2.8.03

Antes de ir para fora quero deixar aqui alguns pontos de visita, para vários gostos, que recomendo (sem comentários, porque não os sei fazer):

Aqui não há poeta;

Tempo Dual;

Voz do Deserto;

Lugar da Incerteza (acho que é o sucessor do Metrobloguitano, que se calou de repente);

Poesias e Prosas e

Little Black Spot

Até breve!

(espero encontrar cybercafés para dar notícias...),

1.8.03

[diz RAE "(...)Para um cristão só contava um acontecimento, o do juízo final, para os modernos o fim da dialéctica da servidão.(...)" - ora para nós, cristãos, o Juízo Final não era 'um' acontecimento - é 'o' acontecimento.]

T. S. ELIOT

BURNT NORTON

I
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que não abrimos
Para o roseiral. As minhas almas ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisíveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos como eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, reflectidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente, contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.

[...]
V
As palavra movem-se, a música move-se
Apenas no tempo; mas o que apenas vive
Apenas pode morrer. As palavras, depois de ditas,
Alcançam o silêncio. Apenas pela forma, pelo molde,
Podem as palavras ou a música alcançar
O repouso, tal como uma jarra chinesa ainda
Se move perpetuamente no seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota dura,
Não isso apenas, mas a coexistência,
Ou digamos que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio estiveram sempre ali
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora. As palavras deformam-se,
Estalam e quebram-se por vezes, sob o fardo,
Sob a tensão, escorregam, deslizam, perecem,
Definham com imprecisão, não se mantêm,
Não ficam em repouso. Vozes estridentes
Ralhando, troçando, ou apenas tagarelando,
Assaltam-nas sempre. O Verbo no deseto
É muito atacado por vozes de tentação,
A sombra que chora na dança funérea,
O clamoroso lamento da quimera desconsolada.

O detalhe do molde é movimento,
Como na figura dos dez degraus.
O próprio desejo é movimento
Não desejável em si;
O próprio amor é inamovível,
Apenas a causa e o fim do movimento,
Intemporal, e sem desejo
Excepto no aspecto do tempo
Capturado sob a forma de limitação
Entre o não ser e o ser.
De repente num raio de sol
Mesmo enquanto se move a poeira
Eleva-se o riso escondido
De crianças na folhagem
Depressa, aqui, agora, sempre -
Ridículo o triste tempo inútil
Que se estende antes e depois.

(de Quatro Quartetos, edições Ática, 3ª ed: 1983 - tradução de Maria Amélia Neto)
[Hoje tive que ir a um hipermercado. Tinham livros baratíssimos, e, entre eles estava O Lugar do Amor - uma edição belíssima, com um retrato do autor pelo incomparável Mário Botas. Trouxe os dois exemplares que lá estavam, mesmo sabendo que já tinha um cá em casa. Vou dá-los a quem mos pedir.]

ANTÓNIO OSÓRIO

Nasceu em 1933, em Setúbal.
Filho de Pai português e Mãe italiana. Advogado, foi Bastonário da sua Ordem. Começou a publicar poesia em 1972.
Está a ser publicada a sua poesia completa.

Amo-te
com pressa
de não acabar o amor.

*

Entrar contigo
dentro das searas
e depois
trigo
sairmos da terra.

*

Amo os loucos,
crianças tagarelando
que descobrem, instante
a instante, o mundo
e tudo enovelam
à sua translúcida maneira.

Não possuem maldade,
Mas ignorado amor
E incapaz poesia.

*

Gratidão de ser
por estes anos
e partículas restantes.

Pela amizade,
que chega a confundir o amor.

Pela bondade,
que torna a solidão desvalida.

Pela hombridade,
à altura do céu.

Pela beleza,
que só à santidade
sobrepassa.

E é flagrante, perdulária,
noutros renascente.

Gratidão
que nem sabe
a quem deve ser grata.

Pelas aves nutrindo os filhos
de penugem e voo.

Pela lentidão escrupulosa
da tartaruga, igual à de Plutão.

Pela leveza materna do vento
transportando pólen.

Pelo calor humílimo
da joaninha sobre a nossa mão.

E por estar na terra
uma só vez, ao sol,
nada pedindo, nenhum segredo,
como um velho lobo-do-mar.


