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29.2.12


MÁRIO BOTAS

 (a partir de um quadro)


Romance de D. Sebastião de Portugal e Gabriel de Espinosa Pasteleiro em Madrigal

em memória de Mário Botas

Romance de cordel impresso anonimamente em 4 de Agosto de 1983 e encontrado por Almeida Faria

I

Em Portugal houve um rei
de nome Sebastião
era um dos donos do mundo
ele e Felipe II
seu tio e seu sucessor
como contarei depois

Este D. Sebastião
nasceu póstumo do pai
aos três anos era rei
aos onze anos sofria
de qualquer venéreo mal
que ficou por explicar

Não queria D. Felipe
dar-lhe em casamento a filha
enquanto se não curasse
o que nunca sucedeu
e assim este rei cresceu
doente e desesperado

Tomou horror às mulheres
cujos olhares evitava
educado pelos padres
achava-as causa do mal
que sofria em sua carne
e o tornava incapaz

Chegado aos vinte e quatro anos
juntou todos os navios
que conseguiu reunir
dentro e fora do país
e mais três mil mercenários
e mais soldados do Papa

E em 25 de Junho
zarpou para o norte de África
em derradeira cruzada
até que em 4 de Agosto
em pleno deserto ardente
sete a oito mil soldados

Sendo uns dois mil a cavalo
de armaduras a escaldar
sob o incêndio do sol
e armas que a grande armada
trouxera inúteis a bordo
pesadas para o areal

Morreram às mãos dos árabes
que ágeis em volta giravam
e com leves cavaleiros
depressa os desbarataram
trucidaram saquearam
em poucas horas fatais

Assim acabou a vida
do jovem rei desgraçado
do jovem rei suicida
em vingança contra a sorte
que o fez doente e demente
em vez de são e sensato

Assim morreu um império
que ao fim do mundo chegava
assim começou o quinto
império que nunca será
assim chegámos ao fim
do rei muito desejado

Assim em 4 de Agosto
de 1578
morreu louco e temerário
o senhor de Portugal
morreu ele e a fina flôr
da sua casa real

II

Quase vinte anos passados
apareceu em Madrigal
no deserto de Castela
um pasteleiro parecido
com o rei desaparecido
e em Portugal desejado

Dona Ana de Áustria sobrinha
do rei Felipe II
rei de Espanha e Portugal
recebeu o pasteleiro
na cela do seu convento
e deu-lhe jóias reais

Estavam noivos ou casados
pelo monge Miguel dos Santos
quando Felipe II
prendeu os três e matou
o monge e o pasteleiro
que se dizia ser rei

A pobre Dona Ana de Áustria
foi condenada à clausura
mais dura e mais solitária
por receber no seu quarto
esse D. Sebastião
fosse verdadeiro ou falso

Era isto em Madrigal
longe do mundo e do mar
longe de um país e povo
ainda capaz de durar
outros quatrocentos anos
e durante quantos mais?

Após o grande desastre
sem rei nem roque a reboque
de outros desertos maiores
para lá de longos mares
quem aguarda um rei de fábula
vencido e contudo amado?

Muitos à esquerda e direita
mesmo que não seja rei
mesmo que não traga a lei
mesmo que seja Ninguém
vaga imagem vã miragem
de outro verão em outra idade

Que seja e isso já basta
algo a que a gente se agarre
nesta aridez irreal
que enlouquece e dá coragem
aos cansados de esperar
por promessas de Eldorado

Que a desforra da derrota
venha logo e original
mas não dê muito trabalho
para a gente não cansar
que a vida é curta e confusa
e a morte dura demais

Que o império não exista
senão no sonho é igual
que se prefira sonhar
em vez de ver e olhar
que se force o impossível
é igual tudo é igual

Tudo isto de resto é história
e não sei se tem moral
de um rei louco e de seu duplo
e do duplamente louco
povo deste Portugal.


(gravura e texto in Prelo, 1 – Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Outubro/Dezembro de 1983)

16.3.06

[outros melros XXXIII]

ALMEIDA FARIA

[...] não desistamos contudo, que a mesma hora é em que nos campos os melros assobiam pelas sebes, gravam cigarras o seu canto contra o poente persistente, luzes se acendem nas casas da encosta e no mar nasce a lua nova, peixes-sapos mergulham na lama mais profunda para que a metamorfose seja oculta, tudo se entrega aos braços nocturnos do terror que cresce atrás de cada porta de cada comprido corredor que meninos percorrem de candeia na mão a seguir ao jantar a caminho do quarto onde só dormem tarde escondidos no lençol cheios do desejo urgente de abraçar um corpo e cada esquina aguarda uma angustia ignorada, [...]

