchem-se de intervalos de nuvens,
- e eu assistindo completo ao ar em movimento!...
Este pavor, meu Deus, de Te confundir com o vento!

De Ti,
só o meu reflexo é irreparável.

19/6/41

(de Perseguição, 1942)