1.11.05

ALMEIDA FARIA

JÓ NO DIA DE TODOS-OS-SANTOS DE 1975


Hoje os noticiários anunciaram, enquanto Tiago ouvia rock na rádio, que uma viatura militar explodiu com um engenho de fraca potência no estádio da Luz. Já estamos habituados e não ligamos nada, mas mesmo assim a mãe receia sempre que a nossa casa um dia vá pelos ares. Como neste dia em 1755, quando Lisboa e parte do país foram arrasados pelo terramoto, muita gente espera ver vir uma calamidade ainda maior que todos os cataclismos que nos caíram em cima, e nem todos os santos juntos nos vão salvar. Pelo menos é o que disse o padre na missa, depois de ter lido o Apocalipse da epístola, anunciando castigos temíveis para os que cederem ao inimigo, cada vez há menos gente na igreja, quase só beatas e alguns lavradores expropriados sem terem que fazer e sem saberem ocupar o tempo. A mãe obriga-me a ir com ela porque precisa de companhia, quando não consegue levar o Tiago que anda na rua a brincar com outros gaiatos. Antes da revolução era obrigatório aos sábados de manhã ir às aulas de Moral, que eu passava de joelhos várias vezes, de castigo por ter sido apanhado a desenhar mulheres imorais enquanto o padre falava de gente espetada no ferro em brasa que entrava pela boca e saía pelo rabo ou ao contrário. Enquanto ficava ajoelhado ao lado da carteira, ou de pé ao canto da sala e de costas viradas para a turma, via-me escondido no castelo até me perder dos companheiros, chegava-me demais às muralhas ameadas, sentia a tontura de olhar para baixo, sofria a tortura das vertigens, perdia a segurança, o equilíbrio, começava a tombar, ia cair, a altura era tal que levaria alguns segundos antes de alcançar o solo sujo de lixo e erva crescida do fosso da barbacã e tentava remar com os braços no ar quando evitar a queda era impossível, a cabeça às cambalhotas e o corpo esbracejando sem esperança em direcção à morte que me esperava em baixo a rir às gargalhadas, caveira sobre um esqueleto vestido de manto cinzento, trambulhão sem rede que nunca mais acabava, nem tinha fim a caída nem conseguia sair duma falta de vontade, de genica para lutar, , indecisão de movimentos, transformado em morcego de asas de pano negro ou qualquer bicho repelente de olhos fechados, cegos à luz do dia, nas pálpebras um peso molengo, pedra-pomes porosa diante dos olhos condenados à clausura do escuro do túmulo onde Tiago estava encerrado em urna de chumbo sem sequer poder respirar porque o oxigénio faltava aos poucos, aos poucos, depressa demais, não havia fuga, os gases do escape do motor do carro em funcionamento dentro do espaço fechado iam-no matar.
Não era a nossa garagem, era numa cidade sem nome, as cozinhas tinham cheiros enjoativos a óleos mil vezes ardidos em diferentes fritos, embotando baços, minando intestinos de gente que só pensa em encher a pança apesar de cercada por inimigos menos presentes que pressentidos, eu mandei pôr meias solas nas minhas botas para saltar montes e vales em pulos de sete léguas, passar por cima das torres do castelo, chegar à Aldeia Aérea, encontrar os cavaleiros redondamente sentados em redor da sua mesa, pedir que salvem Tiago de morrer asfixiado. Mas não consegui subir, chovia, a várzea dos Cantares ficara inundada, seria preciso abrir a comporta para a cheia não ultrapassar os muros do açude destruindo tudo, campos, culturas, a horta onde o burro tirava água à nora embora isso fosse inútil sob a chuva, para o ir buscar eu tinha de atravessar um pau mal equilibrado sobre o cimento do vau da descarga das águas, tronco de madeira podre semelhante ao do quadro do anjo da guarda no nosso quarto onde acordo aliviado ao ritmo do rock ouvido por Tiago afinal salvo.

(capítulo 31 de Cavaleiro Andante, 1983 - quarta parte da "Tetralogia Lusitana")

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