(excerto do III Fragmento de Rumor Branco, 1962)

1.11.05

ALMEIDA FARIA

JÓ NO DIA DE TODOS-OS-SANTOS DE 1975


Hoje os noticiários anunciaram, enquanto Tiago ouvia rock na rádio, que uma viatura militar explodiu com um engenho de fraca potência no estádio da Luz. Já estamos habituados e não ligamos nada, mas mesmo assim a mãe receia sempre que a nossa casa um dia vá pelos ares. Como neste dia em 1755, quando Lisboa e parte do país foram arrasados pelo terramoto, muita gente espera ver vir uma calamidade ainda maior que todos os cataclismos que nos caíram em cima, e nem todos os santos juntos nos vão salvar. Pelo menos é o que disse o padre na missa, depois de ter lido o Apocalipse da epístola, anunciando castigos temíveis para os que cederem ao inimigo, cada vez há menos gente na igreja, quase só beatas e alguns lavradores expropriados sem terem que fazer e sem saberem ocupar o tempo. A mãe obriga-me a ir com ela porque precisa de companhia, quando não consegue levar o Tiago que anda na rua a brincar com outros gaiatos. Antes da revolução era obrigatório aos sábados de manhã ir às aulas de Moral, que eu passava de joelhos várias vezes, de castigo por ter sido apanhado a desenhar mulheres imorais enquanto o padre falava de gente espetada no ferro em brasa que entrava pela boca e saía pelo rabo ou ao contrário. Enquanto ficava ajoelhado ao lado da carteira, ou de pé ao canto da sala e de costas viradas para a turma, via-me escondido no castelo até me perder dos companheiros, chegava-me demais às muralhas ameadas, sentia a tontura de olhar para baixo, sofria a tortura das vertigens, perdia a segurança, o equilíbrio, começava a tombar, ia cair, a altura era tal que levaria alguns segundos antes de alcançar o solo sujo de lixo e erva crescida do fosso da barbacã e tentava remar com os braços no ar quando evitar a queda era impossível, a cabeça às cambalhotas e o corpo esbracejando sem esperança em direcção à morte que me esperava em baixo a rir às gargalhadas, caveira sobre um esqueleto vestido de manto cinzento, trambulhão sem rede que nunca mais acabava, nem tinha fim a caída nem conseguia sair duma falta de vontade, de genica para lutar, , indecisão de movimentos, transformado em morcego de asas de pano negro ou qualquer bicho repelente de olhos fechados, cegos à luz do dia, nas pálpebras um peso molengo, pedra-pomes porosa diante dos olhos condenados à clausura do escuro do túmulo onde Tiago estava encerrado em urna de chumbo sem sequer poder respirar porque o oxigénio faltava aos poucos, aos poucos, depressa demais, não havia fuga, os gases do escape do motor do carro em funcionamento dentro do espaço fechado iam-no matar.
Não era a nossa garagem, era numa cidade sem nome, as cozinhas tinham cheiros enjoativos a óleos mil vezes ardidos em diferentes fritos, embotando baços, minando intestinos de gente que só pensa em encher a pança apesar de cercada por inimigos menos presentes que pressentidos, eu mandei pôr meias solas nas minhas botas para saltar montes e vales em pulos de sete léguas, passar por cima das torres do castelo, chegar à Aldeia Aérea, encontrar os cavaleiros redondamente sentados em redor da sua mesa, pedir que salvem Tiago de morrer asfixiado. Mas não consegui subir, chovia, a várzea dos Cantares ficara inundada, seria preciso abrir a comporta para a cheia não ultrapassar os muros do açude destruindo tudo, campos, culturas, a horta onde o burro tirava água à nora embora isso fosse inútil sob a chuva, para o ir buscar eu tinha de atravessar um pau mal equilibrado sobre o cimento do vau da descarga das águas, tronco de madeira podre semelhante ao do quadro do anjo da guarda no nosso quarto onde acordo aliviado ao ritmo do rock ouvido por Tiago afinal salvo.

(capítulo 31 de Cavaleiro Andante, 1983 - quarta parte da "Tetralogia Lusitana")