5.4.14

NUNO MOURA


REPETE-SE, A TUA SOMBRA

Quase enorme o lanho da vacina
na régua das datas memoriais,
a bombazina das artérias
por te bombearem tantas vezes
ao moinho do cérebro.

Que há disto, da constante abébia
ao teu riso manageiro contagiante dos estalos
da demência na copa dos músculos,
que há da chaga das campainhas em florete
nas gengivas à pronúncia do teu nome,
do arranho do escopro que fofo te vai espetando
no croché das vontades de ti,
um atropelo.

Resinoso, colo-me plural todo língua
na paisagem dormente da divisória onde
das regueiras de um golfo cairá primeiro um atilho
que enforco à cintura para poderes puxar, depois um besunto
de tinta-da-china que me encara a frente e a cruz dos braços
para que o holofote que trago dentro não te indisponha
e tu correria amena, minha sombra única,
meu el-rei, meu legado, meu perímetro
apagado de carne,

eu caio assim.


(de Soluções do Problema Anterior, &etc, 1996)

4.4.14

JORGE FALLORCA

O isolamento — eu prefiro chamar-lhe e assumi-lo como ausência — a que me fui dedicando, libertou-me dos riscos e confusões da arregimentação geracional movida pelos expeditos mangas-de-alpaca da literatura.
Sem me perguntarem se estava interessado ou se autorizava — claro que a minha vaidade de adolescente provinciano não só estava interessada e autorizava, como se sentiria irremediavelmente magoada se não constasse — incluíram nas antologias Poesia 70 e 71 textos meus surripiados nos suplementos juvenis ou literários, pródigos à época. Eventualmente estimulado pelo pacato sucesso da iniciativa, um outro mercenário editorial viria a adoptar o mesmo critério, considerando-me sobejamente ressarcido com o relutante envio de um exemplar de uma coisa inexplicavelmente chamada Continente/1, que também agradeci silenciosamente e terei igualmente folheado até lhe gastar as páginas onde me contemplava.
Vencida a curiosidade inicial — de assistir e, ocasionalmente, perturbar —, pautei as quase três décadas que vivi em Lisboa por um comportamento arisco às plateias promocionais, se não com indiscutível mestria, pelo menos com inegáveis resultados.
E se não faltou quem se preocupasse em manter-me ao corrente do repúdio (empolando a assiduidade e a dimensão) que a simples alusão do meu nome provocava, também não faltou quem pretendesse solidarizar-se para se regozijar a avaliar o que só podia conceber como uma espécie de extensão dos estragos, incorporando-me — agora ele, e em que outro poderia ser? — no bando ressabiado e cínico dos chamados marginais...
Tive sorte: o álcool e a loucura encarregaram-se de me pôr a salvo de uns e de outros. Quando me recuperei e consegui trocar Lisboa pelas Casas do Monte Alto, verifiquei que a natural e incontível emergência de outras gerações já se encarregara de cagar — literal e literariamente — naquela a que apenas pertenço pela força temporal das circunstâncias, concedendo-me a liberdade de esquecer o incómodo da proximidade.

«Toda a história universal não me parece ser nada mais do que um livro ilustrado que reflecte o mais intenso e cego anseio dos Homens: o anseio do esquecimento. Pois não extingue cada geração, através da proibição, do abafamento, do escárnio, sempre precisamente aquilo que parecia mais importante à geração anterior?» — Hermann Hesse, Viagem ao País da Manhã


(in a cicatriz do ar, edição do autor, 2009 – na foto: Livraria Trama)

3.4.14

CESAR VALLEJO


E SE DEPOIS DE TANTAS PALAVRAS...

E se depois de tantas palavras,
não sobrevive a palavra!
Se depois das asas dos pássaros,
não sobrevive o pássaro parado!
Mais valeria, na verdade,
que comam tudo e acabemos!

Ter nascido para viver da nossa morte!
Levantar-se do céu rumo à terra
por seus próprios desastres
e espiar o momento de apagar com a sua sombra as suas trevas!
Mais valeria, francamente,
que comam tudo e tanto faz!...

E se depois de tanta história, sucumbimos,
não já de eternidade,
mas dessas coisas simples, como estar
em casa ou pôr-se a matutar!
E se em seguida descobrimos,
subitamente, que vivemos,
a avaliar pela altura dos astros,
pelo pente e as nódoas do lenço!
Mais valeria, na verdade,
que comam tudo, sem dúvida!

Dir-se-á que temos
num dos olhos muita pena
e também no outro muita pena
e nos dois, quando olham, muita pena...
Então... Claro!... Então... nem uma só palavra!



(in Antologia, tradução de José Bento, Limiar, 1981)