30.5.09

JOÃO CÉSAR MONTEIRO



(imagem de Fragmentos de um Filme-Esmola, 1972)



FRANCIS PONGE


A LARANJA


Como na esponja há na laranja uma aspiração a retomar a forma depois de ter sofrido a prova da expressão. Mas enquanto a esponja o consegue sempre, a laranja nunca: porque as suas células estoiraram, os seus tecidos rasgaram-se. Enquanto que só a casca se restabeleceu languidamente na sua forma, graças à sua elasticidade, um líquido de âmbar derramou-se, acompanhado por um frescor e perfume suaves, é certo, – mas muitas vezes também pela consciência amarga de uma expulsão prematura de caroços.

Será necessário tomar partido entre estas duas maneiras de suportar mal a opressão? – A esponja é apenas músculo e enche-se de vento, de água limpa ou suja, consoante: essa ginástica é ignóbil. A laranja sabe melhor, mas é demasiado passiva, – e esse sacrifício odorífero... é de facto vender-se barato ao opressor.

Mas não é um dizer que baste sobre a laranja o ter lembrado a sua particular maneira de perfumar o ar e de deliciar o seu carrasco. É preciso pôr o acento na coloração gloriosa do líquido que daí resulta, e que, melhor do que o sumo de limão, obriga a laringe a abrir-se largamente para a prolação da palavra como para a ingestão do líquido, sem nenhuma careta apreensiva por dentro da boca, uma vez que ele não faz com que as papilas se arrepiem.

Além disso, fica-se sem palavras para confessar a admiração que merece o invólucro deste terno, frágil e róseo balão oval nesse espesso mata-borrão húmido cuja epiderme extremamente fina mas muito pigmentada, acerbamente sápida, é suficientemente rugosa para prender dignamente a luz na perfeita forma do fruto.

Mas no fim de um demasiado breve estudo, conduzido tão redonda e expeditamente quanto possível, – é preciso chegar ao caroço. Este grão, com a forma de um minúsculo limão, apresenta no exterior a cor da madeira branca de limoeiro, no interior um verde de ervilha ou de rebento tenro. É nele que se reencontram, depois da explosão sensacional da lanterna veneziana de sabores, cores e perfumes que o balão frutado em si mesmo constitui, – a dureza relativa e o verdor (não aliás inteiramente insípido) da madeira, do ramo, da folha: bem pequena suma, embora com certeza a razão de ser do fruto.

(in Alguns Poemas, tradução de Manuel Gusmão, edições Cotovia, 1996 – original de Le parti pris des choses / O partido tomado pelas coisas, 1942)


LEONARD COHEN

Last Year's Man


The rain falls down on last year's man,
that's a jew's harp on the table,
that's a crayon in his hand.
And the corners of the blueprint are ruined since they rolled
far past the stems of thumbtacks
that still throw shadows on the wood.
And the skylight is like skin for a drum I'll never mend
and all the rain falls down amen
on the works of last year's man.

I met a lady, she was playing with her soldiers in the dark
oh one by one she had to tell them
that her name was Joan of Arc.
I was in that army, yes I stayed a little while;
I want to thank you, Joan of Arc,
for treating me so well.

And though I wear a uniform I was not born to fight;
all these wounded boys you lie beside,
goodnight, my friends, goodnight.

I came upon a wedding that old families had contrived;
Bethlehem the bridegroom,
Babylon the bride.
Great Babylon was naked, oh she stood there trembling for me,
and Bethlehem inflamed us both
like the shy one at some orgy.
And when we fell together all our flesh was like a veil
that I had to draw aside to see
the serpent eat its tail.

Some women wait for Jesus, and some women wait for Cain
so I hang upon my altar
and I hoist my axe again.
And I take the one who finds me back to where it all began
when Jesus was the honeymoon
and Cain was just the man.
And we read from pleasant Bibles that are bound in blood and skin
that the wilderness is gathering
all its children back again.

The rain falls down on last year's man,
an hour has gone by
and he has not moved his hand.
But everything will happen if he only gives the word;
the lovers will rise up
and the mountains touch the ground.
But the skylight is like skin for a drum I'll never mend
and all the rain falls down amen
on the works of last year's man.

(do álbum Songs Of Love And Hove, 1970)