2.11.13

THOM GUNN


Sempre ao Redor
O mundo do faroleiro é redondo,
os seus haveres erguendo-se num círculo
— Lá dentro tudo o que o homem pode desejar,
Uma mulher, um rádio, pão, geleia, sabão;
Porém, aos poucos a sua esperança fatigada
Irrompe para viver sobre o som
Que as ondas rodopiando fazem ao rebentar
À custa do seu próprio esforço
— O mundo do faroleiro é redondo.

Interroga-se, subindo a escada em caracol
para dirigir a lanterna que ilumina os barcos,
Por que razão aquilo que sempre foi dele se ergue
Com o rosto voltado para o centro;
Dos livros, amontoados nas mesas, aprendeu
Que os mundos do litoral são também redondos, não quadrados,
Mas lá as coisas dançam com os rostos voltados
Para o exterior: rostos de medo e dúvida?
Interroga-se, subindo a escada em caracol.

Quando há acalmia, são seguros os rochedos
Para fazer um pouco de exercício,
Mas tudo o que faz é fixar os seus olhos
Sobre aquele totem enorme de onde saiu
E onde os pensamentos dançam em redor do que não mudará
— O seu secreto e silencioso desgosto.
As ondas não têm sol, mas são apanhadas pelos raios
Ao rolarem mais abaixo dos seus pés, perverso sal,
Quando, numa acalmia, são seguros os rochedos.




(tradução de Maria de Lourdes Guimarães, in A Destruição do Nada e outros poemas, Relógio d'Água, 1993)

31.10.13

MÁRIO SCHULTE


SEMPRE PEREGRINOS

Chegamos ao fim da noite por um triz.
O pior foi o desvio proibido na recta
veloz da madrugada. As coisas correram
como devem correr a peregrinos. Houve
quem estremecesse perante o inconcebível
da aurora e a osmose impensável.

As fronteiras eram gestos de aves.
Assim pensávamos: a verdadeira terra
é a dos sítios com orifícios onde começam
os túneis cavados em desejos de partir
E os túneis acabam sempre em todas as noites
Impossíveis de chegar. E eis-nos. Sempre peregrinos



(de Uma Estação no Inferno, Edições Litoral, 1986)
JOSÉ MATTOSO

A humanidade atravessou muitas crises. A dos séculos XIV e XV é uma daquelas em que, pelo menos na perspetiva católica, melhor se pode entender o lado transcendente dos acontecimentos. Os dias em que vivemos, nesta segunda década do segundo milénio, são também de crise. Desconhecemos as suas dimensões e as suas consequências, mas parece ser das mais graves que têm atingido a humanidade, porque é universal. As crises nacionais ou internacionais que abalaram o mundo nos séculos passados acabaram por ser superadas. Algumas fizeram muitas vítimas, mas também enriqueceram experiências de vida e ensinaram a encontrar soluções realistas, eficazes e abrangentes. Aquela que aqui tentei mostrar nas suas grandes linhas está praticamente esquecida, mas merece ser recordada. Não trouxe só sofrimento e miséria. Trouxe também ousadia, solidariedade, melhor conhecimento de Deus, fé, esperança e caridade. Dela nasceram alguns santos conhecidos e venerados, como Santa Beatriz, e muitos mais de quem ninguém fala, mas Deus conhece. Dela brotaram muitas experiências de vida radical e, por isso, movimentos renovadores da vida religiosa, da espiritualidade e da piedade dos fiéis. Nela se enraizaram instituições de solidariedade social como aquela, tão portuguesa, das Misericórdias.
Hoje ninguém sabe o que pode acontecer nos próximos anos. Trazem, sem dúvida, violência e sofrimento. Mas um dos pilares do Cristianismo é a virtude da esperança. Um dos pilares de qualquer sociedade, cristã ou não cristã, é a resistência à morte. Como homens temos de lutar pela vida. Como cristãos temos de cultivar e esperança, sem perder a lucidez nem a responsabilidade. Jesus Cristo não veio para nos propor a resignação, mas para nos ensinar a lutar. O que Jesus promete aos seus discípulos e a nós mesmos não é uma vitória fácil, mas a salvação. É Ele quem nos convida a descobrir na História a manifestação da transcendência divina. Nada nos pode separar do amor de Cristo. Permitam-me, pois, que repita aqui as palavras do Papa João Paulo II no primeiro discurso do seu pontificado: «Não tenhais medo!». Talvez tenhamos de viver dias difíceis. Ou mesmo muito difíceis. Mas quem se identifica com Jesus Cristo não pode ter medo de nada.»

