18.9.11

[a propósito da saída do mais recente, entre hoje e o próximo sábado, irei aqui publicar poemas de cada um dos sete livros de Ana Marques Gastão]


ANA MARQUES GASTÃO


Nem os velhos mestres o entenderam.

Quando o sofrimento irrompe, cipreste,
as crianças sabem: o silêncio estilhaça-se.

Na terra batemos, os mortos desenganados.
Ficamos inquietos à espera que o sangue naufrague.
Inocentes como cordeiros, projectos sem construção.

Carne mutilada, nada te altera.
Nem a palavra porque também haverá a sua morte.

Sem paraíso dorme a criança no seu berço-caixão.
Vida molesta que nem os seus moribundos reclama.

Entre o teu corpo, o dia, a ausência,
a viúva, a órfã, o pai e a mãe...
O lamento lacónico, o mundo sem júbilo.

Entre o teu corpo e o dia, o grito desamparado
de um futuro rebelde que já não volta
e a esperança, minha ténue esperança
de ter visto um rapaz caído do céu.


--//--

Dou-te um nome, Ulisses, 
és fragmento do que encontraste. 
Salvam-se as horas pela estrada que se segue 
pelos astros que governam os céus.

O tempo é frágil, conheces tu o cantar de outrora? 
Teme o olhar que te fita, vigilante, 
ele não vê a mesma árvore do que tu. 
A natureza é estéril sem o Homem.

Verme doente, tem o teu cérebro forma? 
Átila, amei-te um dia... 
No dia em que me separei de mim própria 
conheci a verdade negra. Desacato.

Sonhei com um velho que se desmembrava. 
Veio a palavra e destruiu o exílio. 
O transporte diz~se místico e leva-me para longe. 
Vê: a saudade casta dobra a melancolia.


--//--

Delírios confusos, absurdo. 
Vai pálido o anjo, ri o demónio.

Hoje o meu deus não se vê.
Sou sombra num paraíso perdido.

A terra consome meus olhos azulados. 
Criatura frágil, ouvem-se teus gritos.

Voz de espinhos, 
máscara morta.

Noite cerrada, danúbio sem sol,
tempos houve em que fui cor resplandecente.

Tu, da estirpe dos que tecem o cabelo de aço, 
encheste a casa de trevas róseas.

Livro ensaguentado, cortejo de horrores. 
Deixa-me as insondáveis delícias do Homem livre. 
E a glória de se estar só.


(de Tempo de Morrer Tempo para Viver, Universitária editora, 1998)

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