CAMÕES

Lia-me Camões meu Pai.
A tristeza de ambos
se juntava, em mim crescia.
E a voz, a inalterável
mergulhia das palavras
procriavam sarmentosos liames.
(Basílico a Mãe depunha no lume,
a carne com alecrim perfumava).
O livro de carneira negra,
as letras juntas em oiro:
morros, alusões, muros
verdentos, o último da vida ouvia.
Amor doía, emaranhava.
Mordaça invisível. Em lágrimas,
minhas, de meu Pai e de Camões, voava.

(de O Lugar do Amor, Moraes editores, 1985 - Círculo de poesia)

31.7.03

[às vezes, sem saber por quê, tenho uma vontade compulsiva de reler um livro inteiro de poesia]

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Nasceu no Recife, Brasil, em 1920.
Foi diplomata. Teve cinco filhos. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e recebeu o prémio Camões. Cegou nos últimos anos de vida e por isso deixou de escrever.
Morreu em 1999.


A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua residência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.


TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
Que, tecido, se eleva por si: luz balão.


CATAR FEIJÃO

A Alexandre O'Neill

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grão na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.


PARA MASCAR COM CHICLETS

Quem subiu, no novelo do chiclets,
ao fim do fio ou do desgastamento,
sem poder não sacudir fora, antes,
a borracha infensa e imune ao tempo;
imune ao tempo ou o tempo em coisa,
em pessoa, encarnado nessa borracha,
de tal maneira, e conforme ao tempo,
o chiclets ora se contrai ora se dilata,
e consubstante ao tempo, se rompe,
interrompe, embora logo se reemende,
e fique a romper-se, a reemendar-se,
sem usura nem fim, do fio de sempre.
No entanto quem, e saberente que ele
não encarna o tempo em sua borracha,
quem já ficou num primeiro chiclets
sem reincidir nessa coisa (ou nada).

2.
Quem pôde não reincidir no chiclets,
e saberente que não encarna o tempo:
ele faz sentir o tempo e faz o homem
sentir que ele homem o está fazendo.
Faz o homem, sentindo o tempo dentro,
sentir dentro do tempo, em tempo-firme,
e com que, mascando o tempo chiclets,
imagine-o bem dominado, e o exorcise.

(de A Educação pela Pedra, 1966 - reproduzido em Poesia Completa 1940-1980, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986)

29.7.03

[esta entrada é dedicada a Pedro Mexia e a Carlos Vaz Marques]

PINK FLOYD

US AND THEM

Us and them
and after all we're only ordinary men
me and you
God only knows it's not what we would choose to do
forward he cried from the rear
and the front rank died
and the General sat, and the lines on the map
moved from side to side

Black and blue
and who knows which is which and who is who
up and down
and in the end it's only round and round and round
haven't you heard it's a battle of words
the poster bearer cried
listen, son, said the man with the gun
there's room for you inside

Down and out
it can't be helped but there's a lot of it about
with, without
and who'll deny it's what the fighting's all about
out of the way, it's a busy day
I've got things on my mind
for want of the price of tea and a slice
the old man died

(WATERS/WRIGHT, do álbum The Dark Side of the Moon, 1973)
Quem vive perdoa.
Somente os olhos da morte
não conhecem o gesto de Deus

Rui Almeida
DANIEL FARIA

Nasceu em 1971, em Baltar.
Fez os cursos de Teologia e Estudos Portugueses, no Porto.
Morreu em 1999, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.


Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar

*

Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias

Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Para ver no escuro a primeira nascente

Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida

Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que se sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.

(de Homens que são como lugares mal situados, Fundação Manuel de Leão, 1998)

EXPLICAÇÃO DO HOMEM

Não me verga a velhice nem o peso do crânio
Mas os olhos cansados na dor de te não ver.
O chão tornou-se a última paisagem.
No mais longínquo da terra te levantas
E vejo ergue-se a poeira dos teus pés.


EXPLICAÇÃO DA AUSÊNCIA

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer – fosse abertura –
E a saudade é tudo ser igual.

