9.6.07

[outros melros XLVI]

IRENE LISBOA

outro dia


O melro canta,
e já quase me é indiferente...
Mas sempre é uma voz
que se distingue,
aflautada e fresca,
entre os ruídos ingratos
da manhã:
pregões de jornais,
apitos, carros...
Um vapor parte;
ouve-se aquela sua zoada
sem timbre,
soprada e grave,
falha de harmonia...
Melro, canta!
Tenho o coração murcho
e triste...

(de Um dia e Outro dia... (Diário de uma Mulher), 1936)

8.6.07

HERBERTO HELDER

Texto 1


Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão
da voz
a insinuação de um gesto uma temperatura
à sua extraordinária desordem preside um pensamento
melhor diria «um esforço» não coordenador (de modo algum)
mas de «moldagem» perguntavam «estão a criar moldes?»
não senhores para isso teria de preexistir um «modelo»
uma ideia organizada um cânone
queremos sugerir coisas como «imagem de respiração»
«imagem de digestão»
«imagem de dilatação»
«imagem de movimentação»
«com as palavras?» perguntavam eles e devo dizer que era
uma pergunta perigosa um alarme colocando para sempre
algo como o confessado amor das palavras
no centro
não tentamos criar abóboras com a palavra «abóboras»
não é um sentido propiciatório da linguagem
introduzimos furtivamente planos que ocasionais
ocupações («des-sintonizar» aberto o caminho
para antigas explicações «discursos de discursos de discursos» etc.)
fixemos essa ideia de «planos»
podemos admiti-los como «uma espécie de casas»
ou «uma espécie de campos»
e então evidente para serem habitados percorridos gastos
será que se pretende ainda identificar «linguagem» e «vida»?
uma vez se designou mão para que a mão fosse
uma vez o discurso sugeriu a mão para que a mão fosse
uma vez o discurso foi a mão
partia-se sempre de um entusiasmo arbitrário
era esse o «espírito» o «destino» da linguagem
agora estamos a ver as palavras como possibilidades
de respiração digestão dilatação movimentação
experimentamos a pequena possibilidade de uma inflexão quente
«elas estão andando por si próprias!» exclama alguém
estão a falar a andar umas com as outras
a falar umas com as outras
estão lançadas por aí fora a piscar o olho a ter inteligência
para todos os lados
sugerindo obliquamente que se reportam
a um novo universo ao qual é possível assistir
«ver»
como se vê o que comporta uma certa inflexão
de voz
é uma espécie de cinema das palavras
ou uma forma de vida assustadoramente juvenil
se calhar vão destruir-nos sob o título
«os autómatos invadem» mas invadem o quê?

(de Antropofagias, in Poesia Toda, Assírio & Alvim, 1996 - este poema surgiu inicialmente, datado de "Luanda, 14.Set.71", no n.º 2 da revista Caliban, de Lourenço Marques, em Novembro de 1971)

7.6.07

[dia do Corpo de Deus]

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

(...)
E depois o que poderá restar? O fatigado corpo, essa, essa pequena alegria de todos os dias por onde dizemos o mundo. Agora me lembro que passávamos o tempo no erro de muitas palavras. Não éramos deus, não tínhamos o domínio da sua arte. Por isso errámos, erramos nas muitas palavras. Mas de uma coisa estamos certos, estávamos certos: somos matéria de deus, coisa que por si só deixa motivos para muitas perguntas e para nenhuma resposta.

(excerto de Somos matéria de deus, in Uma paixão inocente, edições Cotovia, 1989)

6.6.07

EDUARDO BETTENCOURT PINTO

Silêncio de junho


Por que se esconde a voz
entre as pedras e a nostalgia,
o sereno, flutuante rasto
do nenúfar,
a forma dos olhos
na claridade
melódica?

Como se veste
o silêncio?

De que frutos?

(de Um dia qualquer em junho, Instituto Camões, 2000)

5.6.07

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

As coisas são para que sejam não para
que as escrevamos As palavras são pa-
ra serem ditas Não para que as escre-
vamos Se escrevemos é para dizer o que
as palavras não são
De aqui a construção de todas as artes
poéticas que se fazem com poemas e não
com palavras Como os tijolos nas casas
Mas as casas não são tijolos, pedras ou
cimento
Os poemas têm dentro vidas - não uma
só vida e as palavras são a caixa, o
frasco, a lata O invólucro que se dei-
ta fora após o consumo do produto Esse
é que é o poema que se consome Ainda
que fiquem registados Como as fotogra-
fias dos mortos O produto é fármaco
feito segundo a arte
Que pode ser apenas a forma de mexer
as mãos Ao lançar palavras no papel Ou
de mover os lábios Ao dizer o poema
que não se escreveu
O resto são coisas secundarias As re-
ceitas baseadas nos poemas só servem
para as imitações
O poema imita o poeta e as suas cria-
ções Imita o que o poeta cria do cria-
do
O resto é ganha-pão de professores e
críticos Que muito divertem o poeta a-
fadigado Quando decide descansar e não
fazer poemas

6.10.70

(in Viola Delta volume XIX, coordenação de Fernando Grade, edições Mic, 1994)