22.9.11

PAULA REGO / ANA MARQUES GASTÃO



Sit, 1994


SIT

Sou, na economia das coisas, um paradoxo
— da verdade não há visão ou consciência.
Sento-me. A cronologia de um corpo cumpre
o horário do paraíso num tempo incompatível,
mas sei: propagar-me é propagar o terror.
A dor, como a alegria, tem os seus locais
de transporte, arruma-se no espaço de uma estrofe
débil, cidade contígua na ambiguidade sacrificial.
Dizer: movo-me, mas não; estou aqui, cérebro colado
aos pés como uma polaroid translúcida.
Partiram-se as mãos e a cabeça jaz esquartejada no espelho
estilhaçado. Fica: não falarei do amor enquanto a luz
transpuser as trevas, ainda que ao som de uma ópera
menor. Prefiro a pródiga imagem do que me falta,
a imprecisão dos mortos. Fosse esse o regresso
a um pensamento nítido, de que reconheço o traço
no papel, caligrafia de um tudo anterior, e eu seria
a definição da noite. Mas não: tenho algo de mim
pregado a uma estúpida elipse, o útero é paisagem
sem fruto ou fatigada casa e a memória, rugosa
e mínima, desmembra-se como um breve sinal
de vida extinta na passagem do dia.



Baying, 1994


LATINDO

Este o amor que não foste
nem nunca serás
de tanto o amar
esgotaste-o
olhando a frio
o teu delírio.

Este o amor que não foste
nem nunca serás
de tanto o tocar
apagaste-o
em contrário, inusitado
caminho.

Este o amor que não foste
nem nunca serás
de tanto o escreveres
gastou-se,
no labor
de uma gélida surdez.

Este o amor que não foste
nem nunca serás
de tanto o contemplares
fugiu-te
incapaz de suportar
a página
e o seu branco uivo.



Up the Tree, 2002


UP THE TREE

O voo do poeta
traduz
uma obsessão
projecta-o para fora de si
é nevralgia
de uma pátria em exílio.

Céptico 
das palavras 
o poeta
constrói voando 
a voluptuosa 
fúnebre    alegoria.

Nada mais lhe importa
no turbilhão
da sua trágica
misteriosa
ilusão: aprender
a derrota.

Enfermo de si próprio
o poeta
profetiza a catástrofe
é um subversivo
do delírio
ave do desespero.

Sobre a sua mão
desfeita
anda tão tão    devagar
ou então veloz
brinca
com o irremediável.


(de Nós / Nudos, Gótica, 2004)

21.9.11

JÚLIO RESENDE

(imagem daqui)




ANTÓNIO OSÓRIO


OS MENINOS DE JÚLIO RESENDE

Os meninos de Júlio Resende ignoram a morte? Jogam, divertem-se, voam. E voam tão alto que Resende exara a palavra perfeita: «Os meninos no voo das estrelas.» Crianças, no Nordeste do Brasil, pobres e gloriosas.

Revejo-me nelas de modo diferente. Igualmente ágil e exultante, dentro de um baloiço, também eu voava. E pareceu-me que esse júbilo chegava ao ponto de tocar no próprio tempo, irremediável erro, porque o tempo é de todas as nossas personagens a mais acompanhante e a mais indiferente.

Vendo os meninos, recordo outras coisas, que me davam o mesmo sentido da alegria. Tocar na areia da praia, escorrê-la pelo corpo; ver a chegada firme, longa, majestosa das ondas na praia de Tróia, que foi a primeira praia; ouvir a Odisseia e os sonetos de Camões; o prazer inacabável da leitura. Eis os instrumentos de voo, que me fizeram como sou, reconhecido e atormentado.

Os meninos de Júlio Resende continuam vivos. O contentamento deles acompanha-nos. Num pedaço de papel, colocado sobre leve armação, uma cruzeta de cana, soltam ao vento o papagaio, e sabiamente brincam com o voo das aves, porque tudo isso os conduz perto das estrelas. O mundo da natureza e o mundo dos homens inspiram os jogos das crianças, mas a si próprias voltam, livres de mágoa.


(de Libertação da Peste, Gótica, 2002)
ANA MARQUES GASTÃO



Perante a absoluta morte

o ínfimo dia


--//--

O mundo - metáfora incompleta
do desequilíbrio.
E eu a escassa palavra.


--//--

Subimos 
pelo silêncio 
quando a chuva 
cria incerta 
o poema 
de cal e água.

O amor
é então
ar e peso
incapaz
de conter
a precisa forma.

Nada 
é coeso. 
A sombra 
súbita e nítida 
traz a memória 
separada.

E teu sono 
impõe um corpo 
em frémito
ou voo 
quando 
baixa o sol.


--//--

A paisagem é lenta
e descai em tuas pálpebras.
A vida é isso.
Coisas nossas
buscam connosco
destruição quando
se dissolvem na paciência
de um final exacto.


(de Nocturnos, Gótica, 2002)

20.9.11

ANA MARQUES GASTÃO


G


Água incerta somos
na incompleta odisseia
ou no escasso júbilo.
Todo o cristal sombrio
é menor que a agonia.

