SABINE MELCHIOR-BONNET
Para troçar da ingenuidade e da ignorância de um pobre homem
incapaz de distinguir a realidade da sua representação ou do seu reflexo, E.
Tabourot, num conto do Séc. XVI, diz que este instalara um espelho aos pés da
cama «para ver se teria boa aparência enquanto dormia». Apesar de caricata, a
anedota tem a sua parcela de profundidade: o espelho escamoteia algo de
perfeitamente essencial, o rosto do homem que dorme. O limite da experiência do
espelho está nessa impossibilidade de se ver fechando os olhos, ou na
impossibilidade de, mesmo com o artifício de vários espelhos, encontrar um
olhar em movimento. Nesse ponto inacessível, nessa falha, insinua-se, para se
constituir por inteiro, a parte desconhecida de si, tudo aquilo que é subtraído
ao conhecimento, mas cuja invisível presença é sentida por cada um.
Por vezes, essa ausência deixa o seu rasto fugidio no
espelho. Quem é que nunca ficou surpreendido com o seu reflexo ao passar
inesperadamente por um espelho, esse espelho «estranho e impiedoso» de que Proust
fala a propósito do seu quarto de Balbec, «barrando obliquamente» o aposento e
espreitando-o com hostilidade? A emoção sentida atesta bem que o encontro tocou
um ponto sensível ao capturar, durante uma fracção de tempo, o indizível. Passado
o constrangimento, a imagem recompõe-se, idêntica e familiar, e a inquietação dissipa-se.
O célebre texto em que Freud conta como pensou ter visto um desconhecido entrar
no compartimento da sua carruagem-cama no preciso instante em que um solavanco
violento abria bruscamente a porta da casa de banho familiarizou-nos com essa
«inquietante estranheza», o rosto do intruso, não de um outro, mas do outro que
há em nós: «Precipitei-me para o informar, mas, perturbado, apercebi-me de que o
intruso não era senão a minha própria imagem reflectida no vidro da porta de comunicação.
E lembro-me de que essa aparição me desagradou imensamente.» se o espelho de
Sócrates é o instrumento da construção de si na continuidade da aprendizagem, a
revelação da alteridade passa pelo súbito clarão de um reflexo fortuito e pelo olhar obliquo: é
no encontro incongruente, na efracção, na dissonância, que o eu desconhecido
aflora, e que o que fala ou está reprimido grava o desenho da sua
desconcertante face.
(in História do Espelho, tradução de José Alfaro, Orfeu
Negro, 2016)