(de Explicação das árvores e de outros animais, Fundação Manuel de Leão, 1998)

Quando nadei profundamente na morte
Trouxe a mão ao cimo – era a superfície
O arbusto húmido a respirar fora das águas
A embarcação da infância
A neblina escavada ao redor da ilha desigual. Na vegetação

Que rodeia o homem solitário. Entrei profundamente
Trouxe a mão à tona da morte – o reflexo
Do remo movido sobre a agulha da bússola
O peixe que espera sobre todas as águas

Quando aquática a flor no tronco escavava
A minha última jangada nas correntes

(de Dos líquidos, Fundação Manuel de Leão, 2000 / 2ª ed: edições Quasi, 2003)

[há uma página com mais informação e poemas]

28.7.03

SÃO PAULO

[...]
mas se vos mordeis e devorais reciprocamente, cuidado, não aconteça que vos elimineis uns aos outros.

(da Carta aos Gálatas, 5, 15)
JORGE DE SENA

BALADA DE ROER DOS OSSOS

Roer um osso - humano, se possível,
é o sonho português de sobrevida,
após anos e anos de despirem
com os olhos as mulheres que no Rossio
por diante deles passam e das mãos
movendo-se contínuas pelo bolso
das calças mais viris da cristandade.

Roer um osso - humano, se possível,
de mãe, de pai, de irmã, de tio ou prima,
de amantes ou de esposas, filhos, netos,
ou de inimigos ou de amigos mesmo,
ou do vizinho em frente, ou dum retrato
só visto no jornal, ou criatura
desconhecida inteiramente - um osso.

Roer um osso - humano, se possível,
mas pode ser de vaca ou de carneiro,
ou porco ou gato ou cão ou papagaio,
ou à sexta-feira bacalhau ou peixe
em espinhas esburgadas que recordam
o rosto doce ou monstruoso odiado
na vénia às Excelências brilhantinas.

Roer um osso - humano, se possível,
seja fingido mesmo de borracha
para durar mais tempo que não passa,
ou de cimento pra quebrar-se os dentes
no gozo de moê-lo cuspinhado
(e o pensamento em furibunda mão
que excita ansiosa as impotentes raivas).

Roer um osso - humano, se possível,
É o sonho português de sobrevida.

22 Janeiro 72

(de Exorcismos, 1972)
ALEXANDRE O'NEILL

Aflora-me um osso,
tíbia mortal à espera de cruzar-se
com outra tíbia e, já cruzada, sobrepujar-se
da risonha (por irrisão) caveira dos macabros folguedos.
Este o sinal da fortuna assumida: não já vertical mas estendida,
ao longo de uma eternidade bem medida,
que, para muitos seres, será a vida.
Este sinal, temido embora,
do que está já morrido ou de um perigo de morte
que à vida precária vem na hora
do balanço entre vontade e sorte.
E assim jaz, com a morte adiada, um velho pobre
que o aviso do fim já não encobre.

(de O Princípio da Utopia, o Princípio da Realidade Seguidos de Ana Brites, Balada tão ao Gosto Popular Português & Vários Outros Poemas, Moraes editores, 1986 - Círculo de Poesia)

27.7.03

JEAN-ARTHUR RIMBAUD

ROMANCE
(excerto)

Aos dezassete anos, não somos para nos levar a sério.
- Uma bela tarde, fartos das cervejas e limonadas,
Dos cafés barulhentos de lustres rutilantes!
- acolhemo-nos junto às tílias verdes junto à estrada.

As tílias odoríferas dos entardeceres de Junho!
O ar é, por vezes, tão doce que fechamos as pálpebras;
O vento, repleto de sons - a cidade não fica longe -,
Traz-nos, de volta, perfumes de vinha, e brumas de cerveja...

[...]
- Não somos de fiar, quando temos dezessete anos e
Não faltam tílias verdes por onde passear.

29 de Setembro de 1870

(in O Rapaz Raro, Relógio d'Água, 1998 - tradução de Maria Gabriela Llansol)
Encontrei mais uma versão do haiku da rã, de Bashô. É uma outra de Casimiro de Brito, que já constava da primeira entrada com versões desse poema:

Ouçam o velho tanque.
O ruído de rãs saltando
em águas onde nadei.

