A LITERATURA PORTUGUESA COMO SERMÃO DA QUARESMA
Não se aflijam: temos uma grande literatura (pena que o mundo não saiba). Nos primeiros séculos da independência, ela deu mesmo a linguagem da poesia à lírica peninsular. Depois, nos séculos XV e XVI, toda se incha de celebrações imperiais, e os poetas cantavam muito em castelhano, a ver se os espanhóis se convenciam a ter um rei português e a capital em Lisboa - o que, como se sabe, saiu sebastianicamente furado, com os reis castelhanos e a capital em Madrid (aonde todavia muitos portugueses se consolavam governando as Espanhas todas e mais uma). E foi quando começou a encrenca. É que, desde a Restauração, uma literatura que antes se preocupara com existir, passou a preocupar-se com salvar a pátria. Quem deu o mau exemplo disto, como de muitas outras coisas, foi o famigerado Padre António Vieira [...] Quem depara, hoje, com as páginas literárias lusitanas, tem a pronta e assustada impressão que o romance do senhor A põe a pátria em perigo, o soneto do senhor B abala a verá existência nacional, e que, não fora o experimentalismo do senhor C, a pátria estava perdida. E toda a gente fala em tom de sermão da quaresma, agitando as brasas do fogo infernal, firmemente e devotadamente salvando a pátria com artigos literários e poemas maus. O cómico é que haja pessoas que tenham tomado tudo isto a sério, e cuidadosamente vigiam, e aparam as asas às actividades plumitivas dos salvadores de todas as cores, da pátria. E o triste é toda essa gente, os que escrevem e os que aparam, não ter percebido que, enquanto tanta gente se ocupar literariamente de salvar a pátria, das duas uma, ou ela está realmente em grande perigo, ou - em que nos pese - se marimba para tanta literatura salvadora. Não há como as literaturas de salvação para distrair as pessoas das culpas que lhes cabem na salvação da pátria. Um sujeito chega a casa, calça as pantufas, e com vibrante indignação lê o romance do Sr. X que, em nova versão, actualiza a salvação da pátria já proposta há trinta anos em primeira versão. Quando começa a cabecear, deita-se na cama, faz uma festinha à esposa, e ronca repousadamente. No dia seguinte, para ler mais um capítulo, calça as pantufas - não com a sensação de aliviar os pés, mas de um patriótico dever cumprido. Do que se conclui que, do sermão à pantufa, vai apenas a diferença de um sapato apertado.
Quando será que as pessoas deixarão de salvar a pátria com a literatura, e passarão a salvar a literatura com a pátria? [...] Porque a verdade nua e crua é que não há bela pátria que valha a má literatura que é escrita para salvá-la. O que não é propor que os escritores se encerrem na Torre de Marfim, para contemplarem a pátria celeste. Mas sim que adquiram o bom senso bastante a reconhecerem que a literatura é mais um efeito do que uma causa - até ao momento em que nos encha a paciência e a da pátria também. Porque as pátrias salvam-se com ciência e técnica, com inteligência e honestidade - mas não necessariamente com exercícios de retórica. Estes sempre perpetuam, a lamentável necessidade de as pátrias terem de ser salvas com eles.
(não datado - provavelmente de entre Fev.-Maio de 1971)
(texto de JORGE DE SENA, publicado pela primeira vez no número 1 da revista Nova Renascença - Outono de 1980 - Direcção literária de José Augusto Seabra)
[os cortes são da minha responsabilidade, por causa do espaço - creio que não retirei nada de essencial ao texto]
dois docinhos do Xana
Há 6 horas
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