17.12.13

GHÉRASIM LUCA


OS GRITOS VÃOS

Ninguém a quem dizer
que nada temos a dizer
e que o nada que dizemos
continuamente
o dizemos a nós mesmos
como se nada nos disséssemos
como se ninguém nos dissesse
nem mesmo nós
que nada temos a dizer
ninguém
a quem poder dizê-lo
nem mesmo nós

Ninguém a quem dizer
que não temos nada a fazer
e que nada mais fazemos
continuamente
o que é um modo de dizer
que não fazemos nada
um modo de não fazer nada
e de dizer o que fazemos

Ninguém a quem dizer
que não fazemos nada
que nada fazemos
senão o que dizemos
nada quer dizer



(tradução de Miguel Serras Pereira, in Sud-Express - poesia francesa de hoje. Relógio D'Água, 1993)

16.12.13

JOSÉ AGUSTÍN GOYTISOLO


AQUELA FLOR

Viste que nada era duradouro
desde muito menino. Que uma flor
se abre se arroga de aroma e brilha
e cai depois no jardim.
E ainda que outras flores logo apareçam
- muito semelhantes - nenhuma delas
será a flor que despertou
os teus sentidos: aquela flor.
Pessoas meses chuvas e ânsias
se escaparam de ti em bicos de pés
para não te magoarem. Mas tu
aprendeste com a flor única
o amor ao que perece
e a ferida do que já morreu.



(tradução minha; original de Como los trenes de la noche, 1994)

15.12.13

DANIEL FILIPE


CROMO

Esta janela dá
para coisa nenhuma
Não é janela, é vago
orifício na bruma.

Orifício por onde
se alicerça de espuma
a líquida vereda
que vai a parte alguma.

E onde aflora a paisagem
certa-voz matutina,
que se quebra de espanto
feita coisa, dor fina.

E como dor resvala
e, dócil, se insinua
entre a camisa leve
e a pele do Poeta, nua.


(de Pátria, Lugar de Exílio, 1963)