(além daquelas há ainda as de Nuno Travanca e de Sous Entendus)
A LITERATURA PORTUGUESA COMO SERMÃO DA QUARESMA

Não se aflijam: temos uma grande literatura (pena que o mundo não saiba). Nos primeiros séculos da independência, ela deu mesmo a linguagem da poesia à lírica peninsular. Depois, nos séculos XV e XVI, toda se incha de celebrações imperiais, e os poetas cantavam muito em castelhano, a ver se os espanhóis se convenciam a ter um rei português e a capital em Lisboa - o que, como se sabe, saiu sebastianicamente furado, com os reis castelhanos e a capital em Madrid (aonde todavia muitos portugueses se consolavam governando as Espanhas todas e mais uma). E foi quando começou a encrenca. É que, desde a Restauração, uma literatura que antes se preocupara com existir, passou a preocupar-se com salvar a pátria. Quem deu o mau exemplo disto, como de muitas outras coisas, foi o famigerado Padre António Vieira [...] Quem depara, hoje, com as páginas literárias lusitanas, tem a pronta e assustada impressão que o romance do senhor A põe a pátria em perigo, o soneto do senhor B abala a verá existência nacional, e que, não fora o experimentalismo do senhor C, a pátria estava perdida. E toda a gente fala em tom de sermão da quaresma, agitando as brasas do fogo infernal, firmemente e devotadamente salvando a pátria com artigos literários e poemas maus. O cómico é que haja pessoas que tenham tomado tudo isto a sério, e cuidadosamente vigiam, e aparam as asas às actividades plumitivas dos salvadores de todas as cores, da pátria. E o triste é toda essa gente, os que escrevem e os que aparam, não ter percebido que, enquanto tanta gente se ocupar literariamente de salvar a pátria, das duas uma, ou ela está realmente em grande perigo, ou - em que nos pese - se marimba para tanta literatura salvadora. Não há como as literaturas de salvação para distrair as pessoas das culpas que lhes cabem na salvação da pátria. Um sujeito chega a casa, calça as pantufas, e com vibrante indignação lê o romance do Sr. X que, em nova versão, actualiza a salvação da pátria já proposta há trinta anos em primeira versão. Quando começa a cabecear, deita-se na cama, faz uma festinha à esposa, e ronca repousadamente. No dia seguinte, para ler mais um capítulo, calça as pantufas - não com a sensação de aliviar os pés, mas de um patriótico dever cumprido. Do que se conclui que, do sermão à pantufa, vai apenas a diferença de um sapato apertado.
Quando será que as pessoas deixarão de salvar a pátria com a literatura, e passarão a salvar a literatura com a pátria? [...] Porque a verdade nua e crua é que não há bela pátria que valha a má literatura que é escrita para salvá-la. O que não é propor que os escritores se encerrem na Torre de Marfim, para contemplarem a pátria celeste. Mas sim que adquiram o bom senso bastante a reconhecerem que a literatura é mais um efeito do que uma causa - até ao momento em que nos encha a paciência e a da pátria também. Porque as pátrias salvam-se com ciência e técnica, com inteligência e honestidade - mas não necessariamente com exercícios de retórica. Estes sempre perpetuam, a lamentável necessidade de as pátrias terem de ser salvas com eles.

(não datado - provavelmente de entre Fev.-Maio de 1971)

(texto de JORGE DE SENA, publicado pela primeira vez no número 1 da revista Nova Renascença - Outono de 1980 - Direcção literária de José Augusto Seabra)
[os cortes são da minha responsabilidade, por causa do espaço - creio que não retirei nada de essencial ao texto]
A esse monstro moderno chama-lhe a filosofia absurdo - embora o mundo persista em chamar-lhe opinião pública.
E é este o vulto escuro que interpõe sempre a sua forma confusa entre a verdade e os homens. É a maldição das sociedades democráticas, a contradição das forças colectivas, a sua verdade.
Lança mil vozes discordantes numa mesma hora a sua boca, que se chama imprensa. E como é um deus monstruoso os seus sacerdotes são disformes e grotescos, são bonzos e não apóstolos; e o mundo que lhes obedece não pode todavia reprimir um sorriso de escárnio ao ver passar a falange sagrada dos jornalistas!

(ANTERO DE QUENTAL, citado por António José Saraiva in Colóquio Letras, n.º 103 - Maio-Junho de 1988)