(excerto de «O Tempo de Santa Beatriz da Silva», in Santa Beatriz da Silva - Uma estrela para novos rumos, Princípia, 2013)

30.10.13

GRACILIANO RAMOS


De manhã, ao lavar-me, notei que alguém se esgoelava no chuveiro próximo, recitando 'Os Lusíadas':
As armas e os barões assinalados...
A água jorrava com forte rumor, alagava o chão; diversas torneiras abertas, resfôlegos, gente a esfregar-se, magotes conversando à porta, aguardando vaga. O vozeirão dominava o barulho:
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A fé, o império, a uretra...
Dei uma gargalhada, ouvi este comentário:
- Hoje não se dilata império nem fé. Essas dilatações vão desaparecendo. Agora o que se dilata é a uretra.


(excerto de Memórias do Cárcere, 1ª edição portuguesa: Portugália Editora, 1970)

29.10.13

N. SCOTT MOMADAY


Cemitério da Montanha Chuvosa

O teu nome é quase todo ele o nome desta pedra escura.
Transtornado na morte, com a mente para sempre
Unida ao imaginário desconhecido,
Aquele que aqui e agora escuta para ouvir o teu nome
Ouve a velada do audível nada.

Corre pela planície o sol da madrugada, rubro como o luar do caçador.
A montanha incendeia-se e brilha;
O silêncio é o meio-dia aproximando-se lentamente
Da sombra que o teu nome explica -
E a morte esta fria e negra densidade da pedra,



(tradução de Júlio Henriques, in "Flauta de Luz - Boletim de Topografia", N.º 1 / Janeiro de 2013)

28.10.13

ALBERTO DE LACERDA


Trabalharei não longe
Das superfícies ásperas
Densas generosas

Dedicarei meus dias
Aos dias e às noites
Presentes a quem vive
Nas ruas e nos astros
Sem divisões sinistras

Voltarei sem querer
Aos lugares sagrados
Descansarei imenso
(Entre guerreiro e lâmina
Serei folha à deriva
Livre e indivisa)

Austin
15 de Maio 75

A David Wevill

Trabalharei nos sons
Na bainha
Do cereal doirado

Trabalharei (a cabeça
Em repouso absoluto
Sobre a tua mão)

Trabalharei no silêncio
Que conduz ao passado

Evitarei
(Se possível)
Certas palavras

Serei o muro

O sol bate de chapa
No meu rosto

Austin
15 de Maio 75

A sombra que vem depois de sol
É habitada
É uma sombra feliz

A sombra que sucede à luz mui forte
É grávida de cor afirmativa
Estabiliza os caudais
Da imaginação
Pinta seus recantos obscuros
Reconcilia tudo

Austin
15 de Maio 75

(primeiros poemas de Meio-Dia, Assírio & Alvim, 1986)

27.10.13

MANUEL DE FREITAS


1998, LOU REED

Foi tão estranho. O barulho
do nada sobrepunha-se
nas mais diversas línguas
àquela frágil tentativa de concerto.

Enquanto nós, trio deveras
implausível, comprávamos
vinho mau e sandes de chouriço.
Não era bem o apogeu de Lisboa;
seria antes o princípio da morte,
indiferente aos fogos de artifício
que haveriam de selar o desencontro.

Preferíamos, sem dúvida,
uns restos de magia,
uma desculpa qualquer para estarmos
efectivamente ali, depois de poluídos
- e só mais tarde rasgados –
os lençóis que nos cobriam.
(That’s the story of my life.)

O Tejo, talvez por vossa causa,
nunca me pareceu tão triste.


(de Jukebox, Teatro de Vila Real, 2005)