Eloi, Eloi,
os homens separam-me dos homens
e Tu, elegia ininterrupta, estás só
como um cisne envenenado pelo sangue.


O


Os justos - esquartejados
por uma cidade distante
condenados a espargir
o suor em terra morta.

Perdidos e sobrevivos
no tormento, não são
mais do que atletas
na senda de deus.


Z

No princípio eras Tu, no fim Tu serás 
e no meio dormem os homens um longo, 
longo sono onde o tormento se faz carne 
e habita entre nós. Porque ninguém jamais 
Te viu. Outros virão, outros, outros e outros 
para consumar o círculo da vida, os que chegam 
depois de Ti e nunca antes, ou não fosses Tu 
o princípio, ordem e silêncio de todas as coisas.

No princípio eras Tu, no fim Tu serás 
e no meio conhecem os homens a dor 
e a devastação, a fome e a ruína, a solidão 
e a injustiça. Porque ninguém jamais Te 
viu. Nem os que choram, nem os que riem 
nem os aflitos, nem os doentes, nem os que 
envelhecem nem os que, fatigados, morrem.

Eloi, Eloi
quem te ama chora.

No princípio eras Tu, no fim Tu serás.




(de O Silêncio de Deus, in Três Vezes Deus, Assírio & Alvim, 2001 - documenta poetica)

19.9.11


ANA MARQUES GASTÃO


Como dizer o teu nome
se teu nome é sombra
e nem te oiço
no Outono final.

Como dizer o teu nome
se nem nos sonhos te encontro
estrela em fuga
num reino crepuscular.

Como dizer o teu nome
se esta é uma terra morta
sem mães vivas
nem espaço para mim.

Como dizer o teu nome
neste vale vazio
último lugar do encontro.

--//--


Regular recordação de mim.
Os pais são filhos da memória
e um negro e estático insecto
destrói suas eternas asas
enquanto a terra te corrói.
Nunca mais seremos completos.

Uvas amargas as da maturidade
pouco a pouco o sol fica cego.
Guardiões do quotidiano, sem vós
o coração devolve-se a si mesmo
como um órfão numa macabra marcha
à semelhança dos primeiros deuses.

--//--

Nas tuas mãos
os segredos
a rosa
na sua durável
paciência.

Nesta segunda 
vida-morta 
sei-te a pré-história 
de Deus.

Mataram-te,
mas não no meu poema.


(de Terra Sem Mãe, Gótica, 2001)


18.9.11

[a propósito da saída do mais recente, entre hoje e o próximo sábado, irei aqui publicar poemas de cada um dos sete livros de Ana Marques Gastão]


ANA MARQUES GASTÃO


Nem os velhos mestres o entenderam.

Quando o sofrimento irrompe, cipreste,
as crianças sabem: o silêncio estilhaça-se.

Na terra batemos, os mortos desenganados.
Ficamos inquietos à espera que o sangue naufrague.
Inocentes como cordeiros, projectos sem construção.

Carne mutilada, nada te altera.
Nem a palavra porque também haverá a sua morte.

Sem paraíso dorme a criança no seu berço-caixão.
Vida molesta que nem os seus moribundos reclama.

Entre o teu corpo, o dia, a ausência,
a viúva, a órfã, o pai e a mãe...
O lamento lacónico, o mundo sem júbilo.

Entre o teu corpo e o dia, o grito desamparado
de um futuro rebelde que já não volta
e a esperança, minha ténue esperança
de ter visto um rapaz caído do céu.


--//--

Dou-te um nome, Ulisses, 
és fragmento do que encontraste. 
Salvam-se as horas pela estrada que se segue 
pelos astros que governam os céus.

O tempo é frágil, conheces tu o cantar de outrora? 
Teme o olhar que te fita, vigilante, 
ele não vê a mesma árvore do que tu. 
A natureza é estéril sem o Homem.

Verme doente, tem o teu cérebro forma? 
Átila, amei-te um dia... 
No dia em que me separei de mim própria 
conheci a verdade negra. Desacato.

Sonhei com um velho que se desmembrava. 
Veio a palavra e destruiu o exílio. 
O transporte diz~se místico e leva-me para longe. 
Vê: a saudade casta dobra a melancolia.


--//--

Delírios confusos, absurdo. 
Vai pálido o anjo, ri o demónio.

Hoje o meu deus não se vê.
Sou sombra num paraíso perdido.

A terra consome meus olhos azulados. 
Criatura frágil, ouvem-se teus gritos.

Voz de espinhos, 
máscara morta.

Noite cerrada, danúbio sem sol,
tempos houve em que fui cor resplandecente.

Tu, da estirpe dos que tecem o cabelo de aço, 
encheste a casa de trevas róseas.

Livro ensaguentado, cortejo de horrores. 
Deixa-me as insondáveis delícias do Homem livre. 
E a glória de se estar só.


(de Tempo de Morrer Tempo para Viver, Universitária editora, 1998)